quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008





RIO DE JANEIRO - DIVISA SÃO PAULO BY CAIAQUE

É dia de vento forte, nuvens cinzas e azuladas passam rápidas na direção do norte. Faz muito frio, nossa costa é assolada por várias tempestades e o mar está de ressaca.
Escuto nos noticiários que três barcos pesqueiros estão sumidos no mar. Um deles foi encontrado, mas seus onze tripulantes estão desaparecidos. Para piorar a situação dos desaparecidos, está fazendo um frio de gelar os ossos.
Estes são os dias que antecedem minha partida para o Rio de Janeiro.
Inventei de viajar do Rio para Floripa de caiaque, para variar o meio de transporte.
Estou voltando ao Rio depois de quase doze anos, quando lá estive de windsurf e desisti devido às fortes dores nas costas causadas por uma micro fratura em uma vértebra e que me causaram sérios problemas.
Espero terminar o que comecei.
Como faltou muito o vento durante a viagem de windsurf, fiquei várias vezes à deriva; dessa vez vou no remo, auxiliado por uma pequena vela.
A prancha não vai, mas partes dela, como a bolina, o mastro de alumínio, mais a gaivota e o sol, estilizados na vela, irão representá-la.

VOLTANDO UM POUCO NO TEMPO

DEZEMBRO DE 1996
Depois de assistir o Grêmio de Felipão dar uma tunda na tal de seleção do Palmeiras do Luxemburgo (outra vez), fui à Porto Alegre assistir a decisão do campeonato brasileiro contra a Portuguesa. Foi a coisa mais linda do mundo!
Um time cheio de raça, quando tudo parecia perdido, venceu por 2 X 0 e sagrou-se Bi-Campeão Brasileiro. Ano passado fomos bi da Libertadores da América, Recopa e outros mais. Êta time bagual!
Na volta, falei com o Sr. Alcioneu da Fibramar (f.2421761) que vai fazer o caiaque para mim.
Marquei os pontos onde quero que ele coloque tampas para compartimentos estanques (um na proa e outro na popa), um buraco para o galão de 5 litros de água, outro para a bolina da prancha, outro para encaixar o mastro, locais de instalação para os mordedores das adriças da retranca, encaixes laterais para o mastro e a vela (quando entrar em praia de ondas fortes), local para encaixar a bússola, ferragem resinada na popa para encaixar o leme que vou fazer.
No dia 30, fui na fábrica buscar o caiaque enquanto o Márcio e o Fábio (filho do Sr Alcioneu) davam os retoques finais. Filmei várias etapas da construção do caiaque, ficou 10!

JANEIRO DE 1997
Dia 11, voltei de Rio Grande onde assisti o casamento de uma prima e dancei com uma linda morena; parte do meu coração ficou por lá.
Na volta, parei em Porto Alegre para transferir para madeira, um leme retrátil que eu fiz em papelão, de modo que encaixasse na ferragem resinada na popa.
Meu primo, o Cláudio fez as peças com maestria em sua marcenaria. O Pita, seu cunhado ajudou um monte e, no fim, o resultado foi ótimo. Foi muito bom estar com meu primo, companheiro das primeiras aventuras para o sítio da vó (de bicicleta) e na praia do Cassino, em Rio Grande.
Depois ajudei o tio Laerte a colher e esmagar uva para fazer o vinho que tanto gostamos.
Foi legal, juntamente com o Zeca, a Jaque, tia Zuza, a Kátia e a fofinha da Karin, que perturbou minha alma de pecador.
Depois vou na velaria do Nelson Picollo, que tanto me ajudou nas viagens anteriores de windsurf (f. 051-2497365).
Dona Dircinha, sua esposa e o Nelsinho, seu filho, além de dona Vera bolam uma capa que ficará fixada às bordas por velcros colados ali. Assim diminui a entrada de água pelo borrifo das ondas.
O seu Nelson bolou uma vela balão com o sol e a gaivota em pleno vôo (como eu tenho na vela da prancha de windsurf) e orientou na colocação de adriças e escotas, além do local de fixação dos puxadores. Ele foi muito legal comigo e me deu uma baita força.

17/01/1987
Volto para Floripa e levo o caiaque na fábrica do Sr. Alcioneu para reforçar na caixa da bolina.
Já pintei as peças de madeira com esmalte sintético preto.
Amanhã monto tudo e experimento a vela, a capa e outras coisas na Lagoa da Conceição (que fica em frente de casa).
É isso aí, estou sentado na mesa da sala e, à minha direita, vejo a Lagoa. As gaivotas estão pousadas num trapiche que fica mais para o fundo. Escuto música enquanto o Husky e a Alaska (meus cães, um Husky Siberiano e um Malamute do Alaska) estão deitados ao lado da casa.
Estou escrevendo este diário (que me foi dado pela Ana) para externar um pouco da ansiedade antes desta nova aventura.
Detonei o braço direito de tanto remar e fazer força com os halteres. Já estou há uma semana sem remar e devo permanecer em repouso por mais uma ou duas semanas.
Três dedos da mão estão em permanente dormência.
Está tudo contra, mas a viagem é irreversível!

10/02/1997
Depois de montar o caiaque, recuperar-me da lesão no braço, testei o barco num dia de vento fortíssimo. O caiaque só faltou voar com o vento a favor.
Tomei vários tombos, perdi um remo e a força do vento arrancou ambos os mordedores da escota da retranca.
O vento foi demais, mas mostrou que eu devo adaptar uma maneira de rizar (diminuir) a vela quando estiver sob vento muito forte, caso contrário, fico sem o controle do barco.
O Paulo bolou umas rodas para desencalhe e movimentação do caiaque. Elas ficaram instaladas na popa, ao lado do leme e presas por borboletas, bem prático.
O tio Laerte deu a idéia de colocar flutuadores para elevar a linha d’água, pois o caiaque não irá suportar o peso da carga.
Bueno, fui para Porto Alegre de novo e lá o Sr Nelson fez as adaptações na vela para que eu pudesse rizar a vela. Dali fui no tio Laerte e colocamos dois tubos de PVC, cheios de bolinhas de isopor ao lado do caiaque. Soldamos as rodas nos ferros nos parafusos onde ficarão presas as borboletas.
Volto para Floripa e o Sr. Alcioneu e o Fábio colocaram duas chapas de alumínio no local aonde vão os mordedores da escota da retranca. Agora pode vir o vento que for que não arranca mais.
Testei de novo na Lagoa da Conceição e ficou perfeito. Pude rizar a vela, remar e controlar o leme com o timão nos pés (igual ao controle que se faz nos barcos de remo de competição)
Novo problema : agora terei de fazer mais uma janela na vela quando estiver rizada, pois quando rizo a vela, não posso ver nada para frente.
Como não pensei neste detalhe; agora terei que voltar para Porto Alegre de novo...
Além disto, tenho de bolar engates rápidos para fixar a vela na retranca, pois no mar será muito difícil ficar amarrando e desamarrando cabos para aumentar ou diminuir a vela. O mesmo vale para o caso de içar ou arriar. Além disto, o mastro deve ser facilmente removido para ser colocado ao lado do caiaque (nos suportes de alumínio que o Paulo fez) quando eu tiver que entrar ou sair em praia de ondas fortes. Caso contrário, a quebra de materiais será inevitável.
Parece simples, mas são inúmeros detalhes que podem determinar o sucesso ou insucesso de uma empreitada destas.
No mar, não existe espaço para erros. Muitas vezes minha vida estará em jogo e algo errado que eu não puder resolver pode resultar numa visita antecipada na casa da “véia da foice”.
Testei o caiaque nos mangues que ficam atrás da sede da ABO (Associação Brasileira de Odontologia) e foi legal andar por ali, depois fui jogar bola com meus amigos.
Por sinal, no dia do meu aniversário, ganhei deles, além do churrasco, um abrigo do Grêmio, que irá comigo. O Paulo Nicolazzi, representando o pessoal, me deseja sorte.
Se eu voltar, o França prometeu financiar um churrasco de confraternização; só por isto já vale a pena batalhar e ter sucesso.
Eu sempre viajo antes (em pensamento), tentando imaginar como será, o que vou encontrar, o que vou necessitar.
Quando fui de bicicleta pela América do Sul, muito antes de chegar, eu já estivera em Machu Pichu, no Peru.
Eu me vi sentado na beira de um precipício, de boina e poncho, tocando minha gaitinha de boca enquanto olhava para as ruínas da cidade inca, 700 m abaixo.
Eu vivi aquele momento antes mesmo de chegar lá, uma coisa que parecia impossível e que tornei realidade nos mínimos detalhes; foram oito meses de aventuras.
Conheci a tênue linha que separa a vida da morte, o instinto animal de ficar vivo! Foi uma coisa muito louca!
Uma coisa é certa, aprendi a não ficar estático nas horas decisivas, descobri que o desespero é o caminho mais curto para a morte.
Enfim, o que quero dizer é que sei para onde estou indo, imagino mais ou menos o que vou enfrentar, isto me dá alguma chance.
Erros serão cometidos, decisões causadas por imprevistos de certas situações terão que ser tomadas na hora.
Bueno, resumindo:
- Seja o que Deus quiser!

