quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Travessia transversal da Lagoa dos Patos em Caiaque

TRAVESSIA (Abril- Maio de 2001)

PREPARATIVOS - AVISOS - PREMONIÇÕES
Estou na praia de Perequê visitando o Tio Laerte, a tia Zoni e o Jorge, que vieram de Porto Alegre passar uns dias.
O papo agradável foi acompanhado de muito vinho, chimarrão e “causos” de nossas vidas, o tempo passa rápido e vamos dormir.
Tive um sonho muito intenso, com o caiaque e eu, perdidos nas ondas, sem ver terra para lado nenhum .
O sonho parecia muito real e despertei decidido a torná-lo realidade.
Detalhes como o tempo, arrumar o que for necessário e o que deve ir numa viagem destas são pequenos detalhes a transpor.
O caiaque está em Porto Alegre desde a viagem do ano passado (Chui - Porto Alegre de windsurf e caiaque) e não tem muito a ser feito nele, talvez eu tenha que comprar mochilas...
Quero atravessar a Lagoa dos Patos no ponto onde ela é mais larga, segundo o eixo leste – oeste.
Mapas, réguas, transferidor e uma grande carta náutica da Lagoa dos Patos me auxiliam a descobrir o ponto onde ela é mais larga. Descubro que é próximo da Lagoa dos Gateados, em direção de um ponto ao sul da Ponta da Formiga.
Será uma travessia de aproximadamente setenta quilômetros. Pela média do ano passado (20 a 25km/dia), calculo que serão necessários dois a três dias para executar o projeto.
Este tempo é calculado pela normalidade de um dia comum; havendo temporal ou forte vento contra, estarei ferrado!
Mas onde fica a aventura cheia de adrenalina, de ir sem saber se vou conseguir voltar ?
Estou quase me matando todos os dias com minha moto (XT 600), fazendo “pegas” entre 140 e 150 km/h, ultrapassando caminhões pelo acostamento e outras coisas.
Então tenho que fazer estas aventuras para canalizar esta busca por perigo; sempre que volto destas viagens, consigo ficar calmo por um ano ou dois...
A decisão foi tomada, então não tem mais volta.
Há um feriado daqui a duas semanas; é primeiro de Maio. Então te vira cara!
Já estou sofrendo por antecipação, pois sei o que me espera e não tenho mais como recuar; ninguém me obriga a nada, na verdade só eu sei o que vou fazer, é uma coisa pessoal, a única motivação é a aventura...
O único problema é que estou ficando preguiçoso, mas não posso deixar morrer a chama.
A vida se resume na rotina e no tempo que vai demorar até que chegue a hora de partir.
Foi difícil convencer a coordenadora da odontologia lá em Biguaçú, mas finalmente ela concordou: trabalho além do horário na Quarta e Quinta e ganho folga na Sexta para viajar para Porto Alegre.
O dia primeiro de Maio cai numa Terça, então terei quatro dias para fazer o que quero, desde a saída de Floripa.
É pouco, mas dá! Por outro lado não poderei escolher, é chegar no local e partir, sem vacilar com o tempo que estiver fazendo.
Tomara que, pelo menos, o vento esteja favorável.
O local de saída para a travessia será próximo da estrada do Inferno, depois seguiremos pelos campos e fazendas de gado e arroz, onde há muita lama e água para transpor . Um carro normal não passa por ali.
Meu sócio, o Aldo, vai me dar uma baita força e me levará até o local de partida em sua S 10 Cabine dupla 4X4 (o principal).
Tudo vai se encaminhando e vou preparando a lista do que tenho que levar.
Basicamente já tenho tudo que preciso, mas a diferença é que terei que levar as coisas à mão, pois lá no meio não terei condições de abrir os compartimentos estanques, nem mesmo de alcançar mochilas amarradas na popa ou na proa; terei que levar a mochila principal nas costas (com alimentos para três dias, celular, filmadora, máquina fotográfica, lanternas, um pequeno radinho de pilha com fones de ouvido, queijo, salamito e chocolate).
No reservatório de 5 litros, um galão embutido no caiaque (situado bem às minhas costas, na popa) vou colocar Marathon, sabor água de coco para repor os eletrólitos.
Os dias passam muito rápidos e minha hora da verdade está chegando.
Para não ficar muito nervoso, apenas me concentro no que tenho de fazer e levar.
França, Paulo Sempe, Bello, Robson , Rojas e o primo Michel são meus bons amigos de quem vou me despedindo aos poucos.
Lá vem aquela sensação de que tudo que faço é a última vez...
Por um lado é ótimo, a vida fica intensa, os valores se acentuam, tudo fica mais bonito !
O último final de semana é passado na cama quentinha e segura, assistindo TV. Bem chinfrim !
O Rojas combinou de fazermos uma carne, um “churrasco de corpo presente”, como ele define nossas despedidas. Mas no fim acabou não se realizando.
Bueno, fui às compras e resolvi adquirir um binóculo (10X25) que fez muita falta ano passado, a filmadora que estava namorando há horas (aproximação de 450 X), lanterna a prova d’água, óculos anti-brilho, sacos plásticos impermeáveis e bóias luminosas (utilizadas pelos pescadores para pesca de peixe-espada) que pretendo utilizar de noite, como sinalização para os navios ou barcos de pesca. Levo uma capa plástica, à prova d’água para colocar o celular, de repente pode salvar minha vida.
Saio de casa bem cedo na Quinta para o serviço em Biguaçú e, ao abrir o portão, percebo que a lagartixa que mora escondida no trinco do portão está morta e esmagada; fiquei triste, pois estava acostumado a vê-la todos os dias.
Abro o portão para tirar a moto e me deparo com uma enorme cobra coral ali na frente, esticadinha. Peguei um graveto e vou empurrando-a na direção do mato. Ela fica uma fera, toda achatada, mas não deu nenhum bote, não é uma cobra agressiva, apesar do veneno ultramortal.
A danadinha conseguiu se enfiar em um buraco, deixei-a por ali mesmo...
Eu hein? Parece um aviso de coisa ruim, morte... Sei lá!
O negócio é “meter o peito” , como sempre fiz, lembrar de Deus na hora H e acreditar que tudo dará certo no fim!

26/04/2001 Quinta-feira

RUMO AO DESTINO
Vou para Biguaçú e, depois do expediente, sigo para o consultório em São José.
Atendo alguns pacientes e dali vou direto para a rodoviária. O Aldo segue amanhã, Sexta. Eu vou antes para verificar o caiaque e comprar mais alguma coisa que faltou.
Descubro que o Rio Grande do Sul está sob chuva intensa há vários dias, muitos municípios decretaram calamidade pública, os banhados deverão estar cheios e teremos dificuldades para superar os atoleiros.
Meu ônibus parte à meia noite para Porto Alegre. Durante a viagem de seis a sete horas sob chuva eu não consigo dormir, agitado que estou, imaginando o que me espera, como a chuva que me acompanha agora. É muito baixo astral!

27/04/2001 Sexta-feira
Ao chegar em Porto, já na Sexta, instalo a bússola no caiaque, monto o leme, verifico cabos e não encontro a barraca em lugar nenhum.
Azar! Vou sem ela; se eu conseguir atravessar, dormir sem a barraca será apenas um detalhe, não será tão ruim assim !
Na parte da tarde vou até o centro e tive muita dificuldade de encontrar uma toalha de borracha, caminhei um monte mas encontrei.
Depois comprei duas mochilas de camelôs, mais algumas bugigangas e retorno, já cansado e com sono, para casa.
Não estou descansando como deveria, mas minha oportunidade de fazer esta travessia é agora ou nunca, sei que não tenho muito tempo, mas o “time” é agora. Então vou ter que fazer de qualquer jeito; a única coisa que pode fazer com que eu desista é no caso de eu chegar no local da partida e houver um forte vento contra, aí será impossível. Meu plano é cruzar da margem leste para a oeste. Nem mesmo sei qual a predominância do vento nesta época e isto é um fator importantíssimo que eu esqueci de levar em conta.
Volto para casa, consulto mapas, tento fazer a viagem em pensamento, tentando adivinhar o que será mais útil. Vou ao supermercado, já no final do dia, para comprar mantimentos.
O Aldo chegou de Floripa já noite. Jantamos juntos e depois ajeito um local para ele dormir e vou passar o resto da noite arrumando as coisas nas mochilas. Uma delas irá às costas, onde levarei os aparatos fotográficos, comida para o primeiro dia e coisas de sobrevivência em caso de naufrágio...
O tio João ligou, querendo me demover da idéia. O fofoqueiro do Michel (filho dele) deve ter contado, menos mal que a mãe e o pai estão em São Paulo. É claro que neguei que iria fazer isto, pedi que não contasse para meus velhos para não preocupá-los.
Se tudo der certo (ou errado) será uma coisa rápida, em três ou quatro dias tudo estará acabado...
28/04/2001 - Sábado
Estou cansado e para espantar o sono, vou tomar um gostoso chimarrão com as tias Cinda e Mari enquanto converso com minha “prima”, a Samira . A Angela, minha irmã, chegou de tarde e ficou trabalhando no computador.
Meu irmão, Paulo agüentou heroicamente comigo até às 4 horas da manhã, ajudando na arrumação das mochilas e num sistema para baixar a âncora controlada por um cabo que ficaria na caixa da bolina. Além disto, o sistema para deixar a luz da bússola acesa durante a noite não poderia falhar.
Às 5 h fui tomar um banho, pois o sono atrasado de duas noites estava cobrando sua hora, mas meu tempo era curto demais para estes pequenos detalhes. A Angela foi fazer um café antes da partida, tanto ela como a tia Cinda ficaram acordadas toda a noite (tia Cinda ficou assistindo TV). A nossa família parece ser uma família de corujas...
O Luigi, a Gabriela (meus sobrinhos) mais as filhas do primo Cláudio (Taís e Franciele) estão dormindo, todos vão passear com o Paulo na serra.
É uma manhã cinzenta com nuvens carregadas e um vento monótono que dá sono. Pretendo dormir durante a viagem para a Lagoa dos Patos enquanto o Aldo dirigir.
Partimos às 6:30 h, pensei em dormir na viagem, mas o Aldo não sabia o caminho, tive que orientá-lo até depois de Viamão, quando não haveria mais cruzamentos.
Só então consegui cochilar.
O ÚLTIMO DESEJO
Dormi por cerca de uma hora e depois fui conversando com o sócio até chegarmos em Capivari onde dobramos para o Sul, na estrada do Inferno, agora asfaltada até Tavares.
O tempo feio não mudou, eu parecia um condenado, seguindo pelo corredor da morte para a cadeira elétrica...
Lembrei que eu tinha direito a um último desejo...
Pedi para que o sócio parasse na beira da estrada, em um destes pequenos botecos típicos do interior (uma venda)... Queria tomar minha última cerveja !
Desejos de um moribundo.
A paisagem é bonita, apesar do tempo nublado. Vamos seguindo em direção do km 79. Dali seguiremos em direção de uma fazenda indicada por um paciente do Paulo (inclusive o filho dele nasceu hoje, parabéns). Acabamos errando de fazenda, mas o pessoal dali nos indicou a correta.

PERDIDOS NOS BANHADOS
Nesta outra fazenda, o capataz nos deu as dicas de como e quais estradas deveríamos seguir para encontrar uma fazenda de um tal de Major Nuno.
Seria a partir da fazenda dele que teríamos acesso até a margem da Lagoa dos Patos.
Atravessamos o asfalto e seguimos para oeste, abrindo duas porteiras, seguindo por uma estradinha de terra e lama. Apesar de estar tomada pelas águas, era facilmente vencida pela S 10 do “tio” Aldo.
Dali, chegamos em uma estrada um pouco maior, paralela à estrada do Inferno, entramos à direita (para o norte) e seguimos pela areia com pontos de atoleiro.
Um pouco à frente, encontramos outra porteira onde entramos, seguindo para oeste (na direção da Lagoa) de novo.
De cara, uma lagoa sobre a estrada que seguia um pouco acima do nível dos banhados.
No caminho cruzamos com uma Ema que corria pelos campos, depois fomos em frente até não haver mais vestígios de estrada. Desembarcamos e fomos até um conduto de irrigação que formava um ponto mais elevado e tentamos, com o auxílio do binóculo, ver onde estava a sede da fazenda. Apesar de estarmos em um terreno plano, não vislumbramos a Lagoa dos Patos.
Talvez houvesse algo em um capão de eucalipto ao longe, mas o Aldo achou melhor retornarmos até a última estrada e tentar seguir mais para o norte.
Assim fizemos, até encontrar outra porteira, só que bem mais bonita, com um travessão horizontal, muito chique; só podia ser ali...
Desci da caminhonete e filmei enquanto o sócio passava a S 10 pela porteira.
Não percebi que a cana do leme do caiaque engatou no travessão do alto da porteira e só ouvi o estralo quando ela quebrou..
Nada está dando certo, não durmo faz dois dias, não conseguimos chegar nem perto da Lagoa, estamos perdidos nos banhados e já são 10 h. Eu pretendia iniciar a travessia ao amanhecer e o início ainda é imprevisível.
Agora quebra a cana de leme e um temporal se anuncia para o sul... que mais?
A estrada de acesso era pior do que a outra, tanto que o sócio ligou a tração e a reduzida em alguns pontos de lodo mais intenso. Seguimos para oeste por uns 3 km, paramos para olhar com o binóculo, mas não vimos nada...
Apesar de querer ver algo pelos campos temos que admitir o fracasso e voltar para a estradinha de novo, que irritante !
Já de volta à estrada, seguimos para o norte (de novo) até encontrarmos uns peões à cavalo, conduzindo um rebanho. Eles nos indicam a sede da fazenda do Major Nuno.
Uma casa antiga, belíssima, era a sede da fazenda. Esperamos eles tentarem fazer contato com o Major, por telefone, enquanto eu vou filmando o local, os bretes (cercados para os animais) e as frondosas figueiras. A casa deve ser do tempo da guerra dos Farrapos.
Não conseguem falar com ele, mas nos autorizam a prosseguir.
Acho que estou me sentindo como o gado que passa por aquele brete... Para o matadouro !
Não é fácil! O cara não consegue se livrar daquela sensação de que vai morrer. A expressão “só no mundo!” é sentida por mim até a raiz do cabelo.
É porque eu sei que ninguém vai resolver esta parada por mim.
Atravessar a Lagoa dos Patos, na parte onde ela for mais larga, é uma cisma antiga. Já fiz quatro viagens por aqui, foram dois mil quilômetros navegados nestas águas tanto de windsurf quanto com o caiaque, ou com ambos, como foi no inverno passado. Eu já queria ter feito isto no ano passado, mas as dificuldades foram imensas e não tive tempo de executar o planejado.
Então vamos resolver esta bronca de uma vez ! Só assim eu fico em paz !
Agora... que eu estou com uma sensação terrível de que não vou passar desta, estou!
Mas eu já apostei tanto com a vida, ganhei tanto que... mesmo perdendo, já venci !
Despedimo-nos dos peões e seguimos por uma estradinha, contornando uma malha de taquaras e algumas figueiras. Depois do capão, começa o campo e a estrada toma o rumo oeste. Passamos por um bando de dez emas que nem se afastaram muito. Depois o campo aberto, sem árvores... uma solidão sem fim onde a companhia é o vento, as nuvens e o cheiro da lama do banhado que fica no ar...
A princípio, parecia ser fácil, era só seguir pela parte mais elevada como eles falaram. Começaram a surgir atoleiros e a água dos banhados invadia a estrada em muitos pontos, muitas vezes tive que descer e cruzar o aguaceiro a pé, para indicar para o sócio onde era mais raso.
Depois, em uma bifurcação, o sócio escolheu a da esquerda e se deu mal. Teve que voltar na marcha à ré, pois ela terminava em um local muito profundo, coberto de água.
Ao lado dessa, seguia a estrada correta mas era necessário voltar um bom trecho até a bifurcação.
Depois, fomos avançando pela água até chegarmos em um local suspeito. Desci para verificar o terreno, era uma ponte feita com troncos, coberta de leivas. Um buraco nas leivas, cheio de água com movimento, super estranho !
Enfiei a perna ali para verificar a profundidade e a perna afundou até a virilha. Droga !
Teríamos de consertar a ponte ou desistir de seguir em frente, não dava sequer para desconfiar onde ou quanto faltava para chegar até a Lagoa; só era possível ver os campos sem fim seguindo na direção do horizonte. Além disto, as nuvens que se moviam rápidas, estavam trazendo chuva. Que baixo astral !
Uns 50 metros para frente, havia uma porteira por onde deveríamos passar e, ao lado dela, um enorme tronco no meio do gramado.
Quem sabe ele , pelo tamanho, não tapa o buraco na ponte? Fiz uma força desgraçada para erguê-lo , devia pesar mais de 50 kg.
Resolvi levá-lo para a ponte, erguendo-o pelas pontas, deixando que tombasse, erguia-o pela outra ponta, novo tombo e assim sucessivamente.
Droga ! A energia para remar estava sendo gasta para carregar este tronco...
E o pior é que não deu certo, era muito temerário, pois ele não tapava o buraco e tudo poderia ceder com o peso da S10, aí sim estaríamos bem mais complicados.
Tanta força por nada, fora o tempo perdido.
Estamos neste banhado, sem ninguém por perto para nos ajudar e eu tenho uma Lagoa para atravessar que sequer eu consigo ver. E as horas vão passando...
Já passa do meio dia e nós ali, num beco sem saída.
O Aldo querendo ir embora, pois víamos a chuva se aproximando:
- Vamos, vamos !
- Issi, decide o que tu vai fazer, daqui a pouco não vou mais conseguir retornar, pois o nível da água sobre a estrada vai subir...
Canal de irrigaçãoOlho para tudo à minha volta, o astral começa a baixar, não consigo sequer chegar na beira da Lagoa.
- Sócio, vamos baixar o caiaque !
Queria atravessar o banhado ao lado da estrada e olhar por dentro do canal de irrigação que passava entre dois montes que o delimitavam. Minha suspeita é de que este canal se dirige até a beira da Lagoa, de onde eles puxam água para irrigar os arrozais, é uma coisa lógica! Arrastar o caiaque por dentro do conduto, sobre um filete de água é melhor do que arrastar o caiaque pesado sobre os campos por três ou mais quilômetros.
Atravessei o lago e encostei no conduto, subi o monte e pude ver que por dentro havia água, mas estava tomado pelos aguapés.
Arrastar o caiaque pesado, monte acima para colocá-lo por dentro do conduto de irrigação era impossível para mim. Depois daquela porteira onde eu peguei o tronco, havia uma parte do conduto que estava rompida, por ali saiu a água que desbarrancou a ponte, e por ali eu poderia arrastar o caiaque para dentro do canal.
Ajudei o sócio a manobrar a caminhonete para deixá-la de frente para ele retornar, pois sozinho a manobra seria arriscada. Ele poderia ficar irremediavelmente atolado ali, aí teria de ir a pé até a fazenda buscar um trator...
Tudo para desistir ali mesmo, mas o neto da vó Ângela é tão teimoso quanto ela .
Resolvi seguir em frente, nem que fosse arrastando o caiaque até a beira da Lagoa e, se fosse o caso, partir bem cedo no outro dia, descansado e após uma boa noite de sono.
O problema é que eu não encontrei a barraca em Porto Alegre, resolvi viajar sem ela e agora vai fazer falta...Pior, começou a chover !
Fui arrastando o caiaque pelo campo em direção da porteira, com uma das mochilas por cima e o Aldo me acompanhou levando a mochila mais leve, aquela que iria às minhas costas durante a viagem.
Canal rompido
Canal rompido
Passamos da porteira e, uns 200 m adiante, chegamos onde o canal estava rompido. Ali a correnteza era forte e tive muita dificuldade para empurrar o “Náutilus” contra a correnteza e sobre os blocos de argila que me faziam escorregar.
Finalmente consegui adentrar no canal e fui arrastando o caiaque pelo meio do capim alto da beira. Ali era fundo, mas cheio de aguapés que não permitiam que eu fosse remando. Fui puxando-o através de uma corda a partir da margem, resolvi nem pensar nas cobras, pois eu não podia ver o solo em que estava pisando de pé descalço, seja o que Deus quiser!
A chuva engrossou e o sócio foi buscar abrigo sob um capão de eucalipto enquanto eu seguia na minha “penitência”, arrastando o caiaque pelo canal sem fim... Mais adiante, o nível da água diminuiu, pude sair do capim da margem e seguir pela água (por dentro do canal), arrastando o barco entre os aguapés
Acabei cortando os pés nos galhos que estavam no fundo da lama fedorenta.
Já estou me sentindo fraco, pois já passa do meio dia e a única refeição que fiz foi um ralo café preto e duas fatias de pão hoje de madrugada e estou fazendo força que nem um condenado só para chegar na beira da Lagoa. Melhor nem pensar no que virá depois...
Agora só resta um filete de água e o Náutilus vai deslizando sobre o capim, oferecendo mais resistência ainda e me desgastando cada vez mais.
Após passar sob uma pequena e muito baixa (maledeta) ponte que praticamente me obrigou a arrastar na lama, a chuva resolveu dar um tempo.
Faltando uns 200 m, o Aldo saiu lá do seu abrigo e veio até onde eu estava:
- Issi, onde é que tu compraste esta porcaria de mochila ?
- A alça dela rebentou!
- (MERDA !)
Estou tão cansado que este grito foi apenas no meu pensamento; não quero saber de mais nada agora, primeiro tenho que chegar na beira e meus problemas recém estão começando.
- Bem feito, quem mandou comprar um material tão importante nos camelôs?
O Aldo se oferece para puxar o caiaque no que resta arrastar e eu não recuso.
Apesar de tudo, ele é um cara legal (he, he...).
Sem sacanagem, o sócio é um baita amigo e está sempre ali, quando o cara precisa dele; pena que é meio medroso...
Chegamos no final do canal, arrastamos o caiaque para fora do conduto e vejo a Lagoa...
Local onde arrumei as coisas- Cara, que dureza ! Como foi difícil para chegar até aqui...
Dois enormes canos de metal descem até uma casinha de madeira que cobre os motores que puxam a água da lagoa para este canal que vai irrigar as culturas de arroz.
Há um canal que parece ser bem profundo, tomado de aguapés e que vem da Lagoa até os canos da “puxada”.
Canos de irrigaçãoUm pouco adiante, a margem estava tomada de um capim alto, cortado por uma cerca de arame farpado e juncos.
O céu está pintado de cinza.
Para o sul, na direção do horizonte sem fim, está azulado, prenúncio de tempestade. Uma chuva leve, um vento fraco e o coração apertado. Uma sensação de desamparo total e um vazio sem fim no peito, oprimido pela realidade avassaladora ali na minha frente.
Um vazio de 70 km, dois, talvez três dias mais, eu dentro do caiaque. Estou sem dormir há dois dias...
Cana de leme quebrada, a mochila rasgada, penso em dormir por ali para descansar, pois estou “podre” para partir agora.
Uns 300 m ao norte, há um acampamento de pescadores, posso ver os barcos deles encostados na beira, onde existe uma enorme figueira e uma pequena enseada.
Estou analisando a possibilidade de pedir abrigo a eles por esta noite e como fazer para arrumar o que estragou e levar o caiaque até seu acampamento, pois eu não tenho como ficar ao relento sem barraca, ainda mais que está chovendo.
A cabeça está a mil, trocentas coisas vão se embaralhando nos neurônios, perdemos sete horas nos banhados; estou atordoado quando chega o sócio :

- Vamos Issi, vem chuva aí e não quero demorar muito. Acho que vou embora !
- Espera aí, seu veado !
- Pelo menos me ajuda a carregar as coisas até a beira e arrumar o que quebrou e rasgou...
- Porque tu não vieste com uma roupa mais quente ?
- Agora, só de bermuda, tu fica tremendo que nem vara verde...

BAIXO ASTRAL - “DEPRÊ”
Carregamos tudo pelo meio do capim alto e alagado, tentando chegar na beira do canal onde não tivesse mais aguapés e de onde eu pudesse seguir meu destino para o centro da Lagoa.
Depois de tudo transportado, vou colocando a roupa de neoprene, sentado no meio daquele capim alto e alagado enquanto o sócio tenta consertar a cana de leme com uma fita adesiva (Silver Tape).
Fomos puxar, para fazer um teste e descolou tudo... Cara, acho que descobri o que é depressão...

- Tenta de novo sócio, sem isso vai ficar ruim.

Sobre a roupa de neoprene, coloquei o casaco impermeável e sobre ele coloquei o colete salva-vidas.
Trocamos as mochilas; como rebentou a menor, que iria às minhas costas, terei que ir com a maior, carregada dos aparatos fotográficos, a filmadora (que irá dentro de uma caixa de acrílico estanque que eu fiz para a viagem do Rio de Janeiro), lanternas, bóias luminosas, etc.
Tento erguê-la.
Cara, quase 10 kg; não consigo nem me mexer direito! Como é que vou remar?
O reservatório de água ficou bem atrás das minhas costas, embutido no compartimento do caiaque (feito para encaixar um galão de cinco litros).
Cana de leme remendada, entro no caiaque, a mochila pequena presa na proa e o sócio vem e coloca a mochila grande nas minhas costas...
Dei apenas duas remadas e o caiaque quase vira ali mesmo !
Que terrível, a grossa esponja que coloquei como assento para agüentar três dias sentado e que deixou tudo confortável como uma poltrona, alterou o centro de gravidade.
Fiquei muito alto; como a carga não ficou nos compartimentos estanques (apenas o plástico e o saco de dormir) e sim nas costas (sobre a coberta de proa e popa), ficou super instável.
Tive que arrancar as esponjas que iriam às costas e no pandeiro.
Apenas vou levar duas pequenas esponjas para esgotar a água que invadir o espaço aonde vou sentado.
Como será ? Não sei, agora...
Entro no caiaque de novo, já são quase duas e trinta da tarde, estou mais cansado do que nunca, o tempo está feio e há tempestade para o horizonte.
A roupa de neoprene está me enforcando e as alças da mochila machucam.
Nada está como eu queria !
Estou vacilando, penso em não sair hoje, talvez nem ir mais...
Mas só para levar o caiaque de volta para a caminhonete será um suplício.

- Vamos Issi !
- Não agüento mais de frio !
- Essa chuva vai encher tudo e o nível da água vai subir...

- Mas não é uma bicha nojenta?
- Estou para morrer, condições totalmente adversas e ele preocupado que está passando frio...
A HORA DA VERDADE
Entro de novo no caiaque, pelo menos melhorou um pouco a estabilidade. O vento está fraco, em direção do centro da Lagoa.
Como única referência, vejo o morro da Ponta da Formiga, uns 70 ou 80 km, para N.
Peço para o sócio baixar o leme para mim, pois nem consigo me mexer direito.
Despeço-me do meu amigo, foram oito horas de sufoco para chegar até aqui e ele foi um leal companheiro e ainda vai seguir viagem direto até Florianópolis.
Vou seguindo pelo meio dos juncos...
- Que paradoxo !
- Eu não tive coragem de desistir !
- Às vezes, é melhor morrer tentando do que a humilhação de recuar...