Fevereiro de 1997
Após mais duas semanas de ócio, fui até Perequê, onde meu irmão Paulo está veraneando.
Ali, fiz o primeiro teste de mar e tive muita dificuldade para vencer a rebentação.
Depois, mais para o fundo, uma sensação muito ruim pensando em tubarões.
No dia seguinte, o Paulo estreou seu novo inflável com motor de 25HP .
Eu quase fui a pique porque não apertei direito uma borboleta que fechava o compartimento estanque da popa.
Resultado: o compartimento encheu d’água e mal tive tempo de chegar na praia. Foi uma bela lição; cada item terá de ser meticulosamente revisado a cada vez que eu sair para o mar.
E se isto tivesse acontecido a 10 ou 20 km da costa?
Depois de esvaziar o barco, toquei direto para o fundo até às 13 h.
O vento e as ondas estavam razoáveis mas, desta vez, a capa (presa por velcro nas bordas) funcionou bem e impediu a entrada de água.
Fui até cerca de 3 km da costa e nem pensei nos tubarões, preocupado que estava com as ondas.
Pela primeira vez eu vi um peixe voador. Que loucura!
Ele saltava sobre a água, na direção do vento e seguia planando por cerca de 100 a 150 m até mergulhar de novo.
Não dava para acreditar!
No dia 12, fiz outro teste, tocando direto para o hotel Plaza Itapema, a cerca de 9 km em linha reta. A experiência foi emocionante, pois eu sabia que o Paulo viria depois, no inflável.
Dessa forma, pude ir tranqüilo, pois estava com “as costas quentes”.
A meio caminho, o Paulo me alcançou, juntamente com o pai, tio João, Helena, Gabi, Luigi, Milton e Michel. Eles bateram muitas fotos enquanto o caiaque deslizava nas ondas.
A vela funcionou perfeitamente a favor do vento, assim como o leme, controlado nos pés.
Dessa forma, auxiliado pela vela, pude seguir remando enquanto o caiaque se deslocava distante uns 5 km da costa.
É superestranho estar no meio das ondulações. É um mundo diferente, quase silencioso, onde as coisas, na sua grande maioria, estão acontecendo onde não podemos ver.
Após 1:40 h, cheguei na marina do Hotel.
Esta experiência serviu para ver que será possível encarar mais esta! Lembrei de um ditado que li numa livraria do Chile, durante minha viagem de bicicleta:
- Nunca podrá el hombre descubrir nuevos horizontes si no tiver el corage de alejarse de la costa!

É isso aí tchê! Não podemos entregar para os homens, amigo e companheiro, pois não está morto quem peleia!
Daqui para a frente, a viagem é uma coisa que não tem volta, só falta acertar pequenos detalhes (fixar os tubos de PVC nas bordas, por exemplo). O peso da carga tem de ser bem limitado, pois , mesmo sem carga, a linha d’água fica apenas a três dedos da borda.
A experiência em alto mar foi emocionante e abriu novas portas.
A possibilidade de novas aventuras me deixa louco de vontade de seguir em frente com meus planos.

JUNHO DE 1997
Pois é, as coisas estão a mil, a minha hora está chegando.
O pessoal da Fibramar resinou os tubos de PVC na borda do caiaque e agora ele não afunda mais (mesmo com todos os compartimentos e com a parte aonde vou sentado cheios de água, mais o meu peso, ele não afunda).
Já é alguma coisa. O problema é que ele ficou com um arrasto terrível e ultrapesado.
Um caiaque original (igual ao meu, mas sem as modificações) pesa em torno de 15 kg e o meu, sem carga, está pesando 50 kg...
Isto significa que eu vou viajar em um “toco” que flutua.
A velocidade média, sem vento contra, varia entre 2 a 5 km/h ( 1 a 2 nós).
Minha falta de experiência com este tipo de embarcação foi gritante: caiaques para longas viagens têm cerca de seis metros e pesam, no máximo, 20 kg. O meu tem três metros e pesa 50 kg, além dos tubos de PVC resinados na lateral que aumentam o arrasto.
O meu barco não tem hidrodinâmica, tem hidroarrasto...

AVENTURA DE JIPE NA ESTRADA DO INFERNO
Juntamente com o Robson e o Sergio (Pequeno), fomos de jipe de Floripa até Rio Grande, com parada em Porto Alegre. O jipe apresentou uma série de problemas mecânicos e levamos dois dias para chegar em Rio Grande, com direito a excursão noturna na ponte desativada de Pelotas, onde o doido do Robson quase caiu numa vala profunda.
Voltamos pela estrada do inferno e foi maravilhoso. Passamos por povoados de pescadores, atoleiros, dunas acima e abaixo, até que chegamos na beira da Lagoa dos Patos. Cruzamos por dentro da água e fomos até o farol do Cristovão Pereira e depois até Mostardas.
O Robson teve um ataque histérico e andou no maior pau, já de noite pelos facões da estrada. Qualquer coisa que nos obrigasse a desviar, faria o jipe capotar.
Pensei assim: se não morro agora, morro depois. Então, tanto faz...
Foram quatro dias de fechar o comércio, muita adrenalina e muitos novos amigos.
Muitos amigos que tinham seus nomes anotados no mapa (da viagem de windsurf em 1983) e que estávamos utilizando agora, já tinham falecido. Na verdade morreram todos cujos nomes anotei no mapa àquela época!
Estou me sentindo como o High Lander...
É a vida...

MANIA DE SER CAMPEÃO
Na volta, o Super Grêmio, com apenas dez jogadores, bateu o Vitória em Salvador e vai para mais uma final de campeonato brasileiro (a segunda consecutiva). Ano retrasado, ganhamos a Libertadores, ano passado o Brasileiro e agora estamos em mais uma final...
Mania de ser campeão! Isso cansa.
Voltamos a Floripa e logo fui a Porto Alegre assistir a final contra o Flamengo; lá encontrei o Paulo, o Franco e o Paulinho.
Foi um espetáculo a torcida e os foguetes coloridos. Muito lindo!
Dias depois, já em Floripa, assistimos pela TV, este time maravilhoso, diante de 95 mil torcedores, em pleno Maracanã, dar uma tunda no Flamengo de Romário e sagrar-se TRI-CAMPEÃO DA COPA DO BRASIL.
TRI LEGAL!
DÁ-LHE GRÊMIO!
De quebra a festa em plena beira mar norte, no Koxixos com o Bello e com a turma que viajou a Porto Alegre.
De recompensa, a namorada, que foi o prêmio maior.
A vida corre rápida e intensa, parece que o destino esqueceu de mim, mas os ponteiros do tempo são inexoráveis.
O mar está de ressaca e várias embarcações estão desaparecidas, um barco pesqueiro foi encontrado, mas de seus 11 tripulantes nem sinal, estão desaparecidos...
Sei que posso passar desta para uma pior, mas estou preparado para tudo e não tenho medo do que vier.

OS IRMÃOS AMIGOS
O “brody” Rojas me surpreendeu querendo ir até o Rio de Janeiro para minha despedida. Mesmo que as circunstâncias não permitam, ele já demonstrou para mim que é muito mais do que um simples amigo. Para falar a verdade, eu tenho, na minha família, mais uns irmãos por fora, são os caras que eu considero muito.
O Bello, o Aldo, o França, o Robson e o Paulo Sempe.
São aqueles caras que, mesmo que eu esteja no fim do mundo, lá estarão se eu precisar.
Eles são a síntese da palavra amigo.
Cada um deles, a seu modo me ajuda como pode.
O meu irmão não fica para trás, ele sempre participou das grandes viagens, seja bolando uma barraca de plástico e um galão de lona para carregar água na viagem da bicicleta, ou mesmo as rodas para o caiaque e os suportes laterais para o mastro e a vela para esta viagem.
Tio Nei (in memoriam), tio Laerte, as tias Mari, Ceci e Zuza, meu primo Cláudio, Carlos (milico), Clóvis, Sergio, Zeca, Luiz , Eduardo e Fernando..
Eu me considero um cara rico, amigos como estes é difícil de conseguir. Só me resta agradecer!
Os meus pais então...
Coitados, eles mereciam um filho que desse menos preocupação, é difícil entender uma pessoa que tem tudo e sai por este mundão de meu Deus.
Mas eu sou assim desde os quatro anos, quando fugi de casa com um caminhão de brinquedo atado a um barbante, tentando chegar na Vila Nova, 18 km distante de casa...
Só cheguei na Vila Nova na segunda fuga, quando então tinha seis anos; mas, com medo de apanhar do tio Laerte, voltei para casa a pé, de novo...
Fui atropelado cinco vezes quando criança e uma infinidade de diabruras, brigas com os irmãos e por aí afora...
Sou um caso perdido, um cara nada normal...
Na medida do possível eles me entendem e lhes sou grato do fundo do coração.
Churrascos, despedidas e muita festa, a vida vai passando a mil e a hora está chegando.
Bueno, vamos enfrentar o Inferno, seja o que Deus quiser!
Só espero ter a raça e a coragem que o time do meu coração demonstrou para o Brasil.
Não está morto quem peleia!
Não vamos entregar para os homens, amigo e companheiro!
É isso aí tchê! Que a alma Gaúcha me acompanhe para além de terras e através do sempre!
Hoje, o vento sudoeste está violento e ameaça chover, mas nada me desviará do destino que já está traçado.
Espero voltar para os meus, mas se isto não for possível, irei para as terras do além fazendo o que gosto.
Pela primeira vez terei um patrocínio, foi dado pelo meu clube, o Lagoa Iate Clube, de Florianópolis, na forma de isenção das mensalidades por três meses (o período que estiver viajando). O Sr Fragoso foi muito cordial e me deu uma baita força.
Hasta la vista, amigos!
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TESTAMENTO

Se amanhã me procurarem e tiver partido...
Não chorem, nem julguem que morri.
Poetas e aventureiros são como flores
Que, secas, seguem no corcel dos ventos
Guiando, em espírito, rédeas claras de perfume!

Se não me acharem,
Imaginem que segui o rastro das estrelas
Ou que levei a cruz dos meus poemas
Para além do firmamento...

Se não virem o poeta,
Procurem a trilha banhada de luz
E, entre os selos de meus gestos,
Desatem a fita da recordação
Onde, nos papéis da lembrança,
Encontrão o Testamento.

Ele é mais puro
Que o riso da criança
Que abriu as asas
Sem prender-se ao mundo...


A PARTIDA PARA O RIO DE JANEIRO

Na Sexta feira, dia 27/06/1997 o Robson apareceu lá na Lagoa (casa) para carregar o caiaque sobre sua parati 1.8 .
Foi uma função carregar todas minhas tralhas no carro, despedir-me e sair.
Quando tudo começa a acontecer, entro num estado de espírito super estranho, parece que não está acontecendo comigo.
Ainda estou na segurança do carro, conversando com o Helder e o Marcelo enquanto o Robson abastece o carro, já na BR 101, próximo de Biguaçú.
Partimos às 16 h, rumo a Curitiba. O tio Helder é daqueles caras que sabem de tudo um pouco, foi explicando como era feita e qual a diferença entre uma bomba H e uma bomba atômica convencional.
Logo ficou escuro e ficamos bom tempo parados na subida da serra por causa de um acidente.
Em Curitiba, conseguimos nos perder, mas depois achamos o caminho certo e, depois de abastecer e comer, seguimos pela noite até chegar em Registro, já em São Paulo.
Estava chuviscando e um pouco frio, achamos um hotel razoável e, depois da janta, fomos dormir.

28/02/1997 Sábado
A RIO - SANTOS
Pela manhã, seguimos em direção de Peruíbe, litoral paulista. Dali fomos para Santos até iniciar a Rio-Santos.
Chovia muito, vi o mar de ressaca, um baixo astral incrível.
Não desejo estas sensações para ninguém, elas são inevitáveis, parece que tu morre por antecipação.
Pelo menos estou com meus amigos, que, com um péssimo humor negro, só falam nos benditos tubarões...
Muito animador!
Por falar em tubarões, fiz um “arpão” resinando uma fisga de rã na ponta do alumínio que levo como remo de reserva (no caso, uma pá de remo se encaixa na outra ponta).
Olhando agora... é ridículo! Não vai sequer fazer cócegas neles.
Para deixá-los “tranqüilos”, digo que, na volta, eles irão sofrer um acidente terrível, que o carro vai pegar fogo e que eles vão virar churrasco...
Em Dezembro de1985 vim para cá sozinho, uma transportadora me deixou no local depois que eu e a prancha de windsurf desembarcarmos no aeroporto, na ilha de Paquetá.
Foi barra pesada, pelo menos, agora, tenho a vantagem de saber como é o local onde vou iniciar a viagem e a companhia de amigos na hora mais difícil.

PARATI
Já noite, chegamos em Parati e fomos para a pousada Marques, de dona Maria, onde me hospedei em 1995, quando estava retornando de uma viagem de cinco meses de moto pela América do Sul.
Aqui também estive com a bicicleta, em 1980, quando girei pela América do Sul durante oito meses. Foi nessa ocasião que conheci a Rio – Santos e disse para mim mesmo que um dia ainda iria fazer uma viagem por este mar maravilhoso, como fiz de windsurf e estou prestes a fazer agora, de caiaque...
Fomos tomar um chope num barzinho e ficamos curtindo esta cidade encantadora e histórica.
Aqui, as ruas de pedras irregulares são invadidas pela água do mar durante a maré alta.
O casario colonial data de 1700 e a cidade foi antigo porto de escravos e saída do ouro das Minas Gerais para o reino de Portugal.
Voltamos para a pousada e assistimos a luta na qual o Mike Tinson mordeu violentamente a orelha do Evander Holyfield; perdeu a luta, é claro!
Telefono para todos e para a namorada que cantou (chorando) uma música do Legião Urbana, que a gente gostava...
Segura essa brody!
Daqui para a frente tenho que esquecer tudo e todos para não ficar angustiado no mar.
Estes sentimentos podem ocasionar decisões erradas. Lá no mar, o erro não terá perdão...

29/06/1997 Domingo
Após o café da manhã, partimos às 9 h rumo à Angra dos Reis, para o norte. Pelo menos o dia ficou bonito e até paramos para fotografar algumas paisagens lindíssimas da baia de Sepetiba.
O tio Helder diz que encontrou ossos humanos perto da estrada...
Depois de passar por Angra, fomos na direção da barra de Guaratiba, no limite sul da cidade do Rio de Janeiro.
Ali foi o local de onde eu parti com a prancha de windsurf, mas isto é outra longa estória.
No caminho para a barra, um turbilhão de pensamentos começa a girar, mas são interrompidos a todo instante pelo Sávio que faz muitas palhaçadas e ajuda a descontrair o ambiente, mesmo que o motivo das piadas seja comigo e os tubarões.
Não estou levando foguetes de sinalização, rádio ou qualquer outra coisa que me faça pedir ajuda. Se vou me meter em encrenca, terei que sair sozinho dela, ninguém mais ficará sabendo...
Será uma coisa pessoal entre eu, o caiaque, o mar e os tubarões...
Treinamento?
Deixa para lá; quando colocar o caiaque n’água treinarei durante o percurso.
É incrível, até agora eu não coloquei a carga no caiaque para testes. Quando colocá-lo na água, já na saída, será a primeira vez...
Além do “arpão”, levarei uma faca amarrada junto à caixa da bolina. Se vou morrer, não será sem luta.
Acho que é uma viagem sem retorno, mas acredito piamente que nosso destino já está traçado e que se não for para ser agora, não será.
Já enfrentei a “véia da foice” tantas vezes que parei de me preocupar com ela.
Ela que corra atrás de mim, porque já estou zarpando...