Parti sem olhar para trás !
Respirei fundo, fechei a boca e comecei a remar automaticamente; os juncos vão passando a meu lado e se curvam com o vento, como que dizendo adeus...
Passo pelos últimos juncos que vão ficando para trás, nada mais na minha frente; sinto que o caiaque começa a navegar em águas mais profundas. A vela está rizada (diminuída) mas segue na minha frente. Posso ver através dela, por uma pequena “janela” (um círculo de plástico transparente, representando o sol e uma gaivota estilizada em pleno vôo, rumo ao infinito...). As águas acinzentadas parecem se fundir no horizonte com as nuvens que cobrem tudo.
A roupa de neoprene está me enforcando, mas não tenho a mínima chance de alcançar o zíper nas costas. Teria que soltar a mochila, tirar o colete salva-vidas, o casaco impermeável e tentar puxar o fecho mais para baixo, isto tudo num caiaque completamente instável.
Ao mesmo tempo, as alças da mochila estão me machucando, vou ficar em carne viva. A desgraciada fica caindo, ora para a direita ora para a esquerda, também pudera, ela está apoiada sobre o bico do galão de água...
Por falar nele, cometi outro erro: deveria ter colocado uma mangueira unindo o líquido do galão com minha boca, pois não tenho como removê-lo do lugar para beber. Agora sei lá quando vou beber...
Resolvo virar o caiaque na direção da puxada de arroz para poder ver o sócio, mas já não vejo mais o Aldo.
Ele foi embora com tanta pressa que esqueceu de levar as esponjas que eu arranquei do caiaque. Posso vê-las no campo.

- Bueno, seu André !
- Aqui estamos nós de novo, rumando para o centro da Lagoa, sós no mundo e dependendo de nós mesmos para continuarmos vivos.
- O que é que a vida vai fazer de mim ?

Minha defesa é fingir que tudo isto não é realidade, apenas uma espécie de sonho, um jogo em que a vitória consiste em não morrer.
Como o desconforto não tem solução, vou me acostumando a remar assim mesmo.
Esse é meu treino, aqui no campo de batalha. O cara tem que se virar diante das adversidades e seguir em frente assim mesmo.

- Medo de morrer ?
- Não sei, talvez seja apenas o receio daquilo que vou encontrar pela frente.
- O medo maior de que todos temos, é o das mudanças na rotina que, às vezes, o destino nos obriga a encarar.
- De como agiremos na hora que tivermos que enfrentá-las (as mudanças), quando tudo começar a acontecer.
- Acho que tenho medo da minha própria imprevisibilidade...
- Tenho medo de ficar paralisado na hora H !

Eu deveria ter partido, no máximo, às 6 h da manhã. Parti por volta das 14:30 h, depois de oito horas nos banhados desde que saímos de Porto Alegre.
Depois foi o desgaste arrastando aquele tronco de 50 kg, a luta pelos campos arrastando o caiaque, cortando os pés nos galhos submersos, avarias de última hora, a chuva, o temporal se anunciando, a instabilidade do caiaque e a roupa me enforcando... Não é fácil !
Além de tudo, faz mais de 36 horas que não durmo !
Na verdade, no fim de tudo, o cara se conforma com o destino e fica até despreocupado; de repente essa calma que se apodera de mim é o cansaço.
Passada cerca de uma hora, tiro uma foto da costa e outra do que terei pela frente.
São ondas, nuvens cinzentas e um vento SE que vai aumentando, assim como as ondas, à medida que vou me afastando da costa.
Na minha frente segue a vela rizada, no mastro há um Garfield vestido com a camiseta do Grêmio e eu vou seguindo com os olhos cravados na bússola que tento manter em 260 graus SW, mas que o vento SE insiste em empurrar entre 270 graus W e 300 graus NW.
Começo a sentir sono, mas tento controlá-lo, molhando o rosto seguidas vezes.
A mochila irritante se ajeitou para a esquerda. Já são quase 16 horas e estou remando sem parar desde a saída :

SEM COMIDA
- Cara, é melhor tu comeres algo antes que fique escuro (por volta de 18:30h) !
Quase viro o caiaque tentando tirar a mochila das costas e passá-la pelo lado.
Coloco-a entre as pernas e vasculho em busca de comida.
Não acredito ! Só encontrei uma mísera latinha de atum...
O resto da comida ficou na mochila da proa... Só posso alcançá-la se me atirar na água e for, a nado, até a proa.
Bueno, primeiro vamos comer, depois penso em uma solução.
Vou comendo com os dedos mesmo e depois guardo a lata para beber água da Lagoa e esvaziar o caiaque.
Aproveito e pego a lanterna pequena (à prova d’água) e a coloco no bolso da jaqueta.
Tento ligar a luz da bússola que está energisada por uma pilha dentro do compartimento, mas eu não consigo abrir o compartimento onde está a bateria sem o risco de virar o caiaque, pois a enorme mochila desestabiliza qualquer tentativa disso.
Tenho que desistir e pensar noutra alternativa.
Pensei o seguinte: pego uma bóia luminosa e a coloco na frente da bússola, assim posso visualizá-la. Deixei a lanterna grande sobre o compartimento da bolina, entre as pernas, junto com a faca.
A sede apertou, então uso a latinha de atum para beber água da Lagoa.
- É brincadeira, gastei uma grana boa para encher o reservatório com água cheia de eletrólitos, sais minerais e outras frescuras e agora sigo sem poder remover o reservatório, bebendo água da Lagoa...
Vou seguindo, olhos cravados na bússola, mantendo o curso entre 260 (SW) e 270 (W) graus, menos do que isto e fico no contravento. O curso planejado seria de 240 graus (SW), na direção do Pontal de Santo Antônio, perto de Tapes.
Isto vai aumentar mais ainda a travessia, mas tenho que seguir dentro do possível.

A NOITE CHEGA – SONO SEM FIM
Às 18 horas já está escuro e vou me preparando para enfrentar a escuridão total, colocando bóias luminosas por dentro da jaqueta e colocando a touca de lã na cabeça.
A chuva se alterna com o vento frio que sopra de SE.
As ondas estão razoáveis, mas seguindo no mesmo sentido delas, não corro perigo de virar.
- Estou com um sério problema: não consigo ficar acordado!
- Fico olhando a bússola, que é a única coisa que consigo ver no escuro e, quando me dou conta, já estou sonhando de olhos abertos. Mais um pouco, fecho os olhos e acordo sobressaltado, com o caiaque quase virando. Que susto!
- Jogo água no rosto, tapas na cara, com força até .
- Rema, condenado!
- Cara! Virou um suplício; se fechar os olhos vou virar.
- Está tudo bem, mas se virar no escuro... não quero nem pensar !
Vejo agora o clarão de Porto Alegre a boreste e um bem fraco a bombordo, deve ser Tapes, mas nada de estrelas.
Tentei colocar uma bóia luminosa na frente da bússola, mas a bóia com luz mais forte não estava nesta mochila, mas sim naquela da proa e isto pode me custar caro...
Esta bóia (com luz mais fraca) mal permitia que eu visse os graus da bússola e se não o mantivesse (o caiaque) no curso, ele poderia ficar de través (de lado) para as ondas e emborcar.
Mas tudo bem, havia o clarão de Porto Alegre que ajudava na orientação, melhor do que ficar olhando para uns míseros riscos que mal apareciam na bússola.
Comecei a inventar coisas para fazer e ficar acordado. Como, por exemplo :
Passar a mochila para frente, tira máquina fotográfica, saca uma foto, guarda a máquina, passa a mochila para as costas...
Numa destas, lembrei que trouxera um rádio; melhor, estava na mochila das minhas costas. Tri legal!
Coloquei o radinho por dentro da jaqueta e os fones no ouvido.
Consegui sintonizar na Jovem Pan FM e isto me ajudou a ficar mais ligado.
Era o clarão no céu girando ou eu mudando o curso do caiaque?
Forço os olhos, mas já não vejo mais direito a bússola. Freqüentemente tenho que ligar a lanterna grande para verificar o curso, que, invariavelmente deriva para NW. O mínimo que conseguia era 270 graus (W) e eu deveria ir para 240 (SW).
Sede, fome, cansaço, sono, sono, sono, zzzzzz....
Ah! Caiaque virando!
Acorda, desgraciado!

ESTRANHAS ILUSÕES
Estou ouvindo vozes, acho que é o rádio, depois começo a ver pessoas caminhando sobre a água, como se fosse no centro da cidade.
Será que estou sonhando? Elas conversam entre si, mas é como se eu não existisse, como se eu apenas as observasse e elas não notassem minha presença.
Serão almas penadas?
Olho para o horizonte e já não vejo mais o clarão; as nuvens baixas cobriram tudo, nunca esteve tão escuro!
Chove um pouco, depois pára. O vento diminuiu e parou totalmente, uma calmaria estranha paira no ar.
Meu mundo está reduzido ao que posso ver aqui no caiaque, vejo apenas o que está iluminado pela fraca luz da bóia luminosa: os riscos dos graus da bússola e as letras NW.
Vou remando como um robô e assim mesmo vou balançando a cabeça; se fechar os olhos, o caiaque inclina e acordo sobressaltado, enterrando o remo n’água, tentando recuperar o equilíbrio.
De repente, como num passe de mágica, tudo pára, não há ondas, nem vento, parece que estou num lugar estranho. O caiaque desliza lento sobre uma superfície de cristal. À minha esquerda parece haver o contorno de uma floresta sem fim. É bem escura e voltada para o sul.
Não me sinto mais em um vazio, há uma floresta do meu lado, vou seguindo, paralelo à ela que me acompanha neste irreal mundo da escuridão.
O que é o poder da mente... Criou uma floresta no meio do nada, pessoas passeando sobre as águas, gente conversando, imagens esquisitas. Tudo para eu não me sentir sozinho...
Onde antes havia o clarão da cidade, vejo uma coisa esquisita, não mais no horizonte, mas a menos de 500 m, fica à minha direita.
Vou passar ao largo daquilo, mas quanto mais olho, mais tenho certeza de que é uma praia de areias brancas com árvores ao redor. Ainda por cima está levemente iluminada por uma lâmpada fixada a um poste próximo da praia.
Como é que pode, nesta escuridão, haver algo iluminado ?
Lembrei que na carta náutica vi algo como um recife... sei lá !
Na foto de satélite também parecia haver algo, parecia ser um defeito de impressão; agora estou pensando que poderia ser um recife com um farol de sinalização...

- SEU IMBECIL !
- Tu estás no meio da Lagoa !
- Não tem nada aqui, parece retardado...
- Segue teu curso!

Continuo remando entre 270 e 260 graus W-SW e vou deixando aquela coisa para boreste.
Como está escuro, aquela “ilha” é a única coisa que consigo enxergar além da bússola. Quanto mais eu remo, mais aquilo parece perto
Cara, agora estou perto demais, não passa de 100 míseros metros; até consigo ver as pequenas marolas indo de encontro à areia branquinha.
É uma enseada, passo água no rosto, dou mais uns tapas na cara. Definitivamente estou acordado.
Pego a lanterna e tento iluminar a copa das árvores, mas o facho de luz não as alcança. Tenho que chegar um pouco mais perto, resolvo finalmente mudar o curso e seguir na direção da “ilha”. Toco direto para 360 graus (N).
Não vai demorar e logo poderei estar naquela areia branca, onde vou esticar as pernas, deitar e dormir só um pouquinho...ZZZZZZZ !
- ALERTA !
- CAIAQUE VIRANDO !
- CACILDA ! Quase virou, chegou a dar um mau jeito no braço tentando impedir que o barco virasse...
- E a ilha?
- Ainda está lá cara!
- Só mais um pouco.
- Mas que droga de lanterna que não ilumina as árvores...
- Baixo o olhar para a lanterna e quando ergo de novo...
- A ilha sumiu!

Paro de remar, fico olhando para a escuridão até compreender o que aconteceu.
Era o clarão no horizonte, um buraco nas nuvens que formava uma leve luminescência nas nuvens baixas; fez aquilo parecer ser uma ilha, por isso parecia perto...
Incrível, que ilusão de ótica...
Fiquei chocado, que sacanagem !
Faltava tão pouco para chegar naquela maldita ilha para descansar e me esticar... de repente eu estou mais só do que nunca e sem poder descansar, como eu desejava tão intensamente.
Só me restava retomar o curso original, mantendo o leve clarão à boreste.
Por mais algumas vezes observei a “ilha” de novo, mas só me restava rir da peça que os olhos estavam me pregando.
Em um negócio destes, o cara tem que vir preparado para todo tipo de adversidade, como ocorreu agora, de eu quase estar no paraíso de um porto seguro e a realidade me colocar de volta na escuridão, só no mundo, com meus pensamentos e decepções...
Nem pensar de ficar desesperado, tenho que suportar isto e muito mais, pois aqui o desespero mata !
Posso sentir isso, está no ar !
É o lado animal de sobrevivência que aflora em todos nós nestes momentos.