BARRA DE GUARATIBA - “VAI MORRER”
Paramos para almoçar bem ao lado do canal de mangue de onde pretendo partir; dá para ver os caranguejos se deslocando pela lama cinza e fedorenta.
Depois vamos seguindo o canal até que reconheço o local de onde parti com a prancha. É um local gramado, pertence a um clube náutico do outro lado do canal.
Baixamos o caiaque e vamos montando as ferragens, leme e mochilas enquanto o Sávio vai filmando e comentando, remexendo nos meus pertences.
Descarregamos o carro e não acreditamos que toda aquela tralha irá caber no barco.
É a primeira vez que vou carregar o caiaque e nem sei se ele irá boiar com tudo.
Como que por mágica, tudo vai assumindo seu lugar. O que sobra, dou para o Robson levar de volta.
Como luxo, estou levando duas garrafinhas do vinho do tio Laerte, lá de Porto Alegre: além de matar o desejo de algo diferente, vou me lembrar do pessoal da Vila Nova nos momentos mais difíceis. Também levarei três latas de leite moça.
Cara! Que barra pesada!
Troco de roupa, fecho os compartimentos do caiaque, arrumo as mochilas e outros cacarecos nas cobertas de proa e popa.
Colocamos o barco no canal e tivemos uma surpresa...
Não afundou!
Coloquei meu peso (mais uns 75 kg) e a linha d’água ficou três dedos abaixo da borda, dava para sentir que o coitado estava no limite de carga. Aqui, na calmaria do canal do mangue tudo bem. Quero ver como vai ser nas ondas do mar aberto.
Enquanto o Sávio me filma (remando no canal para sentir o barco), ele pergunta em voz alta:
- Quer desistir?
- Não, digo eu.
- Então vai morrer...(diz isso em voz baixa)

É gozado, estamos todos quietos de repente, parece que todos sabem que ali poderemos estar nos vendo pela última vez; é muito ruim!
Vou me despedindo dos meus amigos com aquela sensação de que não voltaremos a nos encontrar.
Melhor acabar logo com isso, pois o peito parece me sufocar.
Dou um tchau apressado!
A voz quase não saiu, havia um nó na garganta.
Olho para a frente e só vejo mangues a perder de vista, vou remando em frente e nem olho muito para eles, a não ser quando chego numa curva e viro para acenar pela última vez.
Apenas vejo meus amigos de longe, em silêncio, nem uma piada para quebrar o clima que paira no ar.
O Robson comenta, assim que dobro a curva e sumo da vista deles (enquanto filma) :
- Vai morrer!



Surgi, estou no mar
O que eu tinha, o que era,
Ficou para trás, à deriva.
São momentos cercados de névoa,
Marcas perdidas no tempo!

Vou deslizando entre o céu e as ondas
Neste sobe e desce infinito;
Na direção do horizonte sem fim...
Ondas, tubarões...
Minhas ilusões.
São cartas marcadas,
Companhias na solidão!

As estrelas que surgem,
Parceiras da lua,
Apontam para o sul,
Meu azimute!

Estou me diluindo.
Quem sabe ao longe,
Na linha do horizonte,
Quem sabe nestas imensas vagas...
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MAR FOSFORESCENTE - A MORTE NO MANGUE
Parti às 16 h, entre os canais tomados pelas árvores do mangue; será um longo percurso até encontrar terra firme. Pelo menos, depois de chuvas sem fim, estava fazendo um sol gostoso e com pouco vento.
Fui seguindo pelo mangue sem ver ninguém.
Uma paz incrível foi me acalmando enquanto o caiaque deslizava em águas tranqüilas no rumo NW.
As águas são muito rasas, tanto que tenho que levantar a bolina que raspa no fundo. O caiaque está tão abarrotado que tenho que sentar sobre a roupa de neoprene por não ter onde colocá-la, já que está quente e não a estou usando. A capa e a vela estão enroladas.
Levei um baita susto quando um peixe saltou sobre as pernas e ficou se debatendo ao lado da caixa da bolina.
Paro para bater fotos do morro de onde parti e do que tenho pela frente e lembrei de um ditado em espanhol da viagem da bicicleta, lá no Chile:

Caminante, no hay camino,
Se hace el camino al andar!
Son tus huellas (pegadas) el camino
Y nada mas...
Al andar se hace el camino
Y al volver la vista atrás
Se ve la senda (trilha)
Que nunca volverá a pisar...

Allá, lejos (longe),
Donde brilla el sol
Están mis supremas esperanzas!
Talvez no las alcance,
Pero puedo ver su belleza,
Creer en ellas ,
Y tratar de seguir
El camino que me enseñam


Posso citar outro agora neste momento de confusão de idéias, de tentar entender a pergunta que sempre faço a mim mesmo nestas horas...
O que é que eu estou fazendo aqui?
Bueno, a resposta é mais ou menos assim:

La vida há llegado a mis manos
Por um breve instante,
Como una antorcha esplendida !
Y yo quiero acerla arder com el mayor brillo possible
Antes de entregarla a las generaciones venideras...

Acho que esta é do “tio” Pablo, o Neruda. Grande cara!
Não pude deixar de comparar com a viagem de windsurf que aqui iniciei quase doze anos antes. É por causa dela que aqui estou de novo.
Aquela dor na coluna me fez desistir e aquilo ficou entalado na garganta. Todo esse tempo passou mas a dor de desistir deixou marcas profundas, parece que o meu destino é repetir a cena, apesar dos enormes riscos.
Anoiteceu (17:30 h) mas fui seguindo em frente, pois não havia lugar para acampar entre o mangue. As luzes das cidades, do outro lado da baía de Sepetiba, iluminavam as águas calmas.
O mar estava fosforescente e as ondas deslocadas pelo caiaque brilhavam.
A água que espirrava nas remadas, brilhava como miríades de estrelas verdes.
Que coisa linda!
Mesmo no escuro, podia ver os cercados para peixes, um pouco mais para o fundo. É tipo um labirinto de onde eles não sabem sair, curioso...
Fui seguindo, com a margem por bombordo e com a baía por boreste, pois os canais do mangue se abriram e agora posso dizer que estou no mar.
Estou seguindo por dentro da restinga da Marambaia, zona militar e local de exercício de tiro real. É uma estreita faixa de terra que se alonga por muitos quilômetros e termina num pontal, onde está baseada a sede dos fuzileiros navais.
Como a noite está calma e posso ver a margem, resolvo ir tocando no escuro mesmo.
Esqueci que o tempo está horrível, é ressaca em cima de ressaca, muita chuva e este momento foi uma exceção.
Os relâmpagos no horizonte me fazem dar conta disto e resolvo encostar na primeira praia de areia que encontrar, pois as árvores de mangue não permitem que eu chegue em terra firme.
Avistei, enfim, uma praia com areias brancas onde resolvi fazer um alto junto a pequenas árvores que emergiam da água e onde poderia amarrar o caiaque de modo que a maré não o levasse.
Abro as tampas no escuro e cuido para não perder as borboletas, pois o caiaque está flutuando e se algo cair, não encontro mais.
Achei a barraca e vou montando no escuro mesmo, pois achei a lanterna mas não achei as pilhas.
Neste vai e vem por dentro d’água, vou tropeçando em galhos submersos e numa coisa meio mole que quase me fez cair.
Montei acampamento, fico na barraca olhando mapas e descubro que andei uns 12 km, apesar de remar apenas duas horas (cheguei aqui pelas 18 h).
Nem fiz comida, o estresse da partida me tirou a fome e apenas belisco um chocolate.
Ainda não caiu a ficha de que tudo começou.
Por volta da meia noite a maré subiu muito e tive que ir buscar o caiaque (que estava flutuando amarrado a um tronco de mangue) e arrastá-lo mais para cima junto à essa elevação de areias brancas onde montei acampamento. Vai que arrebenta o cabo e eu perco o barco.
Eu trouxe um minúsculo rádio e pude escutar a decisão da Copa América em La Paz, onde o Brasil venceu a Bolívia por 3 x 1 (gols de Ronaldinho, Edmundo e Zé Roberto).
Estou estreando uma pequena barraca iglu, pesa menos de 2 kg e é muito fácil de armar.
Junto com o saco de dormir, ela vai alojada no compartimento estanque da proa, ali também vai o fogareiro a gás e roupas que uso para dormir. Comida, algumas ferramentas e bujões de gás seguem no compartimento da popa.
A chuva começou, mas não é forte.

30/06/1997 Segunda-feira
Agora são 6:45 h, choveu toda noite e ainda está chuviscando, a barraquinha aprovou. Enquanto espero a chuva passar, vou escrevendo o diário e escutando o barulho das ondas do mar, no outro lado da restinga da Marambaia.
O tempo está feio, vejo urubus pousados quase ao lado da barraca.
Aqui tem muito urubu, eles comem peixes mortos e carniça de animais que o mar joga na areia
Achei que estava com alergia no rosto, mas eram maruís (uma mosca microscópica chupadora de sangue), milhares delas.
São tão pequenas que passaram pela tela da barraca e o “inteligente” resolveu queimá-las com o isqueiro, quase queimo a barraca.
Vou comer um pouco de chocolate e tentar organizar melhor as coisas no caiaque, pois não achei a lanterna quando precisava.
Tenho duas mochilas que vão amarradas nas cobertas de proa e popa. A chuva parou, fui lá na rua, tirei duas fotos do local e constatei que entrou muita água no compartimento de popa. Foi muita água para apenas duas horas, terei de descobrir onde é o furo.
Agora são 7:33h e está chovendo muito forte, a maré está subindo e, por enquanto, vou ficando na barraca.

“ULISSES” O CADÁVER ESQUARTEJADO
A chuva parou de novo e aproveito para lavar a panela ali na beira. Depois pego um chocolate e vou verificar aquela meleca amarelada que os urubus estão comendo quase ao lado da barraca.
Fiquei ali, em pé, comendo o chocolate e olhando aquilo.
Que troço esquisito!
Parece restos de macaco...
Que macaco grande!
Cara!
Parece gente!
É um cadáver!
Carajo!
Está esquartejado...
Dá para identificar as duas pernas, cortadas do joelho para baixo. Estão repousadas sobre a areia. Acho que é a mão direita que sai da areia, junto ao pé esquerdo.
O resto do corpo esta semi-enterrado na areia, marcada pelas patas dos urubus que o estavam comendo.
É muito parecido com os corpos banhados em formol, das aulas de anatomia na Odontologia.
Detalhe: o cadáver está sem roupas, isto é feito para dificultar a identificação!
Provavelmente foi enterrado, mas o movimento das águas expôs partes do defunto.
Quando cheguei aqui, no escuro, ele estava submerso e foi nele que eu tropecei e quase caí.
Pior, foi ali, ao lado dele, que eu lavei a panela...
Por isto que a sopa ficou meio azeda...
Bueno, como quem não quer nada, viro o pescoço para um lado, para o outro e não vejo ninguém.
Vou até a barraca, pego a máquina fotográfica, tiro umas fotos do defunto e resolvo partir.
Não faz muito, caiu um helicóptero nestas águas, nele estava o senador Ulisses Guimarães, que não foi encontrado...
Arrasto o caiaque para o lado, para não pisar no “Ulisses” de novo.

Eu, heim?
Nem pensar!
Deu pra ti, baixo astral!
Vou pra Porto Alegre, tchau!

Para as primeiras horas de viagem, o “cartão de visitas” foi animador.
O que teremos mais pela frente?
Pois é, seu André, mais “uma” para o teu caderninho.
Lembra da selva amazônica, no Peru?
Lá, foi muito, mas muito mesmo... pior do que isto aqui!
Esse, já está morto...

FICA NA TUA
Parti às 9:30 h, remando paralelo à Restinga da Marambaia, local que pertence às forças armadas e de acesso interditado ao público.
Vou no curso NNW (entre 270 e 300 graus), com vento contra, mar bem calmo e um pouco de sol.
Vou seguindo no contra vento (com a vela enrolada) enquanto observo barcos de pescadores mais ao fundo, jogando suas redes, recolhendo e seguindo no mesmo sentido que eu.
Andei assim por duas horas e parei para almoçar um pedaço de queijo, um de salamito e um pedacinho de chocolate.
Não falei com ninguém sobre o cadáver, melhor ficar na minha.
Não vejo, não ouço, não falo...
Aliás, não falei com ninguém até agora, apenas um tímido aceno sem resposta para um barco de pescadores que passou mais perto, parece que aqui ninguém confia em ninguém...
Estou com o corpo meio dolorido de remar, coisa que não estava acostumado, mas vou me adaptando.
Estou abaixo de antiinflamatório, pois no jogo de despedida com os amigos, fui calçado por trás e luxei a clavícula ao cair sobre o ombro. Agora, vai ter que curar na marra!
Na parte da tarde o vento foi ficando cada vez mais forte, mas junto a margem eu não o sentia tanto, as dunas me protegiam um pouco.
Na parada que fiz, percebi que continua entrando muita água no compartimento de popa, mas como estou costeando a restinga e isto não representa perigo agora, resolvi seguir em frente e consertar quando estiver inspirado.
Como o barulho do mar está muito forte do outro lado da restinga, resolvi atravessá-la a pé para ver as ondas.
OLHA O QUE TE ESPERA
Aqui a restinga tinha apenas uns 200 m de largura e o que vi me deixou impressionado e de baixo astral.
Ondas fortíssimas e gigantescas, nem para o fundo fica melhor, um mar terrível e violento.
Fiquei deprimido, como vou seguir num mar assim?
O meu caiaque está ultrapesado e não tem agilidade para vencer e navegar por ali, assim não tenho a mínima chance...
Volto para o outro lado da restinga que funciona como quebra mar e fico sentado na areia, olhando para o nada!
Como o vento contra e as ondas aumentaram ainda mais, resolvi exercitar as pernas e ir puxando o caiaque até umas árvores ao longe, onde poderia levantar acampamento abrigado desse vento forte.
Enquanto puxava, algumas gaivotas malhadas e garças, além de pequenos quero-queros da praia, seguiam caminhando pela areia, a meu lado, enquanto eu observava a paisagem.
As dunas são tomadas por uma infinidade de lixo plástico, pneus, pedaços de árvores, peixes mortos e carniça de diferentes animais.
Em um determinado local, havia, na duna uma cadeira de praia disposta de frente para um tubo de televisão acomodado sobre um balcão de areia...
Depois, meio que boiando, meio que encalhado, havia uma carcaça do tamanho de um homem no local por onde iria cruzar.
Puxei o caiaque para a beira e, com um pau, fui investigar o que era aquilo. Estava com água pela cintura e puxei-o com o pau mais para o raso.
Pelas vértebras dorsais, descobri que não era gente...Talvez restos de um golfinho.
O ambiente ficou pesado, mas faz parte desta trilha.