TEMPESTADE
Pelas 23 horas começa a chover bem forte, o clarão sumiu de vez, é uma escuridão incrível!
Grudo os olhos na bússola; o vento gelado vem pela popa e não incomoda, pois desvia no capuz do casaco impermeável.
Esqueçam do lago de cristal, tudo se transformou, é a Lagoa Devoradora de Homens que surge do nada. É um inferno de ondas revoltas, o caiaque corcoveia nas cristas que quebram e chicoteiam sem parar. Não tem para onde fugir, só resta enfrentá-la.
O que sempre me espantou por aqui é a rapidez das mudanças quando surge um temporal.
Estas ondas assassinas se escondem na escuridão e jogam seus punhais de lugares imprevisíveis, mas a roupa de neoprene e o casaco impermeável mantém o calor do corpo assim mesmo e os fones de ouvido despejam música neste lugar irreal e me tiram, espiritualmente, daqui.
É super estranho!
O caiaque sofre nas ondas enormes e traiçoeiras que surgem da escuridão, no uivo do vento gelado, açoitado pela chuva furiosa e de rajadas. Parece não ser real...
Os músculos se transformam em algo como máquina, vão movendo o remo sem parar, é tudo instintivo, virou sobrevivência, uma luta para não virar; já não sinto fome nem sede.
Parece que o espírito deixa o corpo ali, sozinho! Pareço estar assistindo a um filme onde me vejo em uma tela, lutando com minhas fantasias. Percebi que estou mais calmo agora do que na hora da partida, lá na margem com o Aldo.
Pelo menos agora eu sei o que estou enfrentando e antes não, por isso ficava agoniado, não sabia o que iria encontrar...
É muito mais fácil enfrentar a realidade no presente do que enfrentar o desconhecido no futuro !
Eu sempre sonhei navegar num lugar como esse, apenas com água ao redor, sem perceber terra para lado nenhum, mas numa noite de estrelas e sem vento; talvez até com uma lua cheia refletindo na Lagoa bucólica e espelhada...
Mas estou tal qual um zumbi, não posso sequer fechar os olhos. No lugar das estrelas, nuvens que quase tocam as águas e se torcem ferozmente. Em vez da lua, apenas o fraco reflexo da bóia luminosa que sequer ilumina direito a bússola. Em vez do silêncio, o barulho das ondas e o Minuano (vento) uivando sobre as ondas revoltas...
A chuva aumenta ainda mais, parece um dilúvio. O vento já não segue regra nenhuma, vem na forma de violentas rajadas, atacando de todos os lados, tentando me desorientar.
As ondas principais seguiam no curso entre 270 a 300 graus NW, então o que eu tinha que fazer era manter a proa do caiaque neste mesmo sentido.
Assim, as ondas, mesmo passando por cima do caiaque, não conseguiriam virá-lo, a menos que elas conseguissem deixá-lo atravessado. De lado seria “caixão”, fariam o caiaque rolar como um jacaré ao capturar uma presa, girando o corpo no seu longo eixo.
O problema é que a chuva estava tão intensa que eu não conseguia mais visualizar a bússola e manter o curso. Por várias vezes o caiaque ficou de lado (través) para as ondas, fui obrigado a fazer uma força incrível com o remo para impedir o naufrágio.
Baixo a vela mais ainda, mas deixo um pouco içada para que o barco mantenha uma certa velocidade e facilite algumas manobras, mantendo o caiaque no curso e um pouco mais estabilizado.
Meu desespero é tentar ver de que lado vêm as cristas das ondas maiores (que surgem do meio da escuridão). A bússola foi esquecida, já não posso mais vê-la.
Agora só me resta a lanterna grande, à prova d’água, iluminando as ondas, tentando ver sua direção. É o que não me deixa virar ainda.
Quantas horas as pilhas da lanterna irão agüentar ligadas direto? No instante que acabarem, ficarei sem referência nenhuma e, inevitavelmente, vou naufragar.
Minha vida ficará nas mãos de Deus...
Para piorar ainda mais, as ondas estão tão loucas e furiosas que parecem vir de todos os lados, já não consigo distinguir as principais, virar é só uma questão de tempo, parece que estou dentro de um liqüidificador cheio d’água e no escuro...
Estou em sérios apuros !

- Segura essa, brody!
- Ninguém vai aparecer para nos salvar!
- Agora... só tu mesmo para sair dessa...

Sabe, nesta hora, “a hora da verdade” não está me causando pavor, como eu pensei que ficaria quando estivesse de frente para a morte.
Eu já passei várias vezes por estes momentos em outras viagens e agora percebo que vou morrer com dignidade, sem pedir clemência. Apenas vou lutando para continuar vivo, concentrado apenas nisto.
Isto, de certa forma, me deixa tranqüilo, vou morrer como homem, verdadeiro descendente dos Farrapos!
Uma vez eu fiquei rezando sem parar, mas hoje nem isto. Tenho vergonha de rezar pelo Deus “chiclete”, aquele que só é lembrado na hora do sufoco, como diz o meu irmão, o Paulo.
Estou consciente de que posso morrer agora, mas estou me sentindo estranhamente calmo neste ambiente estranho e hostil.
De repente é o efeito do sono e da estafa física.
É tipo assim: tu tentas uma coisa para te salvar, não funciona; tenta outra, outra... nada dá certo, então acha que é o teu destino...
Só que quando eu não tenho mais saída, fico com uma raiva animal e luto, tal qual um possuído pelo demônio, só para provar que não vou morrer sem luta.
Os elementos vão ter que fazer muito mais do que isto para me derrotar...
Quando o tio Laerte falou, no ano passado, que eu arrepiei para atravessar a Lagoa dos Patos, eu descobri que só teria paz quando viesse aqui para o campo de batalha.
Mas nem em sonhos imaginara as situações que estou passando agora.
O rádio não me deixa ter uma noção completa da intensidade da tempestade e do vento.

29/04/2001 Domingo
No desespero em manter o caiaque no rumo, dirijo o foco da lanterna para o alto, assim posso ver para que lado as rajadas de chuva da tempestade estão se dirigindo (ao passar pelo facho de luz da lanterna). Devo seguir para esse mesmo lado, pois é o mesmo para onde as ondas principais estão se dirigindo. Não importa mais o meu curso, para não naufragar tenho que seguir no sentido das ondas, seja lá para onde for...
A chuva corta horizontalmente o facho de luz, mas parece que estou girando no meio de tudo.

NAUFRÁGIO
As horas vão passando, a tempestade iniciou por volta das 23 horas e agora, aproximadamente às 3 horas da madrugada, estou numa verdadeira luta de sobrevivência contra as ondas, a chuva e o vento.
São 13 horas remando sem descanso, quatro delas nesta tempestade que só faz aumentar, lutando contra este inimigo invisível que não consigo determinar de onde vem.
Além de tudo, o fato de estar sem dormir desde Quinta-feira, quando fui trabalhar em Biguaçu, está contribuindo para determinar meu destino, são quase três dias...
São pequenos detalhes que não observei e que podem me custar muito caro aqui.
As ondas têm, em média, uns dois metros, algumas delas uns 2,5 a 3 metros, parecem uns paredões que elevam o caiaque muito rápido. Às vezes, a crista delas passa por cima e tenta posicionar o caiaque de través para engoli-lo na onda seguinte.
Uma onda traiçoeira consegue girar o caiaque e, antes que eu o devolva ao rumo certo, uma outra, enorme, de uns dois metros e meio, termina o serviço...
O caiaque virou !
O mundo ficou de cabeça para baixo!
A única coisa que posso ver é o facho de luz da lanterna (que estava presa no meu pulso) iluminando por baixo da linha d’água, direto para o fundo...
Estou preso por baixo d’água, olhando aquela luz diferente, meio que dormindo, alheio ao que está acontecendo.
Está tudo em paz, não ouço mais o barulho de nada, nem a música do rádio, nem o vento; a chuva já não me castiga mais...
Fiquei assim até que o ar acabou, pareceu uma eternidade...
Começo a engolir água: um, dois, três goles. Preciso de ar!
- Sai daí, cara!
Desprendo-me da capa de velcro que me prende ao barco por baixo d’água e vou para a superfície revolta e escura como um breu.
Cadê meu barco, onde está a mochila que ia às minhas costas com a filmadora novinha em folha e a máquina fotográfica?
A minha salvação foi que não larguei a lanterna à prova d’água.
Com ela, posso ver o caiaque um pouco adiante, com o dorso branco virado para cima.
Está sofrendo duros golpes das ondas enfurecidas, apenas pequenas partes dele são visíveis... parece que vai afundar!
Se isto acontecer, meu destino já está traçado.
Giro o foco da lanterna para os lados e vejo a mochila quase a meu lado, rebentou a alça desta também. Não poderei mais levá-la nas minhas costas.
Um pouco adiante há duas coisas mais claras, quase fora do alcance da lanterna, são as esponjas que usava para tirar água do caiaque, estão do outro lado do caiaque e vão sumindo na escuridão.
Muitas bóias luminosas estão flutuando a meu lado, vou catando o que posso e coloco por dentro da jaqueta.
A chuva e o vento de rajadas não querem nem saber, querem dar o tiro de misericórdia!
Agarro a ponta do caiaque bem na hora que outra enorme onda tenta afastá-lo de mim. Estou impossibilitado de nadar por estar segurando a pesada mochila com uma das mãos.
Agarro o caiaque com a mão esquerda e a mochila com a direita.
O caiaque pega “jacaré” noutra enorme onda e me agarro nele com todas minhas forças; se perdê-lo agora, é morte certa! Não tenho as mínimas condições de sobreviver nesta água gelada se ficar imerso por muito tempo (hipotermia).
Se ele se afastar um pouco mais, não o encontrarei no escuro!
O remo estava amarrado por uma corda de segurança ao caiaque, mas não o encontro, nem o galão de água.
Bueno, tento desvirar o caiaque e ele me envolve com as cordas (que prendem o remo e o galão) ao rolar como um jacaré.
Fiquei preso por baixo d’água mas consigo me soltar, tento subir de novo... nada !
Estou arfando, começando a perder o controle de mim mesmo; parece que só vou me salvar se conseguir entrar no caiaque e fugir das águas que querem me levar para o fundo:

- Calma !
- Calma, seu merda!

Grito comigo mesmo, tenho que pôr ordem na casa:

- Desvira essa porcaria e não tenta entrar!
- Tu não percebes que não dá?
- É muita onda, não dá para estabilizar!

Consigo desvirá-lo:

- Isso!
- Agora joga a mochila ali dentro!
- Fica dentro d’água!
- Segura o caiaque para ele não virar de novo!

Passo um cabo de segurança na mochila, preso ao caiaque e só depois me dou conta de que eu também estou sem cabo de segurança.
Prendo o Lesh (cabo elástico que prende os surfistas às suas pranchas) no meu pulso.
O galão de água está submerso, mas preso por um cabo; o remo segue por baixo do barco, também preso por um cabo, posso senti-lo com as pernas.
Ambos estão servindo como âncora de vento, pois estão presos na popa e mantém a proa na direção das ondas principais. Dessa maneira não tem o perigo do barco rolar de novo.
A luz da lanterna só me deixa ver o caos: o caiaque cheio de água, a mochila e outros cacarecos alojados onde eu seguia sentado. A capa que ia sobre minhas pernas, está presa apenas na parte que circunda a base do mastro. O mastro e a vela ainda estão ali; o rádio deve ter ido para o espaço, só restaram os fones de ouvido, mas continuo escutando música, que troço mais punk !
Acendo a luz do relógio...são apenas três horas e o dia clareia entre 6:30 e 7 h, aproximadamente. Então serão mais umas quatro horas de escuridão
Só então terei noção exata da minha situação. Tenho que ficar vivo até lá!
Aproveito que estou dentro d’água para fazer um delicioso Mix que esquenta a barriga.
Passo o braço esquerdo por cima da caixa da bolina e o direito sobre a mochila. Do peito para baixo estou imerso na água fria, como que pendurado na borda do caiaque enquanto as malditas ondas e a chuva nos fustigam sem parar.

- Cara!
- Mantém o calor do corpo!
- Como?
- Puxa o capuz de lã por cima do nariz, assim vai reter o ar quente que sai do corpo.
- Só isso?
- Não, seu mané!
- Puxa também o capuz do impermeável sobre a cabeça e fecha na frente do rosto com a mão esquerda, daí não entra chuva nem vento e o ar quente da respiração ficará retido e vai te aquecer um pouco.
- Dizem que 80 % do calor corpóreo é perdido na cabeça e no pescoço, sei lá!
- Não é que deu certo? O ar quente da respiração foi esquentando o rosto e até me senti confortável, apesar da chuva inclemente, das rajadas de vento e das ondas que passavam por cima de mim e dos destroços.
- Agora desliga esta lanterna e guarda as pilhas para uma emergência maior.

ESCURIDÃO TOTAL – DORMINDO COM A INIMIGA

Parece incrível, mas já não me importava mais viver ou morrer, isto ficaria para depois.
Fechei os olhos e dormi de sonhar, apenas com a cabeça fora d’água.
Até agora não sei como consegui isto, mas dormi como nunca brody! ZZZZZZZ...
Acordo tremendo sem parar, como sempre não vejo nada, mas as ondas continuam passando por cima, o vento soprando forte e a corda do mastro chicoteando como uma louca enquanto subimos e descemos, além de sermos jogados de um lado para o outro.
Não é nada agradável despertar assim, melhor se continuasse dormindo, alheio a tudo que me cerca, mas é impossível !
Meus inimigos não suportam ver alguém indiferente a eles, querem ver o cara se debatendo, tremendo e pedindo o penico.
Quanto tempo será que eu dormi? Quem sabe falta pouco para amanhecer?
Ligo a luz do relógio e fico decepcionado, recém é quatro horas, DROGA!
Devo ter “dormido” por longos 30 a 40 minutos. Talvez leve mais três horas para amanhecer...
Eu não tenho nada para comer à mão, mexer na mochila da proa no meio da tempestade só vai complicar minha vida. Preciso de algo para ajudar o organismo a combater o frio.
Lembrei da água cheia de eletrólitos e sais minerais que está no galão submerso. Puxo a corda que está ligada a ele e bebo o que posso.
Bah! Foi pior!
Molhei a garganta, mas esfriou ainda mais o corpo. Solto o galão na água de novo e resolvo fazer algo.

- Deve ser assim então que os caras morrem de frio, estes que o barco vira e amanhecem mortos, agarrados no casco da embarcação...

Resolvo, pelo menos, colocar o peito sobre o caiaque, apoiando-o sobre a caixa da bolina. Assim a água escorre um pouco e aquela que sobra fica quente o suficiente para eu parar de tremer.
Ligo a lanterna e ilumino a bússola; estamos no curso NW. Apesar de tudo, estamos indo para o lado oeste da Lagoa, o que eu quero.
Só falta um pequeno detalhe...
Chegar vivo do outro lado!
Bueno, continua chovendo muito, vento de rajadas e escuridão total. Estou com o peito todo dolorido (foi por causa da latinha de atum que estava por baixo do casaco) de tanto chacoalhar nas ondas, apoiado sobre a caixa da bolina; na verdade estou todo machucado, mas a adrenalina não me deixa sentir muito.
Tenho que fazer alguma coisa. Resolvo subir no caiaque de qualquer jeito.
Jogo a mochila mais para frente, sobre a caixa da bolina, dou um belo impulso e jogo o corpo para cima.
- Que estilo!
- Tal qual um sapo velho e desajeitado pulo no caiaque e o corno rola para o mesmo lado, quer dizer: subi por um lado e mergulho, em câmera lenta, pelo outro, com as pernas para cima e sumindo na água.
Desvira caiaque, recupera coisas boiando, joga no barco e tenta de novo.
Mais uma vez isto se repete, até que, na terceira tentativa, eu consigo sentar no “cockpit”again, mas com as pernas pelo lado de fora da borda para melhorar a estabilidade.
Meu pé
Puxo a mochila para o colo, recupero o remo para ajudar o caiaque a não virar. O galão de água permanece submerso e mantém o caiaque no curso das ondas (funcionando como uma âncora de vento), assim diminui o perigo de virar, pois eu continuo não enxergando nada.
Não estou remando, apenas fico ali sentado, estabilizando o caiaque com o remo, esperando as horas passarem e tentando não virar.
Uma coisa é certa, assim não vou morrer de frio.
Apesar de ter dormido um pouco dentro d’água, ainda estou com muito sono; mas se eu fechar os olhos, vou ver tudo de cabeça para baixo de novo.
Pelo menos descobri que virar na escuridão não é o fim do mundo, este era um dos meus medos.

AMANHECE - O MUNDO É CINZA E BRANCO
O tempo parece interminável, ficar acordado nesta escuridão e sem poder remar por causa da volumosa mochila no meu colo, torna tudo monótono, difícil ficar com os olhos abertos.
Quando amanhecer, terei de prender a mochila na popa, pois com a alça rebentada, não poderei levá-la nas costas. Fazer isto no escuro, em plena tempestade, é impossível.
Remar com ela no colo é impraticável.
Foram duas horas e meia esperando que a luz do dia me desse condições de enfrentar meu inimigo oculto em melhores condições. Assim como estava, era muita covardia.
Finalmente, às 6:30 h já posso ver tudo com nitidez, agora meu inimigo oculto já não pode mais me atacar de surpresa.

AS ONDAS
As ondas estão enormes, com uns 2 a 3 metros; é incrível!
Tem ondulações gigantes, ondas que vêm quebrando de longe, fazendo um ruído amplificado de água fervendo.
Outras ondas parecem carros de corrida, com muito mais velocidade que as outras, passando rápidas como um foguete.
Existem umas menores que, perdidas no meio de tudo, vão se chocando com as outras.
Da colisão entre elas surge um jorro de água que é arremessado verticalmente para cima. Aí chega o vento e espalha este jorro para os lados e torna tudo isto numa barafunda terrível.
Eu vou assistindo a isto tudo estupefato, é um mundo completamente diferente para mim.
A chuva diminuiu muito, mas o vento de rajadas continua.
São montanhas e mais montanhas de água que mudam de forma a todo instante; para onde quer que eu olhe só vejo esta desordem incalculável da natureza.
Aliado a isto, grossas nuvens vão se torcendo sobre as águas, tornando o mundo cinza e branco.
As únicas coisas coloridas aqui são eu e o caiaque!
Somos “estranhos no ninho”.

BOMBEIROS ?
Devo estar próximo ao centro da Lagoa dos Patos, não morri, mas pode ser apenas uma questão de tempo.
Estou moralmente abatido, sem forças e desesperado só com a idéia de passar outra noite aqui, não tenho mais como calcular onde estou, mas o curso da tempestade está me levando mais para o norte de onde planejei chegar e vai aumentar ainda mais a distância da travessia. Consequentemente, irá aumentar o tempo também.
Preciso desesperadamente dormir. Cometi erros infantis por pura falta de reflexo; tive alucinações e não sei se tenho condições de continuar vivo até chegar em terra firme.
Decisões difíceis têm que ser tomadas, acho que não existe coisa pior para um aventureiro do que pedir ajuda, admitir que já não pode mais...
Pego o celular na mochila, como um derrotado ligo para o 190.
Enquanto aguardo, penso no que vou dizer aos bombeiros:

- Alô ?
- Aqui é um imbecil de caiaque no meio da tempestade em algum lugar da Lagoa dos Patos...
- Vocês podem fazer alguma coisa?

Ainda bem que não tinha sinal!

- Te vira, bunda mole!
- Pediu arrêgo?
- Não me faz te pegar nojo!

- É isso aí cara !
- Não te entrega !
- Tu és ou não és um taura gaúcho, macho e gremista ?
- Vão dizer para os teus sobrinhos que o tio deles não era um super herói em quadrinhos de verdade !
- Que as estórias que ele narrava eram apenas fantasias...

Estou há mais de 24 horas sem comer nada além daquela latinha de atum, preciso dar condições ao corpo para prosseguir.

ARRUMANDO A CASA – BANQUETE DE...ÁGUA
Eu sei o que tenho de fazer e não posso mais vacilar.
Salto na água gelada e o corno do caiaque vira.
Desviro o Náutilus e vou, a nado, para a proa pegar comida na mochila da frente.
Foi uma dificuldade terrível, só com a cabeça para fora d’água, segurar o caiaque para ele não virar, afastar o extensor que prendia a mochila, abrir o fecho, afastar as coisas dali e abrir a tampa da caixa plástica para tirar dali algumas coisas: um salamito, uma garrafa de licor de pêssego, um pedaço de queijo defumado e uma... não, melhor duas; isto, duas barras de chocolate.
Já estou rindo antecipadamente com o sonhado banquete. Jogo as guloseimas no local aonde vão os pés, por baixo da capa que coloquei no lugar, presa pelos velcros nas bordas e que impedem a entrada da água (teoricamente).
Agora tenho que prender a outra mochila na popa, para poder remar de novo. Melhor beber algo antes.
Puxo o cabo do galão para beber o que puder do Marathon, mas percebo que à noite, quando bebi no sufoco, esqueci de colocar a tampa no galão e agora ele está cheio de... água!
- MERDA!
Bueno, agora ele se transformou em algo inútil, não tem porque levá-lo comigo, é melhor deixá-lo seguir ao sabor das ondas. Desato o nó e deixo que ele siga seu destino.
Tento colocar a pesada mochila no local do galão de água; foi difícil mas consegui. Prendo-a com um lesh de segurança, como está presa a da proa.
Tenho que nadar para a proa, pegar outro extensor, voltar para a popa e prender com mais segurança a pesada mochila, pois se ela cair dali, não perceberei por estar às minhas costas e aquela filmadora custou uma nota, isto se a caixa estanque de acrílico que fiz para ela impediu a entrada de água.
Missão cumprida!
Agora é só entrar no caiaque e comer... YES !
Parece fácil, mas perdi uma hora dentro d’água nesta faxina e estou tremendo sem parar, tenho que subir logo...
Cara ! tentei subir no caiaque e o corno virou...
Uma, duas... três vezes!
Muitas coisas estão boiando ao redor e as ondas vão levar embora se eu não recolher logo, desisto de subir e vou nadando, recuperando algumas bóias luminosas que jogo por dentro da jaqueta, idem para uma caixinha com tampões de ouvido que ganhei do Fred, em Floripa.
Vejo uma coisa preta boiando no alto de uma onda, há uns dez metros no contra vento. Pode ser importante e penso em ir até lá a nado, mas só uma experiência pavorosa que tive certa vez com uma bóia, me impediu de abandonar o “navio” e nadar naquelas ondas enormes e deixar o caiaque. E se eu não conseguir alcançá-lo depois?
Nado até a popa e lá atrás encontro o termômetro do barco, preso pelo seu velcro ao velcro de um lesh que estava solto, ficou preso ali por acaso, estava boiando... Essa foi demais!
Consigo subir no caiaque, por cima da capa mesmo, após mais três tentativas.
O caiaque está cheio de água, pesado e difícil de controlar, mas não tenho mais como esvaziá-lo, pois as esponjas sumiram na escuridão durante o naufrágio e a latinha de atum (que eu levava no peito) me machucou tanto quando eu estava apoiado na caixa da bolina, que a joguei fora no auge da tempestade.
Ainda chove, mas não tão forte, o vento continua. As ondas estão enormes, mas não me metem medo agora que posso vê-las e colocar o barco na direção correta.
Agora vou remando com muito sacrifício no contra vento atrás da coisa preta. Foi extremamente desgastante, mas consegui chegar no objeto; era a minha touca de neoprene, que eu não estava utilizando por ser desconfortável; melhor a touca de lã que, mesmo molhada, era confortável.
Bueno, agora preciso entrar por baixo da capa, ajeitar a vela e seguir em frente.

ROUBADO!
Súbito me lembro:
- A comida!
Olho por baixo da capa, no setor dos pés, e não vejo nada...
Tudo se foi !
Parece um pesadelo... CARAJO !
Olho em volta. Sem comer, cansado, com sono, enfrentando esta tempestade...
- Sabe, cara!
- Quando as coisas estão assim, tão contra, tudo parecendo perdido...
- Tudo que eu faço, tentando me salvar...
- E essa desgraçada querendo me destruir (como diz o brody Bello).
- Golpeando, roubando minha comida e as esperanças...
- Vai despertando aquela raiva cavalar que sempre me deixa viver mais um pouco.

- TU VAI VER SÓ MALDITA !
- DESGRAÇADA !
- EU NÃO VOU ME ENTREGAR !
- TU VAI TER QUE FAZER MUITO MAIS DO QUE ISSO PARA ME LEVAR !
- AGORA TU ME IRRITASTE DE VERDADE !

- É isso aí, cara.
- Sem bombeiros, sem ninguém!
- Vamos sair dessa!

Na falta de comida, vou encher o estômago com água.
Com as mãos em concha, vou bebendo água da Lagoa, faz de conta que é um café quentinho, cheio de açúcar.
Consigo enrolar a vela, ajeito tudo e, às 7:20 h, começo a remar de novo, entre 280 e 290 graus NW, é o máximo que consigo ir para bombordo por causa do vento e das ondas.
Não tenho a mínima idéia de onde estou, mas com certeza estou bem mais ao norte do Pontal de Sto. Antônio, para onde queria ir originalmente. Dali, contornaria o Pontal e iria, já mais em segurança, rumo a Tapes.
Não tenho a menor intenção de pular na água de novo para pegar mais comida, se for o caso, faço isto antes do anoitecer.
Agora volto a fixar o olhar na bússola e remo sem a pesada mochila nas costas, apesar de remar com o caiaque cheio d’água, pois não tenho mais como esvaziá-lo.
Nem ia adiantar muito o fato de poder esvaziá-lo, pois a chuva, aliada com as ondas que passam por cima a todo instante, iriam enchê-lo de novo em fração de segundos...
Pelo menos sigo a favor do vento, isto é o que importa.
Aproximadamente às 9 h consigo avistar o morro da Ponta da Formiga para boreste, talvez a uns 40 ou 50 km.
Logo em seguida ele some, encoberto pelas nuvens que seguem se retorcendo sobre a Lagoa...
Dei uma mancada, prendi a máquina fotográfica junto com a mochila que prendi na coberta da popa; agora não posso tirar fotos.
O fecho da roupa de neoprene (que fica nas costas) está me machucando bem na coluna e tenho que remar meio torto para não ficar pior do que está.
Estou me sentindo muito fraco, mas chega num ponto de estafa em que o cara já não sente mais nada.
O espírito parece abandonar o corpo que fica ali sozinho, a remar sem parar.
Começo a lembrar de outras viagens, de churrascos com a família, dos meus amigos irmãos de Floripa, do sócio (o Aldo) tremendo sem parar e com pressa de me largar logo para se mandar daquele sufoco... aquele fresco!
Só ele mesmo para se meter naquela fria. Já deve estar em Floripa...
É um baita amigo!
E o brody Paulo? Ia passear com as crianças na serra.
Ninguém imagina o que estou passando aqui, eu disse que a travessia iria durar três dias.
Então, até alguém se preocupar de verdade, eu já terei passado desta para uma pior.
Posso morrer em questão de horas. Daqui a dois dias um “mar” já terá passado por baixo do caiaque.
Então, meu amigo, conta só contigo mesmo...
Rema esse negócio até onde tu agüentares, porque já estou quase desmaiando de sono e não posso fechar os olhos.
Lembra, quando o tio Laerte mandou tu colocar uns flutuadores para estabilizar o caiaque? Iriam ficar como uma “luva” aqui, poderia dormir...
Agora, my friend... ajoelha e reza. Mas não dorme!
Absorto nos pensamentos, não percebo que o caiaque vira de lado. Uma enorme onda cresce para cima de mim. Mal tive tempo de cravar o remo para corrigir um pouco, mas foi insuficiente. A onda vem com tudo e joga a crista por cima.
Para impedir o naufrágio, jogo o corpo para o bordo contrário para o qual a onda me joga. Resistimos a esta verdadeira enxurrada e retornamos para o curso.
Já estou há quatro horas remando sem parar, estou sem forças e a ponta dos ombros está extremamente dolorida, acho que não vou agüentar muito mais,
Paro de remar um pouco para beber mais água da Lagoa:

- Droga ! Lembrei do licor de pêssego...
- Bem feito, seu olho grande!
- Quem mandou pegar a garrafinha cheia? Perdeu justo a mais cheia, a outra, que estava pela metade, tu nem olhou...
- Quem mandou pegar duas barras de chocolate?
- Perdeu tudo!
- Além do sono, fiquei com desejo de comer aquele salamito... era do tipo Milano, uma delícia!
- E o queijo defumado?
- Tomara que esta Lagoa fique com uma tremenda dor de barriga!

Começo a ter sono de novo e não tem tapa no rosto e nem água gelada, que jogo toda hora na face, que deixe o sono para trás.
A coisa ficou incontrolável e quase virei por três vezes, o bom destes sustos é que a cada vez que ocorre, a adrenalina me mantém um pouco mais acordado.
Tenho que fazer algo! Ou chego hoje ou não vou amanhecer de novo.
Até poderia me atirar n’água e dormir uns 30 min, mas vou perder muito tempo e isto pode determinar minha sobrevivência.