BAIXO ASTRAL
Ameaçava dar um temporal e as nuvens cobriram o sol. As ondas ficaram maiores ainda, dificultando mais ainda o meu avanço.
Ficou frio e feio. Depois de 1:30 h de caminhada, parei junto a umas árvores de mangue próximas da margem.
Limpei o terreno e armei a barraca numa depressão entre as árvores, pois o vento ficou fortíssimo e rugia sobre a copa das árvores e as fazia balouçar como dançarinas frenéticas. Provocava um som ensurdecedor aliado ao som das ondas que estouravam deste e do outro lado da restinga.
Amarro o barco bem firme nas árvores, pois a maré é violenta e sobe muito por aqui.
Tive uma experiência muito desagradável na viagem de windsurf, quando quase perdi a prancha que o mar estava levando.
Cheguei aqui às 16:10 h, super cansado e abatido, mas já fiz um miojo meio forçado e agora (19:08 h) sigo escrevendo à luz de vela aqui no interior da barraca. Estou pensando no meu pessoal e não estou muito legal, mas tenho que segurar a barra...
Para seguir em frente, terei que diminuir a carga e consertar o furo na popa. Depois sigo até Parati para abastecer e descansar.
Por enquanto estes são os planos, depois vejo o que faço.
O Robson pediu meu sabonete emprestado lá na pousada e não devolveu, só percebi quando fui tentar tomar banho agora. O corpo está uma meleca grudenta e o cabelo um emaranhado só.
Banho de água doce sei lá quando...

Pensei muito nos entes queridos e vim cantarolando músicas que me transportam a lugares mais agradáveis do que este aqui, cheio de coisas mortas...
Cheguei aqui muito mal psicologicamente, pois tenho consciência de que se o mar estiver deste jeito, não terei condições de continuar. Não estou muito legal, mas tenho que segurar a barra!
Bueno, o negócio é tentar dormir um pouco e deixar as encrencas para amanhã, pois hoje foi estafante.
Está trovejando e o clima ficou ruim; vou tentar escutar um pouco de rádio e descansar.
Pelas minhas contas, viajei cerca de cinco horas e percorri cerca de 20 km. Não está tão mal para um dia ruim de vento contra.
Espero que amanhã melhore, buenas noches!

01°/07/1997 Terça-feira
Acordei pelas 7 h, fiz o café com a meleca (leite em pó, nestogeno, aveia e Nescau), mais um pedaço de chocolate.
Dormi super bem e agora escrevo, escutando música, enquanto chove e venta pra caramba lá fora!
O lugar é tri mocoseado e a barraca quase não balançou, mesmo com o forte vento que fez a noite toda.
Ontem, estava sem fome alguma, tal era o cansaço, mas me obriguei a comer e tomar umas vitaminas (dadas pelo Bello e pelo Rojas), pois praticamente não estou comendo nada.
Até agora não falei com ninguém desde que sai de Barra de Guaratiba. Vou tentar consertar o furo antes de partir, pois a água já estragou alguns pacotes de miojo que estão molhados.
Azar, vou comê-los assim mesmo!
Trouxe 1 litro do vinho do tio Laerte, que é um néctar, uma delícia!
Remendei, com durepoxi, os locais onde penso que eram as infiltrações na popa. Arrumei as tralhas e parti às 10:30 h, com vento favorável no rumo NW (290 – 300 graus). Pela primeira vez usei a vela.
Entrava um pouco de água, mesmo com a capa. Com a esponja, ia tirando um pouco da água gelada que se acumulava aonde eu ia sentado.
As ondas eram razoáveis, mas fui indo bem por duas horas, apenas tive um problema com a cana do leme que trancava na mochila da popa, mas depois de uma parada, resolvi o problema.
A restinga foi afinando até que cheguei numa parte bonita, era a Ponta da Pombeba, que aponta para a Ilha de Jaguanum.
Apesar da chuva e do vento, era um belo e desolado local.
Centenas de gaivotas estavam pousadas ali, para abrigar-se do forte vento.
Eu tremia incontrolavelmente, mesmo depois de colocar a roupa de neoprene (de manga curta).
Eram 13:45 h, tomei a decisão de seguir para a I. de Jaguanum, pois para lá o vento era favorável, ao invés de ir para a Ponta Mangona (onde existe a sede dos fuzileiros navais), como pretendia antes.
Meu plano era costear a restinga, para, na ponta Mangona, fazer uma travessia mais curta, já em mar aberto.
O problema é que o vento estava muito forte e para outra direção, então teria de mudar meus planos.
Resolvi dormir na ilha de Jaguanum, tal qual fizera de windsurf.
Que coincidência, quase todos os pontos onde dormi agora, foram quase os mesmos onde dormi àquela vez.

JUREI MENTIRAS E SIGO SOZINHO...
Coloquei a capa para a travessia, pois iria enfrentar o mar de ondas grandes e com este vento fortíssimo.
Estou prestes a passar pelo primeiro teste de fogo, digo, de mar.
O cara chega num ponto onde não pode mais vacilar, não tem esta de medo de tubarão, de ondas, etc.
A adrenalina está a mil, daqui para a frente nada é certo, apenas o fato que vou sair de terra firme.
A única coisa certa é que minha vida está, mais do que nunca, nas mãos de Deus.
Sento no caiaque, ajeito tudo e deixo que o vento me leve em frente (às 13:45 h).
À medida que vou me afastando, baixo a bolina e fecho a capa do caiaque sobre ela.
Estou indo na direção da ilha de Jaguanum, vejo que está tudo sob controle e me acalmo o suficiente para seguir mais para bombordo, na direção de três outras ilhas para onde o vento aponta.
À medida que avanço, a cor da água vai mudando, antes, era parecida com a Lagoa dos Patos, mas agora ficou cinza escuro.
O caiaque se comporta bem na direção do vento, mesmo com ondulações enormes.
O sistema do leme, controlado pelos pés está funcionando otimamente. Fixei as escotas da vela nos mordedores laterais, tracei um rumo e assim podia remar enquanto a vela ajudava no rumo do meu destino.
Mudei de planos de novo, resolvi não ir mais para Jaguanum, resolvi ir um pouco mais adiante e seguir na direção das três ilhas, dormir em uma delas e partir amanhã de manhã para uma grande travessia.
Em poucos minutos, fui passando a SW de Jaguanum até cruzar um canal entre as duas primeiras ilhas.
Havia, numa delas, uma rampa de concreto sobre as pedras para os moradores dali retirarem seus barcos do mar.
A ILHA DOS BUGRES
A velocidade era boa e fiquei observando, sem remar, apenas no embalo da vela, os moradores e as pedras da ilha enquanto seguia em frente.
Passei pelas duas primeiras ilhas e avistei uma praia de areia na terceira, ideal para acampar com segurança e partir no dia seguinte, mesmo porque a ilha de Jaguanum ficou muito longe e no contravento, já era!
Fui me aproximando da ilha e baixei a vela ao me aproximar da praia (às 14:40 h).
Uma placa avisava que a ilha era particular e que havia cães...
Resolvi não desembarcar, preferi chegar próximo de uma pequena casa e chamar alguém para pedir permissão para encostar.
Chamei por alguém e vi uma mulher correr para o interior da casa, fechar as janelas e as portas; tudo ficou em silêncio.
Mas que bugra!
E agora?
É obvio que ali não daria para ficar, com certeza eu não era bem vindo!
Aqueles bugres estavam com medo de mim.
Bem vindo ao paraíso seu André!
Ir para Jaguanum contra este forte vento (de barlavento) seria impossível para meu toco (disfarçado de caiaque).
Agora estou sem saída, não posso ficar aqui, não há como voltar no contra vento e, se fizer a travessia neste pau de vento, não mais terei abrigo da costa e vou ver como é andar naquelas ondas que vi do outro lado da restinga, ontem...
Pior, com certeza vou enfrentar tudo isto no escuro!
Acho que chegou a hora do meu santo protetor voltar a trabalhar...