ARMANDO A VELA - MEU ÚLTIMO CARTUCHO
Este vento está a favor agora. Como estou sem a pesada mochila nas costas, consigo retirar o mastro do lugar, arrumar a vela (rizada) e tentar tirar proveito dos recursos de que disponho.
Pelo menos a faxina de recolocar a vela no lugar e tentar outra alternativa me mantém distraído e desperto.
Agora, com a vela ajudando no curso, posso parar de remar um pouco e dar uma folga para os pobres ombros detonados.
Seguindo em frente, para enganar o sono, vou alternando; fechando um olho de cada vez, tentando descansar a visão.
Nem olho mais para frente, meu horizonte são as linhas verticais da bússola (localizada entre os joelhos). Tentar enxergar algum ponto de referência ao longe cansa os olhos.
Se olhar para o horizonte, fico vendo terra a todo o momento, pois as ondas tornam o horizonte muito irregular, parece que há terra e na verdade são as ondas.
Bueno, o vento está muito forte, mas resolvi arriscar tudo para seguir mais rápido ainda; é virar ou chegar.
Abri a vela totalmente, nada de vela rizada...
E dá-lhe velocidade!
Vamos apostar de novo, seu André. É tudo ou nada!
O vento está fortíssimo, mas não vou baixar a vela; tenho quase certeza de que não vou resistir outra noite por aqui. As ondas estão cada vez maiores e o vento só faz aumentar.
Mesmo assim, não é difícil manter a situação sob controle se eu mantiver o curso a favor das ondas, assim não corro o risco de virar. Mesmo que parte delas passe por cima, o caiaque se comporta como se fosse a Corveta Imperial Marinheiro no mar (como nos meus tempos de Marinha), ele mergulha de proa nas ondas e emerge, jogando a água para os lados.
O meu grande problema é que não consigo ficar cinco minutos sem que cochile de olhos abertos. Aí fica perigoso, pois entre seguir numa boa e virar de novo não precisa mais do que 10 segundos.
É o que dá fazer tudo em cima da hora, não dormi antes e agora isso virou um suplício.
Assim vou seguindo, as horas vão passando até que, às 12:30 h, tenho quase certeza de que vi terra.

- Cara, deixa de ser jegue!
- Aquilo que tu viu é ilusão de ótica!
- Eu já te falei para não acreditar...
- Tudo bem, tu tens razão. Mas e daí?
- Fica no meu curso, então posso ir mais rápido.
- Certo?
- OK! Você venceu!
- Go ahead, boy!


PERSEGUINDO HORIZONTES
Vou mantendo o curso entre 290 e 300 graus NW, não consigo seguir para SW, pois fica no contra vento. Isto torna a travessia mais longa ainda e o tempo para atravessar também, mas que remédio?
Já estou desistindo de seguir para Tapes, pois o que realmente eu queria era atravessar a Lagoa; é minha última peleia por estas plagas...
Daqui para frente, quero paz e tranqüilidade (me engana que eu gosto).
Como é gozado o cara olhar para o horizonte e achar que está vendo terra, mas na verdade o quê se vê são as enormes ondas que deixam a linha do horizonte completamente irregular. Aliado a isto, as luzes e sombras das nuvens e das ondas dão a impressão de haver terra em algum ponto.

- Não pode cara!
- Tu fazias 20 a 25 km/dia na viagem do ano passado e essa travessia, com a deriva causada pela tempestade vai dar, no mínimo, setenta quilômetros...
- Com certeza serão dois dias de viagem, no mínimo um dia e meio.
- Isto significa que, pelo menos, terás que enfrentar outra noite por aqui.

O problema é que estou muito fraco pelo esforço que fiz, pela falta de comida e pelas três noites e dias sem dormir.
Com estas ondas e com o vento que está fazendo, é melhor nem tentar pegar comida lá na proa. Algo ruim pode acontecer!
Já começo a me preparar psicologicamente para o fato de ter que enfrentar outra noite, sem entrar em desespero.
Terei de pular n’água, pegar comida na proa, achar as bóias luminosas com luz mais forte (para colocar na frente da bússola), amarrar meu corpo no caiaque e dar um jeito de não dormir; mas isso eu acho impossível.
Sei lá, como sempre foi nas minhas aventuras, vou deixar para agir quando as coisas começarem a acontecer.
É o meu destino!
O “PINHEIRINHO”
Para meu espanto, às 13 h, aproximadamente, vi a costa, com certeza! Na verdade foi um ponto escuro na linha do horizonte.
Logo ele sumiu de novo, encoberto pelas nuvens baixas e pela chuva inclemente.
Antes de sumir, consegui identificar o “pinheirinho”, na verdade, um eucalipto que cresceu bem na margem e que se destaca como um ponto notável. Só pode ser ele!
Esta região é muito desabrigada, apenas dunas e campos, péssima para acampar.
Se eu derivar para a direção do acampamento de pescadores (Panelinha), próximo da Ponta da Formiga, onde dormi no ano passado, ficará muito mais distante. Foi por ali que morreu um dos caras de caiaque (durante uma tempestade) que viajavam em dupla e os quatro pescadores profissionais.
Nem pensar, nem cogitar de ficar outra noite aqui. Acho que estou no meu limite.
Sei que ali no pinheirinho existem umas pequenas árvores protegidas pelas dunas e que me proporcionarão um baita abrigo contra esse vento.
Ali dormi, por ocasião da viagem de windsurf, no inverno de 1985 (Chuí – Porto Alegre ; 19 dias).
Dormi sem armar a barraca, apenas com um plástico por baixo do saco de dormir, sob a proteção das pequenas árvores e do teto de estrelas, foi lindo! Nesta noite, um gambá ou bicho parecido pulou por cima de mim.
Antes do pinheirinho sumir, marquei o azimute (curso) na bússola:

- Quantos graus, senhor?
- 270 graus, W puro!
- Afirmativo, positivo, operante!
-
A LENDA
Foi uma briga bruta e feia!
Cenas de batalhas tão sangrentas que fariam muitos tauras calejados virarem o rosto para o lado.
Lanças (ondas) e espadas (o remo) se cruzaram em um pavoroso duelo de vida e morte. Desse embate heróico ficou a lenda, contada em verso e prosa pelos mais velhos (nos galpões de estância).
A estória dessa luta desigual é contada de geração em geração.
Até hoje os descendentes dos valorosos Farrapos se reúnem à volta do fogo de chão, para contar os causos de chefes Farroupilhas como: Garibaldi, General Neto, Bento Gonçalves e um tal de Tenente Issi.
Diz a lenda que esse Tenente Issi, totalmente inferiorizado, cansado e sem comida, não se entregou por um momento sequer.
Totalmente sitiado pelas forças inimigas travou um combate suicida que surpreendeu as forças imperialistas, conseguindo furar o bloqueio imposto por elas.
Assim, venceu os inimigos das trevas (almas penadas e ondas assassinas) e lutou com valentia contra os milhares de soldados da Lagoa Imperialista (ondas gigantes e o vento uivante).
Provou que era um digno filho dessa terra de bravos e honrou as tradições gaúchas de lutar até o fim.
Dizem que é parente distante de Giuseppe Garibaldi, o herói naval da Revolução Farroupilha.
Quando o velho ancião (com a pele ressecada pelo tempo e iluminada pelo fogo de chão) termina o relato, todos baixam a cabeça e se calam respeitosamente.
Mas se algum taura ousa contestar, o velho brada em seguida:

- GUERREIROS... EU VI !

JÁ NOS DESCONTOS...
O vento está fortíssimo, a vela parece que vai rasgar, mas tenho que manter o curso. O problema é que, mesmo de proa para o pinheirinho, o caiaque vai sendo jogado de lado mais para o norte; é o efeito da correnteza!
caiaque
“pinheirinho”Em navegação isto é uma coisa normal, mas aqui isto parece mais uma implicância da Lagoa que quer me jogar para um local desabrigado, para que eu não tenha paz.

- Ah, não!
- Quero ver, sua maledeta, se eu não chego no local aonde eu quero!
- Estou no fim, mas não estou acabado!

...E vou enfiando o remo com raiva, travando com força por bombordo, evitando a força do vento que tenta empurrar a proa para 300 graus NW.
Meu pulso está extremamente dolorido, as mãos estão pavorosamente enrugadas pelo fato de estarem a quase 24 h imersas. As pontas dos dedos estão inchadas e vermelhas pela força que vou fazendo ao segurar o remo sem descanso. Não é mol...
Acontece que se esta Lagoa pensa que vou fraquejar agora, está completamente enganada!
Segurando pelas crinas, vou mantendo meu “cavalo baio” em 270 graus W!
Agora a costa está bem visível e não some mais.
Posso ver o pinheirinho através da janela da vela, um pouco disforme, mas o suficiente para esquecer da bússola e manter o curso visualmente. Ele aparece como um borrão escuro por trás do plástico transparente da vela.
Logo, meus olhos cansam de ficar olhando para aquele borrão no horizonte e volto a cuidar o curso apenas pela bússola.
Apesar de poder estar vendo a costa, lidando com as ondas furiosas e com os respingos que as rajadas me jogam no corpo, não consigo manter os olhos abertos.
Fecho os olhos e quase viro várias vezes, é incrível...
Pontal de Sto Antônio
Aqui a tempestade alterou o curso

COMO É BOM GANHAR...
A costa vai se aproximando inexoravelmente, não estou acreditando...
São 3:30 h que se passaram desde que eu a vi pela primeira vez, foi uma vida...
Afrouxo o velcro da capa que fica sobre minhas pernas, tenho que saltar rápido quando chegar próximo da margem.
Há uma loucura de ondas furiosas e espuma para todos os lados, mas isso nem de longe me amedronta!

- É isso aí, cara!
- Entra de bico e salta rápido!

Tudo bem, entrei de bico!
Mas na hora de saltar rápido...
Estou quase com câimbras, todo machucado, com os joelhos dobrados há quase 24 h... não consigo!
Uma das ondas inicia a virar o caiaque para boreste e eu me jogo n’água por bombordo.
Dentro daquele reboliço de ondas e espumas consigo me esticar.
Nado na direção do Náutilus antes que ele chegue em águas rasas, pois ali muitas coisas podem quebrar nas ondas e no fundo.
Afinal, o mastro de quase dois metros está virado para baixo.
Consigo desvirá-lo e deixo que siga e encalhe na praia.
Assim que tomo pé, vou seguindo na direção da praia:

- Que dor nas costas, nas pernas, joelhos, por tudo...

Algumas coisas ficam boiando nas ondas, mas virão para a praia. É só recolher depois.

Dou um berro de Tarzã, que acabou de abater um inimigo !
Bato no peito, fiquei macho!
Faço uma figa para a Lagoa.

EU VENCI !
YES !
São 14:20 h! Foram 24 horas...
Pulo de alegria, grito sozinho, como um louco ali na beira.
Nenhuma alma por perto, apenas vento, chuva e dunas...
Depois da alegria, abro a caixa de acrílico onde estava a filmadora, na mochila que mergulhou várias vezes...
Não é que funcionou? Está tudo seco.
Filmo a chegada, mas a chuva vai molhando a lente.
Comida !
Abro a mochila da proa e corto um pedaço gigante de salamito.
Vou devorando aquilo como se fosse a coisa mais importante do mundo.
- Cara, deu uma acidez no palato!
Depois um pedaço de queijo defumado... HUMM! Delícia!
Agora um gole de licor de pêssego. Mais uma mordida no queijo... não, primeiro outro pedaço de salamito!
Agora outro gole de licor. O licor desce, acariciando a garganta.
Retenho outro gole na bochecha e vou sorvendo bem devagar este néctar dos deuses.
É a melhor coisa do mundo para mim, agora !
Estou rindo sozinho!
- Não acredito !
- Atravessei a Lagoa dos Patos em 24 horas...
- ...E com tempestade!
- Não tive moleza. Só eu sei o que se passou lá no meio.
- Foi uma batalha interior, acima de tudo.
- Mais uma vez enfrentei meus medos de frente.
- Vi a cara da Morte (a “véia” da foice) e não me apavorei!
- É isso aí, brody!
- Estou muito orgulhoso de ti, cara!

Lembrei do tio Laerte. No ano passado ele falou que eu arrepiei para atravessar...
Taí, ó! Segura essa, veinho! He, he...
Não vi um navio sequer, barco de pescadores menos ainda, ninguém sai com tempo assim.
A Lagoa está furiosa!
Olho para o horizonte, não dá para acreditar que enfrentei isso tudo em uma noite infernal de ondas, ilusões e vontade de viver.
Daqui da beira, parece ser pior ainda, só se vê o horizonte revolto e sombrio...
Um estranho mundo cinza e branco!
Dizem que sou suicida, mas qual o suicida que luta tanto para viver?
Definitivamente isto é aventura, não chamem de loucura o que não conseguem explicar!
Nem eu sei porque faço isto, mas a paz interior que sinto depois é uma coisa infinita...
Sensação de poder, de não ter medo de enfrentar a vida, mesmo com tudo que ela trouxer... Utilizando as dificuldades que passei nas aventuras como sinais indicando para onde devo seguir, demonstrando o que realmente tem valor na vida.


EM UM DIA DE TEMPESTADE...

Quando longe da margem, navegando sem direção,
Vi lindas nuvens, ondas e estranhas ilusões.
Esqueci da morte, angústias e tempestades,
Não esperava me encontrar na imensa solidão!


Lagoa dos Patos, um mar, um instante
Tantos mistérios, tantas lendas...
Hoje, te conheci mais um pouco;
Tua beleza, a fúria, o temperamento...


A rotina diária, sentença árida,
Não deixou saudades.
Não , não posso sonhar,
O que eu tinha, o que era, ficou para trás;
São momentos cercados de névoa,
Marcas perdidas no tempo!


O uivo do Minuano e o das almas, na cava das ondas,
Vai gelando meu coração.
Ondas gigantes, imprecisas...
Estranhas ilusões, amigas;
Companheiras na escuridão!


Meu barco elevou-se de águas agitadas (a vida)
E pude olhar mais do alto.
Como posso lembrar da Morte,
Se me ensinas o sentido da vida?


Hoje voei em busca de horizontes,
Muitas milhas além do firmamento.
Vela solta ao vento, a gaivota (na vela),
Ela foi meu pensamento.


Obrigado Senhor,
Por me permitir vislumbrar a beleza
Onde outros só enxergam a loucura.
O verdadeiro sentido das coisas!

O corpo sofre, ri,
Não tem consciência,
O espírito vê o que sente,
Encontra a beleza

Na rota das aventuras fui recompensado;
Para realmente viver,
Basta esquecer do barco (a rotina)
E seguir para o infinito...

Isto eu escrevi na viagem de 1984 (Rio Grande – Porto Alegre) quando quase morri indo salvar o Júlio Paulo de uma tempestade que se aproximava. Ele estava de caiaque e eu de windsurf, só que ele já tinha se dirigido para a margem e eu não vi; segui em direção do centro da Lagoa no intuito de salvá-lo e a tempestade me pegou. Fiquei mais de 5 h no miolo da tempestade, no escuro, na altura de Arambaré.
Agora passei por isto de novo (em uma escala maior) e o que escrevi àquela época, agora se encaixa como uma luva.
Esta travessia me deu paz no espírito, agora posso viver em paz.
Foram cinco viagens, aproximadamente 2000 km navegando por aqui. Acho que deu!
Vou para casa e a Lagoa continuará por aqui, um lugar místico e pleno de estórias de heroísmo, lugar de batalhas memoráveis dos Farrapos, das lutas e dos mortos que por aqui tombaram...
Muita gente morreu por aqui ao longo dos tempos, Farrapos, pescadores, aventureiros e navegadores, talvez até nesta tempestade...*
Mas eu estou vivo para contar a estória; não foi dessa vez!
- OBRIGADO, SENHOR !
* Um pescador morreu nesta noite, foi encontrado a dois quilômetros de seu barco; o jogo de futebol do Grêmio em Porto Alegre foi
transferido devido ao temporal.
· Em Setembro de 2001, dois amigos que pescavam na margem leste morreram a 500 m da margem quando seu barco desgarrou com o vento. O local foi o mesmo de onde eu iniciei a travessia.
· Próximo da ponta da Formiga, a menos de 20 km daqui, dois caras que viajavam de caiaque foram pegos por uma tempestade, um deles morreu. No mesmo temporal virou um barco de pescadores profissionais; mais quatro morreram...
· Um avião de caça da FAB caiu na Ponta das Desertas, nunca foi encontrado...
· A Lagoa Devoradora de Homens está repleta de estórias semelhantes.

SOB AS MOITAS - NAS DUNAS
É isso aí, brody! A vida continua...
Preciso me abrigar dessa chuva. Carrego as mochilas para o abrigo das pequenas árvores nas dunas.
É incrível, ali não tem vento mesmo!
Depois arrasto o caiaque contra as ondas até um local mais próximo do acampamento; foi difícil e isto me custou uma distensão na virilha.
Minha mão direita está em carne viva, pois perdi a luva lá no meio e machuquei a mão ao abrir a tampa da caixa estanque da filmadora.
As pontas dos dedos parecem inflamadas de tanto fazer força com o remo. Estão vermelhas e inchadas.
O meu binóculo novo (de R$ 200,00) encharcado, algumas roupas, pilhas, baterias e outras porcarias molhadas; estavam nos sacos que eram para serem impermeáveis.
Os cortes que fiz nos pés lá do outro lado estão infeccionados.
São, aproximadamente, 16 h, parou de chover, mas o vento é forte pra caramba; não dá nem de pensar em sair daqui.
Ao tentar subir no caiaque durante a tempestade, a bússola de pulso me cortou. Ainda bem que eu trouxe rifocina, é só o que tenho para as feridas. Tomei uns remédios para a gripe, só por precaução, pois é muito difícil ficar resfriado quando estou viajando, mesmo que passe uma noite encharcado. Estou machucado nas costas, bem onde o fecho da roupa de neoprene entrava em atrito com o caiaque. Por isto eu remava meio de lado.
Coloco a roupa seca que estava em um saco plástico no compartimento estanque do caiaque, sequei-me com a toalha de borracha.
Vou ajeitando tudo ao redor e pendurando ao vento sobre os galhos de arbustos.
Encontro um pote de damascos... cara, manjar dos deuses! Matou a vontade de comer uma fruta. Depois abri um chocolate.
Agora estou melhor.
Sobre o local onde vou dormir, coloquei a vela do caiaque e no chão estendi o plástico; sobre ele estendo o saco de dormir. As mochilas ficam ao meu lado junto ao pé da árvore, apoiadas sobre as raízes.
Na verdade, esta árvore é formada por um conjunto de vários galhos que se ramificam e formam uma cobertura perfeita sobre este lado da duna, que fica abrigado do vento do outro lado, de frente para a Lagoa. É uma verdadeira trincheira contra os ventos do quadrante leste, tanto SE quanto NE.
Aproximadamente às 18:30 h vou dormir. O corpo todo dolorido não me impediu de dormir por doze horas seguidas !

30/04/2001 Segunda-feira
Despertei por volta de 6:30 horas, um tempo feio e com o vento tão ou mais intenso que ontem. Ondas e mais ondas se atiram, furiosas em direção da praia.
Aqui nesta trincheira o abrigo contra o vento foi perfeito. Ao lado, um pouco mais abaixo entre as dunas, passa um pequeno riacho, está cheio de pontos d’água.
A chuva inutilizou a filmadora, diz o aviso na tela que há condensação.
A máquina fotográfica não quer rebobinar o filme que terminou; o binóculo está cheio de água por dentro, acho que já era!
Perdi o rádio, algumas bóias luminosas, as lentes dos óculos antibrilho (que nem cheguei a utilizar e que estavam pendurados no pescoço) se foram, só restou a armação.
Uma pequena calculadora e o relógio do compartimento da bússola também se foram.
Adeus, companheiros!
Preciso de água; termino de beber o licor de pêssego (IC !) para liberar a garrafinha e vou pegar uma água mais limpa que a da Lagoa.
Cavo um buraco na areia da duna, bem onde a água aflora na areia. O buraco se enche de água limpa e vou enchendo a garrafinha com a tampa da bóia luminosa.
Deixei tudo que molhou pendurado nos galhos, voltado para o vento.
Ligo para o brody Paulo; eles já voltaram do passeio e ele diz que a Helena teve um sonho ruim.
Ela sonhou que eu estava perdido nas ondas, em maus lençóis...
Quando eu me acidentei de carro, minha prima Ligia sonhou comigo. No sonho dela, eu estava coberto de sangue... ela chegou a sentir o gosto na boca.
Em ambos os casos a realidade foi igual aos sonhos...
E agora tchê? Como explicar?
Falo que estou preso aqui, não há fazendas por perto, só dunas.
A Helena fala em resgate. Digo que nada mais importa agora, estou completamente seguro aqui e para quem quase morreu, eu tenho todo o tempo do mundo...
Pode soprar o vento que for, ergam-se as ondas mais violentas. Eu já estive lá no meio delas, com fome, cansado, enfrentei-as no auge da tempestade, tanto de noite quanto de dia, agora posso olhar para o horizonte sombrio do alto da duna e dizer: Eu venci!
Como é bom ganhar !
Vou ficando por aqui até esse vento acabar (ou minha paciência) e decidir para onde vou, se para o norte (Ponta da Formiga) ou para o sul (Tapes).
Estou bem mais próximo da Ponta da Formiga, creio que, com tempo normal chego em duas horas no acampamento dos pescadores onde dormi ano passado. Dali posso pegar uma carona até Itapoã e lá o Paulo me pega de carro. Tenho que trabalhar na Quinta em Floripa, portanto...
Para Tapes a tarefa será dobrada, acho que não vai dar tempo. Bueno, depois decido!
Vou olhar as coisas que coloquei para secar.
Não acredito! O binóculo está secando, as lentes estão quase secas.
A máquina fotográfica, depois de umas “carinhosas pancadinhas” rebobinou o filme e voltou a funcionar. Para completar, a filmadora secou e voltou a funcionar. A força do vento é impressionante! Pelo menos serviu para alguma coisa.
Achei uma cadeira sem encosto na praia e agora tenho onde sentar. Quando chove, sento sob a vela do barco que funciona como toldo e permaneço seco. Tri legal!
Na parte da tarde a chuva deu uma trégua e resolvi explorar os arredores com o binóculo, já seco, para descobrir se havia algo por perto.
Hoje o dia está perdido, fica mais difícil seguir para Tapes a partir de amanhã e retornar para Floripa, é mais fácil seguir para Itapoã.
Não será agora que vou rever minha princesa. As torres do Castelo estão muito distantes e nosso super herói em quadrinhos terá muitos inimigos para abater antes de chegar.
Vou lá na beira, onde está o caiaque e ajeito uma esponja para as costas e o bumbum.
As coisas pesadas poderão seguir nos compartimentos estanques, assim baixará o centro de gravidade, melhorando a estabilidade. Deixo tudo pronto para partir assim que o tempo melhorar.
Coloco pilhas novas na lanterna que salvou minha vida.
Lembrei de uma coisa incrível!
Eu estava no meio da tempestade, não conseguia enxergar a bússola direito por causa da fraca luz da bóia luminosa, por causa disto não conseguia mais manter uma rota segura.
Acontece que, no bolso da jaqueta, estava uma potente lanterna pequena, também à prova d’água... Bastaria ter colocado ela de frente para a bússola que teria iluminado até a alma do caiaque...
Como é que eu não me lembrei disto no sufoco?
Poderia ter morrido por causa disto...
Só pode ser por causa da sonolência, o cara perde a capacidade de raciocínio.
A lanterna pequena se foi durante o naufrágio.
É isso aí brody, podia ter morrido... Mas a raiva assassina me tirou de lá!
Agora estou aqui, sem a mínima chance de me dar mal; chegar em algum lugar é só questão de tempo.
Ao falar com o Paulo, o celular ficou praticamente sem bateria, tive que desligar rápido para usar em uma emergência.
Volto para o caiaque e arrumo o que secou. Vou dormir embaixo da árvore de novo, parece que não vai chover.
Já estou de saco cheio, meu pé direito infeccionou e tenho que sair daqui. As pontas dos meus dedos já não doem mais e desincharam, posso remar numa boa, mas com estas ondas assassinas não dá para sair. Droga!
O resto do dia passo de binóculo, avaliando a distância ora para a Ponta da Formiga, ora para o Pontal de Santo Antônio.
Com o binóculo posso perceber que o pontal fica muito mais distante do que meus olhos podem ver. Aproximadamente a uns 40 km daqui.
O que me importava era atravessar esta “bendita” Lagoa. Era o meu desafio, uma coisa meio egoísta eu sei, mas se pudesse, pegava um helicóptero e sairia daqui neste instante. Eu só queria atravessar, mas vim parar justo num lugar sem recursos e de onde não posso sair por terra, então terei que sair por água, remando e sofrendo mais um pouco.
Nada será pior do que já foi.

NO RUMO DO CASTELO
Que se dane tudo! É para Tapes o meu azimute, só preciso que este vento assassino pare. Parece que não choverá por enquanto, então é melhor
dormir e partir assim que o vento parar, nem que seja à noite.
Já são 18:30 h, está noite e resolvo dormir com tudo pronto para uma retirada rápida assim que o vento parar.
Vou deixar os fones, a armação dos óculos e a calculadora pendurados nos galhos como recordação da minha passagem. Até já estava gostando daqui, mas o sangue está fervendo e tenho que partir. Durmo com a faca e a lanterna a meu lado.
Acordo por volta de meia noite e vou lá na beira da duna, tirar uma água do joelho e observar o tempo.
O vento continua forte, há muitas ondas, mas isso não é nada!
Para o sul os clarões no horizonte prenunciam alguma tempestade; é o suficiente.
Volto para meu abrigo e tiro a roupa seca, coloco-a dentro de um plástico e visto a de neoprene para enfrentar a chuva, pois não tenho como permanecer seco se chover forte.

01/05/2001 Terça-feira
Acabo deitando na areia, sob a vela do caiaque e só acordo às 7 h, acabou não chovendo!
Vou até a beira. O vento parou! A lagoa está que é um espelho...
Vamos nessa brody!
Às 7:20 h parti. Que confortável! A esponja que cortei mais fina e coloquei nas costas me deixa à vontade para remar. Sigo com a vela enrolada, pois não há vento.
A mochila vai presa na popa (com comida e aparato fotográfico). Agora, se for necessário, é só encostar na margem que vou costeando a não mais do que 20 m.
O caiaque segue legal, pois o vento está fraco. Deixei à mão umas balinhas de vitamina C.
- Rema uma hora e terás direito a uma bala!
E assim vou seguindo meu caminho por uma costa formada exclusivamente de dunas sem abrigo.
Após três horas, resolvo encostar para descansar e dar uma olhada nas dunas. Se houver alguma fazenda ou estrada por perto, deixo o caiaque ali e volto para buscar depois.
Infelizmente não há nada por perto, apenas uma fazenda a 2 ou 3 km após as dunas, muito longe para arrastar até lá.
Já estou próximo das plantações de pinus que tomam conta do pontal de Tapes, mas o que me irrita é saber que tenho que voltar 40 km para o sul e depois, cerca de 20 km para NW, apenas para contornar este pontal.
Se possível, pretendo cortar caminho, arrastando o caiaque sobre uma parte estreita do pontal.
Só tem um pequeno probleminha: estou muito fraco, comi queijo, salamito e chocolate, mas isso é muito pouco para o esforço que estou fazendo.
Minhas mãos não estão muito bem, ainda por cima perdi a luva da mão direita na tempestade (a mais machucada); estou com distensão na virilha e o caminho é muito difícil, cerca de 2 a 2,5 km subindo e descendo as dunas, arrastando o caiaque; acho que é mais fácil contornar o pontal por água...
Ano passado, eu fazia 20 a 25 km/dia, dessa forma não conseguirei chegar em Tapes hoje.
A tática será: rema uma hora, ganha uma pastilha de vitamina C e assim sucessivamente, até onde eu resistir.
Dessa forma vou seguindo, agora costeando os matos de pinus.
Adiante, cruzo com o cavername de um barco grande, semi-submerso. Parece o esqueleto de um animal pré-histórico que sai das águas e aponta para o céu.
Duas horas depois, reconheço o local onde acampei no ano passado, entre o bosque de pinus.
Foram duas noites ali; soprava um forte NE e, impossibilitado de seguir adiante, fiz uma caminhada até o outro lado do pontal (frontal a Tapes) para tomar banho e telefonar para meu pessoal.
Bati uma foto do local ali do largo mesmo e segui adiante.
Já se passaram cinco horas de viagem e quero encostar para comer salamito, queijo e esticar as pernas.
Vejo um local adiante, onde há uma bicicleta encostada num eucalipto (acho). Mais para o fundo da Lagoa há um barco de pescadores, parecem estar revisando as redes de pesca.
Bueno, se há uma bicicleta, deve haver uma estrada; talvez possa deixar o caiaque antes do que penso!