ALEA JACTA EST (A SORTE ESTÁ LANÇADA)
Eu levo comigo, numa planilha de acrílico, um mapa com foto de satélite (ao invés de um mapa rodoviário que usei na viagem do Wind).
Decidi que deveria seguir para a Ilha Guaíba, há dez quilômetros de distância, depois dela só o continente, há 15 km.
Detalhe: eu não estava vendo nada para o continente, devido à chuva e à neblina.
Posicionei o mapa de acordo com a ilha onde estou e calculei, aproximadamente, qual o curso a seguir.
Merda!
Quando eu iniciei a viagem disse para mim mesmo, que se quisesse permanecer vivo, deveria fazer tudo com segurança, só partir com tempo bom, nada de arriscar no mar.
Acontece que as coisas simplesmente não acontecem do jeito que gostaríamos que acontecessem.
Como iria prever esta situação?
Agora, aquela droga de sensação de que vou entrar numa fria não é suficiente para que eu evite sair para o mar violento e no escuro ainda por cima.
A neblina e a chuva, que escondem tudo, parecem assumir a forma de um vulto gigante, acho que é a véia da foice!
Parti no rumo de 300 graus NW, na direção de algum ponto depois da neblina.
Conforme vou saindo do abrigo da ilha, o caiaque vai sendo apanhado por enormes ondulações e a vela se estica, empurrando-nos para o desconhecido.
As ondas pareciam montanhas enormes, esverdeadas e intransponíveis, mas o Náutilus subia todas com facilidade e, por isto, fui me acalmando, pois senti que o caiaque estava se saindo bem. Eram as mesmas ondas que vi ontem e que me deixaram de baixo astral. Agora não tenho mais a proteção da restinga e a hora da verdade começou.
Para um marinheiro de água doce, estreando num sufoco destes, até que não estava mal.
O sobe e desce nas vagas alternava uma sensação de poder na crista, como se estivesse num mirante, muito acima da linha média do mar e uma sensação de resignação ao descer na cava, 2,5 a 3 metros mais para baixo.
Que coisa mais louca!
CHUVA E NEBLINA
É um verdadeiro batismo de fogo, estou enfrentando o mar com ondulações gigantes, vento frio e fortíssimo. Por enquanto tudo bem, quero ver é chegar em algum lugar.
Desisti de ver algo para a costa e fui olhando apenas para a bússola, o máximo que consigo ver é o contorno das montanhas mais para o alto, em plena serra do mar e algumas ilhas mais isoladas.
Olhando para a direção do continente, não é possível determinar o que é ou não é uma ilha.
Para piorar, começou a chover mais forte e a neblina aumentou.
Droga, droga, droga!
Aquela sensação de perigo de vida se apossou de mim, sei que as coisas estão ficando fora do controle e ainda vão piorar.
Isto está me deixando nervoso ao extremo, São situações novas para mim e não sei como enfrentá-las, só saberei quando chegar a hora...
Tu sentes os braços gelados da veia da foice querendo te envolver pouco a pouco.
Andei cerca de uma hora orientado pela bússola e pelo vento, no curso de 300 graus e consegui ver a sede dos fuzileiros navais na ponta da Mangona, para bombordo.
Ali terminava a Restinga da Marambaia e o novo horizonte para bombordo era o mar sem fim...
As ondulações aumentavam cada vez mais, mas a capa dificultava a entrada da água no cockpit. Quando enchia, eu colocava o remo na borda lateral, mantinha o curso com o leme e esgotava a água com a esponja (minha bomba de porão) em poucos minutos.
Desta forma, o barco ficava mais leve e seguia mais rápido.
Andei mais uma hora e percebi que o terminal onde um gigantesco navio estava atracado era a tal ilha Guaíba.
A minha rota aproava para outra direção e agora, quando tentei mudar a rota na direção da ilha, o fortíssimo vento impediu.
Eu estava há uns 5 km da ilha e não havia mais a possibilidade de me dirigir para lá.
Percebi que bem mais ao fundo, na direção do continente, estava a enseada de Mangaratiba, onde encerrei a viagem de windsurf na véspera do Natal...
É estranho tu veres um gigantesco navio petroleiro ou cargueiro atracado para a costa. Assim como está atracado, ele ou outro podem vir na minha direção e a coisa vai ficar difícil. A imagem é sempre inversa, ele no horizonte e eu na costa!
Perto destes navios tem muito tubarão que fica em roda para comer restos que a tripulação joga pelo costado.
Lembrei que coloquei a lanterna na mochila da popa e agora era quase impossível me virar para pegá-la.
Eram 16:30 h, só tinha mais uma hora de luz, talvez menos com estas nuvens e neblina.
Escuto barcos de pesca, mas não os vejo. Tão pouco qualquer barco irá me ver no meio destas ondulações gigantes
A situação está ficando crítica. Cruzei com uma pequena baleeira que colocava redes.
Fiz sinal, mas nem me deram atenção e segui meu caminho, quase colidindo com a bandeirola preta da rede deles.
Só faltava a bolina do caiaque enroscar numa maldita rede de pesca.
Depois da rede, avistei umas enormes bóias de sinalização do canal para os navios de grande porte que se dirigem para Mangaratiba e para aqueles que fazem a rota Mangaratiba-Ilha Grande.
As verdes (Boreste) e vermelhas (Bombordo) tinham energia própria fornecida por baterias solares.
Com muita preocupação, percebi que estas ondulações gigantes se dirigiam para o continente e explodiam contra as rochas da costa.
Meu caiaque seria uma casca de noz esmagada contra os rochedos se eu bobeasse. Pior, como iria desembarcar no escuro?
Se eu entrasse numa enseada achando que houvesse uma praia, e se tal praia não houvesse, seria esmagado contra os rochedos, pois o caiaque não conseguiria voltar contra as ondas e o vento.
THE DARKNESS - HELL’S BELLS
Acontece que escureceu de vez e nem o mapa, relógio ou bússola eu conseguia ver.
Avistei ao longe um navio que se dirigia na minha direção, e eu ainda estava cruzando o canal demarcado pelas bóias. Como estivesse sem a lanterna (que deixei na mochila da popa) e não conseguisse alcançá-la, estava invisível para eles.
Então só me restava torcer para que a velocidade de cruzar o canal fosse maior do que a do navio que vinha na minha direção.
Aí quem é que fica tranqüilo e consegue manter o controle?
As situações de perigo vão se sucedendo, uma atrás da outra e o rosto começa a se contrair involuntariamente.
Como eu percebi, meu próximo destino (a ilha Cutiatá-Açú) ficava bem na direção do vento, meio que paralelo à costa. Dessa forma, poderia seguir no escuro, na direção do vento, que certamente iria na direção da ilha.
Comecei a ficar nervoso, pois ficou muito escuro por causa da neblina, aliado a isto, estava há quatro horas dentro do caiaque.
Estou enfrentando uma situação muito estranha; vento fortíssimo, ondas gigantes, chuva e neblina, escuridão e meu corpo no interior de um caiaque à vela...
Parece que é um filme, que não sou eu que estou ali... é um barato estranho!
Outro problema: todas as ilhas são formadas por rochas em todo seu perímetro e é difícil encontrar uma praia de areia.
E se a ilha para onde me dirijo for toda de costões? Como vou desembarcar?
Só consigo enxergar luzes de alguns povoados para a costa e o vulto da ilha no escuro.
Conforme o ângulo, o vulto parece se fundir com as sombras do continente e tudo parece ser uma coisa só.
A favor das ondas, as coisas ainda estavam sob controle, mas qualquer vacilo, como deixar o barco ficar de través para o forte vento, e tudo se transformaria em pavor, pois se isto acontecesse, não tenho medo de dizer, ia me ferrar com certeza!
Que coisa! Agora estou aqui nesta loucura, nem acredito que está acontecendo.