OS CÃES DO PONTAL
Pretendo descansar por ali e investigar. Percebo que ao lado da bicicleta alguns cachorros estão sentados. Assobio para eles e, para minha surpresa, aparecem cerca de 18 cachorros...
Os bichos não param de latir desesperadamente na minha direção.
Tem cachorro de tudo que é tamanho! Desisto de parar ali para comer, é impossível.
Dessa forma, não saberei se há ou havia uma estrada, diacho!
Tiro uma foto dos pentelhos e resolvo seguir mais adiante, onde não haja cachorros.
Vou remando paralelo à costa, mas os bichos vêm me seguindo. Um pouco adiante há raízes que formam uma barreira natural na margem que deve impedir o avanço deles, é um emaranhado bem difícil de passar.
- Pronto! Agora eles desistem de me seguir e vou poder encostar.
Mas não, eles conseguem ultrapassar a barreira e os filhotes latem desesperadamente, sem parar. É uma zoeira incrível de latidos que vai me irritando cada vez mais.
Resolvo me afastar da costa para ver se eles desistem. Agora eles perceberam uma garça ao longe e disparam na direção dela, só que na direção para onde me dirijo.
Droga! Desse jeito não vou poder encostar e eu já estou com fome e de saco cheio de ficar dentro do caiaque.
Eles devem estar famintos e estão me confundindo com pescadores (imagino que os pescadores devem dar comida para eles).
Vou remando por cerca de meia hora acompanhado pelo barulho infernal dos latidos. Acabou o meu sossego, não consigo nem pensar direito!
Estou no limite emocional, talvez por causa das tensões da travessia, e estes cachorros que não param de me seguir, não me deixam descansar nem pensar...
Começo a sentir raiva deles... Ela vai crescendo a ponto de querer matá-los!
Acabou a paciência, aprôo o caiaque na direção deles, berrando a todos os pulmões.
Eles permanecem na beira, mas mudam de atitude, de amistosos assumem uma postura agressiva e latem furiosamente enquanto vou direto na direção deles.
O encontro das tropas é iminente!
Estou enlouquecido, quero acertar pelo menos um deles e desço do caiaque cercado pelos cornos que avançam enquanto eu berro sem parar e vou girando o remo sobre a cabeça enquanto penetro no meio da matilha que tenta se desviar dos golpes do remo.
Acho que eles perceberam o perigo e fogem, esbaforidos enquanto vou correndo, meio que mancando, atrás deles (esqueci que sou meio aleijado, he, he). Eles correm até uma distância segura e ficam me observando de longe. Pretendo seguir mais um pouco no caiaque e depois parar para comer.
Volto para o barco e os cornos voltam, correndo, na minha direção.
Cara! Que coisa irritante !
Agora me envaretei mesmo. Desço do caiaque e corro de novo atrás deles, desta vez sem mancar. Consegui acertar um de raspão.
O que a raiva faz! Com estas pernas cheias de placas e parafusos consegui alcançar um cachorro na corrida.
Enquanto quase todos fugiam pela praia, um deles subiu pelas dunas e surgiu por trás, em direção do barco, em busca de comida... A minha comida!
Com os olhos injetados de sangue fui pra cima do desgraciado que ameaçou me atacar.
Acho que ele percebeu que ia morrer a remadas e dentadas se eu o alcançasse...
Fugiu na direção dos outros e parece que desta vez desistiram de me seguir.
Dou um berro de Tarzã, frustrado, cheguei a ficar com dor de garganta.
Acho que estou ficando louco!
Bueno, remei por mais meia hora, certifiquei-me que os cornos não estão me seguindo e encosto nas dunas para comer.
NAS DUNAS
Com o binóculo tento subir em uma árvore para ver se ali a restinga do pontal é mais estreita. Não deu, há muitas árvores e não posso ver.
Estou muito fraco, só para tirar o caiaque da água tenho sérias dificuldades. Arrastar o caiaque 2 a 2,5 km sobre as dunas é impossível para mim. Melhor levar o caiaque por água, mesmo contra o vento.
Aproveito para comer o queijo, o salamito, chocolate e o damasco.
A idéia é seguir até o pontal, acampar no meio dos pinus e chegar amanhã em Tapes. É o mais correto a fazer!
Estou remando desde às 7:20 h, já são 12 h. Então tenho que tocar logo para contornar o pontal de dia e acampar no lado de dentro da enseada de Tapes. Sigo viagem amanhã de manhã.
Estou me baseando pela viagem do ano passado, mas a droga é que não me lembro de quantas horas demorei para ir do Pontal de Santo Antônio até o acampamento dos pinus ano passado. Acho que foi umas quatro horas (é o que tenho pela frente). Essa brincadeira já dura cinco horas e tenho mais quatro pela frente só para chegar no pontal.
E lá no “pinheirinho” eu achei que em seis horas estaria no pontal... Merda!
A ponta dos ombros me dói e ainda tenho que remar que nem um condenado.
Pelo menos o tempo abriu e até o sol se fez presente. Estou com sede por causa do salamito e por isto vou bebendo água da Lagoa. Se não mata, engorda...
Continuo na tática de remar uma hora e ganhar (de bônus) uma pastilha de vitamina C.
Acabou o mato de pinus, começa uma parte de dunas que é estreita, mas com dunas altas.
Após mais 3 h remando (15:20) encosto nas dunas para descansar por cinco minutos.

TRAVESSIA TERRESTRE DO PONTAL
Resolvo explorar o local e descubro que ali onde parei o pontal deve ter apenas 500 m de largura. As dunas não são tão altas assim e depois delas há um banhado com muito capim onde o caiaque deslizaria fácil...
Do alto da duna olho para o final do pontal; calculo que, para contorná-lo e chegar até aqui, pelo outro lado, serão mais quatro horas remando...

- E aí cara!
- O que vamos fazer?
- Olha, acho que consigo arrastá-lo por cima dessa duna aqui, depois é uma parte plana e adiante tem o banhado.
- Vamos encarar?
- É isso aí, brody! Acho que em 1 ou 2 h eu consigo!
Tenho duas luvas para a mão esquerda, colocando uma, invertida, na mão direita, posso arrastar o caiaque pela corda que está presa na popa.
Por etapas, fui puxando o barco sobre a areia da duna, parando para fotografar e filmar. Com calma, cheguei no topo. Depois foi só descer a duna.
Atingi uma parte plana e fui em frente, com um pouco de dor no tendão de Aquiles, pelo esforço na areia.
Logo atingi a vegetação que precede o banhado e ele deslizou mais fácil. Ao atingir os juncais, tive uma surpresa; eles estavam repletos de teias de aranhas.
Elas foram se acumulando no meu rosto, juntamente com suas moradoras, que corriam sobre os supercílios. Foi se formando uma meleca grudenta no rosto até que entrei no banhado que não passava da cintura.
Desta vez não machuquei os pés, pois estava calçando as botas de neoprene.
Pleno de teias pelo corpo, cheguei do outro lado do pontal em menos de trinta minutos.
Tri legal! Nem acreditei, que felicidade!
Isto mudou meus planos, vou chegar hoje mesmo em Tapes.
Resolvo me preparar, vou limpando o caiaque das teias, devoro os últimos damascos, chocolate, queijo e salamito. Foi uma limpeza na despensa, não sobrou nada...
O forte reflexo do sol na Lagoa impedia que eu visse com nitidez a cidade de Tapes, talvez a 20 km daqui.
Aqui nesta enseada, de uns 10 a 15 km de largura, estou me sentindo completamente seguro, pois posso ver ambas as margens.
Iria tocar direto na direção da cidade, mas percebi que se fosse junto da margem leste, no rumo N, seguiria abrigado do vento NE. Passando mais ao norte da cidade por este lado, faria a travessia a favor do vento.
São apenas 16 h, portanto ainda tenho duas horas antes que escureça.
Vou remando à reversa do vento, curtindo a paisagem bucólica, livre das ondas e na calma do entardecer. As garças, gaviões, marrecas e outros pássaros da região estão entre os juncos e a mata nativa que se debruça sobre a areia da praia.
É tudo muito bonito, o lugar transmite paz e segurança, pena que as nuvens não deixaram que visse o por do sol.
O tempo passou rápido e eu calculei errado, pois duas horas se passaram e Tapes estava mais ao norte do que pensei.
Vou ter que encostar na margem antes da travessia para deixar à mão as bóias luminosas e a lanterna grande, pois logo ficará escuro. Aproveito, também, para esticar as pernas.
Serão 10 a 15 km de travessia, mais umas 2 a 3 h embarcado, só que no escuro de novo.
Estou muito estressado, o simples fato de ter acabado a bateria do celular desencadeou uma “crise histérica galopante” sem precedentes.
Estou bravo com qualquer coisa, aliado a isto, nuvens de mosquitos atacam ao escurecer. Vou ajeitando as bóias luminosas no mastro, na proa e na frente da bússola (desta vez coloquei a bóia de luz forte frontal à bússola). A mochila ficou na popa, no buraco do galão de água.
A raiva com os insetos é tanta, que os mosquitos capturados são esmagados até virarem simples “borrões” nas mãos.

NA ESCURIDÃO - DE NOVO...
Tenho que partir logo, a batalha está sendo desigual.
Os mosquitos batem nas pernas e nos braços, pois estou viajando de bermuda e camiseta desde a manhã, pois não está tão frio assim.
Então entro no caiaque, já com as duas bóias luminosas (uma vermelha na proa e uma verde, bem forte, na frente da bússola) ligadas e vou me afastando dos juncos.
Os mosquitos me seguem e paro a todo instante para matá-los, pois estão me picando no rosto, nos braços e, principalmente, nas pernas, por baixo da capa do caiaque, onde não posso esmagá-los.
A raiva é tanta que tento acertar, com o remo, a nuvem de mosquitos que paira sobre mim.
A raiva é tanta que acerto várias “pazadas” no mastro, onde os cornos pousaram e ficavam esperando o melhor momento para atacar.
Quanto mais me afasto da margem, mais aumenta a intensidade do vento e os mosquitos sobreviventes vão desistindo da peleia.
Fixei meu rumo na direção do centro de Tapes, na direção da torre do celular.
Sei que a casa das prendas fica ao lado do camping, mais para o sul. Mas só vou derivar quando estiver mais perto para não passar do ponto e não ter que voltar no contra vento.
Já está bem escuro, para minha surpresa o vento está bem forte e as ondas estão razoáveis.
Pior que tudo, na direção da costa, mais para o interior do continente clarões seguidos denunciam uma tempestade que se aproxima, bem no meu curso, só faltava...
A travessia que pensei durar apenas uma hora vai durar o dobro, pois recém cheguei na metade .
Tudo bem, se o vento não mudar de direção, o caiaque encara legal, ainda mais que tenho uma luz forte diante da bússola e, desta vez, o sono está longe de mim.
Aliás, já nem estou mais olhando para a torre do celular para manter o curso, é mais fácil olhar para a bússola, pois a vela fica na frente e dificulta a visibilidade.
Simplesmente marquei o curso em 250 graus SW, em direção da torre.
Não sei se o pessoal está me esperando, então deixo a lanterna grande iluminando a vela para que eu fique mais visível.
Mais um pouco e reconheço uma seqüência fraca de lâmpadas em linha com a costa, um pouco mais ao sul.
É o camping aonde cheguei, também à noite, durante uma tempestade, em 1984, quando viajava de windsurf.
Que legal, parece que o tempo não passou!
Se não me falha a memória, as prendas moram ao lado do camping, só não sei se é ao norte ou ao sul.
De qualquer forma é por ali, então:

- Aproar para o camping!
- Sim senhor!
- Curso 230 – 240 graus SW!
- Afirmativo, positivo, operante!

E lá vamos nós, deixando o centro para boreste e aproximando com um vento bem razoável, só não posso passar do ponto que demarquei.
Quase duas horas...
Faço sinais com a lanterna para a costa e alguém responde com lanterna ao sul do camping. Então é para lá que devo ir!
Vou à direção do sul e o caiaque balança sem parar, subindo e descendo nas ondas. Vou seguindo, com a lanterna iluminando a gaivota na vela e com as bóias sinalizando para algum barco que esteja navegando por aqui.
Estou quase chegando no ponto onde sinalizaram ao sul quando ouço gritos e vejo luzes de um carro que sinaliza ao norte do camping. São as prendas que sinalizam da margem.
Droga, alguém sinalizou de sacanagem e para chegar até onde elas estão, terei que voltar contra as ondas, no contra vento.

- Atenção tripulação!
- Arriar velas!
- Velas arriadas, senhor!
- Remar para o norte!

As ondas atacam pelo través de boreste e se chocam no costado do Náutilus, molhando o “capitão” do navio.
Vejo o Monza da Dinair se dirigindo para um ponto mais próximo da margem.
Apesar das ondas de través, chegamos sãos e salvos no destino final.
Nossos marinheiros ficam de boca aberta e língua de fora: cinco belas prendas fazem a comissão de recepção para os nossos heróis.
Dinair, Dinara, Mariana, Fernanda e a Paula..
Beijos, abraços, muita alegria.
São, aproximadamente, 20:20h, estou remando desde às 7:20 h, foram cerca de 13 horas remando, praticamente sem descanso.

- COMO É BOM GANHAR !

Depois vejo Lisete e a vó Nair. Por telefone falo com o brody Paulo, brody Rojas, mãe e pai. Show de bola!
... E AS PORTAS DO CASTELO SE ABRIRAM PARA OS CONQUISTADORES...

- ESTÁ TUDO DOMINADO !
- A LAGOA E AS PRENDAS (he, he)!


FIM

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