BATISMO DE MAR - A LAGE BRANCA
Bueno, o vulto da ilha estava muito distante ainda e a vela na proa atrapalhava a visão, mas eu não podia arriá-la, pois neste pau de vento, qualquer movimento em falso e o caiaque viraria.
As ondas já quebravam e eu nem olhava para os lados com medo de perder a concentração e virar.
Minha orientação era o contorno das montanhas contra o céu. O vento só fazia aumentar e todos meus planos de viajar com o mínimo de segurança já haviam naufragado.
Tinha que manter a calma, mas quase aconteceu uma tragédia.
Após uma gigantesca ondulação, o caiaque deu uma guinada para o lado e a vela saiu da minha frente.
Cara! As ondulações que seguiam na minha frente estavam sendo transformadas num inferno branco de espumas e estrondos enquanto se esborrachavam contra os rochedos...
Eu não percebera que estava em rota de colisão contra uma ilha de pedras (Laje Branca) bem à minha proa, a menos de 200 metros. Eu seria o próximo...
Gelei por dentro!
Era uma visão pavorosa, iria virar guisado...
Tive que controlar o pavor, mudar a rota e pegar esse vendaval de través, arriscando a virar e ficar sem chances, mas iria morrer igual se não tentasse desviar e fosse de encontro às rochas.
Nestas horas, ou o cara fica paralisado pelo medo e se deixa levar ou luta com tudo o que resta para mudar o destino.
Controlei o medo (o maior perigo) e fui passando de raspão por este traiçoeiro parcel no meio do oceano.
O máximo que consegui me afastar das rochas foi cerca de 15 metros, não sem ver e ouvir o choque das ondas contra os rochedos.
Parecia uma explosão que subia a alturas imensas, carregando consigo mariscos e pedaços de rochas. Não pude deixar de imaginar o caiaque no meio daquilo.
Para sobreviver, só se fosse mágico...
O estrondo era o que mais impressionava!
Ainda muito impressionado, consegui sair dali.
Fui seguindo pela noite e a situação começou a ficar desesperadora, pois nem o vulto da ilha eu conseguia identificar mais.
Se eu me aproximasse por engano da costa, poderia ficar num ponto onde as ondas me jogariam contra os rochedos no escuro.
Na dúvida, tive que aproar para longe da costa, só poderia me aproximar com certeza absoluta, caso contrário, o preço a pagar pelo erro seria muito alto.
Consegui sair dali, mas já estava desesperado com a idéia de não poder parar na ilha se ela fosse de costões, pois para a costa eu não poderia ir no escuro e correr risco de vida.
Cara! Pensei que ia morrer!
Mas nestas horas me dá uma raiva de não entregar os pontos sem luta...
É o que me mantém vivo até hoje, apesar de, no íntimo, estar desesperado ao extremo.
Eu intencionava me aproximar da ilha contornando-a pelo lado mais próximo do continente, mas como não tivesse mais certeza de que ali fosse a ilha, fui obrigado (a contra gosto) a aproar para o mar novamente, para contorná-la pelo lado de fora.
Sabia que contornando-a, mais cedo ou mais tarde ficaria ao abrigo das ondas e do vento. Dessa forma, poderia raciocinar um pouco e pensar no que fazer.
Assim fui seguindo, queria passar aquela ponta ou ilha e entrar à boreste do costão onde iria ficar a reversa do vento SE.
Quando cheguei bem próximo, só escutava os estrondos das ondas nos costões.
Apavorado, mas lutando para manter o controle, fui contornando o costão, fazendo força para controlar o barco e tentando enxergar as rochas submersas.
Finalmente fiquei à reversa do vento e das ondas.
Arriei a vela e mesmo a menos de 5 m de distância da ilha, não conseguia enxergar se havia areia entre as rochas, onde poderia desembarcar.
Eu não conseguia pegar a maldita lanterna na mochila da popa.
Depois de muito esforço, consegui pegá-la.
Decidi que se não houvesse praia, iria dormir no barco mesmo, naquela parte onde as águas estavam mansas. Nem pensar de voltar para aquele sufoco assassino!
Fui seguindo devagar pela reversa do vento e vi uma casa mais para o alto, parecia abandonada.
Quase saindo do abrigo do vento, achei uma parte onde havia areia entre as pedras, ao lado de um abrigo para canoas. Bati em rochas submersas mas consegui chegar na praia.
Ali o vento estava forte, mas era terra firme.
Era um ponto onde a ilha ficava mais estrangulada, como se fosse o ponto entre os dois círculos do número 8, só que um dos círculos era bem maior do que o outro.
Puxei o caiaque para terra e optei por armar a barraca ali na praia mesmo, pois ao lado do abrigo para barcos, mais acima no barranco e sem pedir permissão... poderia dar margem a problemas com o proprietário.
Seis horas de mar, todo dolorido e quase 45 km de viagem depois, quase não vi mais nada, comi o miojo e dormi como uma pedra. Que sufoco!

O MAR ATACA DE NOVO
O lugar onde acampei ficava na parte desabrigada do vento e formava uma extensão de areia até o outro lado da ilha (bem estreita e um pouco acima do nível do mar).
Ou seja, as ondas batiam no outro lado e o vento passava como em um corredor e saia por onde estava o caiaque e a barraca.
Bueno, se a água não havia chego até o local onde montei acampamento, com todo esse pau de vento, certamente não chegaria mais.
Apaguei a vela e fui tentar dormir, pois o barulho do vento e das ondas era ensurdecedor!

02/07/1997 Quarta-feira
Sabe aquela sensação de que alguma coisa está errada, um mau pressentimento?
Aquele barulho de água muito próximo?
Já que eu não estava conseguindo dormir mesmo, resolvo dar uma olhada para ver se está tudo em ordem.
Passava já da meia-noite e resolvi espiar por uma fresta da barraca para o local onde estava o caiaque.
PAVOR !
O caiaque sumiu!
Aterrorizado, percebi que a maré subira mais ainda, que as águas ultrapassaram a faixa de terra do outro lado da ilha e agora estavam passando ao lado da barraca.
Saí como um louco da barraca no escuro para achar o barco sumido e quase tropeço no Náutilus.
A natureza é incrível!
As águas arrancaram o barco de onde estava e, em vez de o levarem embora, na direção do vento, trouxeram-no para perto da barraca.
Que cagaço!
Tirei as coisas do interior da barraca no maior sufoco e joguei-as no barranco ao lado, pois a água já estava passando por baixo dela e ameaçava levar a barraca e o caiaque.
Como fosse do tipo iglu e diante da emergência da situação, transportei-a inteira para o barranco ao lado. Depois, já com água nas canelas, percebi que não conseguiria erguer o pesado caiaque e a solução foi amarrá-lo pela proa e acomodá-lo por cima de umas rochas um pouco mais altas.
Acho que quebrou uma das varetas de fibra da barraca, mas foi pouco diante do que eu estava vendo agora, o mar passando onde antes estava a barraca...
Acho que ele está querendo me destruir!
O caiaque ficou amarrado no tronco de uma árvore e eu fui ajeitando as coisas na barraca novamente.
Acontece que eu não conseguia dormir mais, preocupado que estava com o caiaque e com a água que estava subindo e que poderia atirá-lo contra as pedras.
De meia em meia hora, levantava para avaliar a situação com a lanterna.
Felizmente a situação não ficou pior do que já estava.
Já amanhecendo, consegui dormir um pouco. Passei o que restou da noite sonhando com ondas...
Agora são 8:03 h, o dia amanheceu limpo e com sol. O vento assassino parou e o mar parece uma piscina.
Vou comer algo, arrumar os tarecos e partir.
Tenho que conviver com esta sensação de quase morrer a cada dia! Isto é o que sinto a cada vez que retorno para o mar.
Acho que o mar me mostrou aquele cadáver e agora quer que eu seja mais um...
Bueno, não está morto quem peleia (ditado gaúcho). O mar teve sua chance e não aproveitou!
Hoje sigo esta luta rumo à Parati, seja o que Deus quiser!
Fiquei escrevendo e depois tirei umas fotos do local, agora o mar baixou e aquela faixa de terra voltou a parecer um belo local para acampar...
Eu ainda não me acostumei com a maré e quase fico nesta ilha a ver navios...
Por volta de 10 h, chega o Sr. Edgar, que é caseiro daqui e mora no continente. Ficamos conversando pois o vento estava contra e eu, extremamente cansado, estava sem ânimo para partir.
Para apenas três dias de viagem a coisa está num ritmo alucinante e altamente perigosa. Ainda tenho a ilha Grande quase a minha frente, dizem que é lindíssima e ali está localizado o presídio.
Segundo os pescadores, nestas águas terei vizinhos constantes, os tubarões...
Pois é, e agora Tchê?
A minha única defesa é um pequeno arpão feito com uma fisga de rã...
Pergunto para o Edgar se ele tem conhecimento se alguém foi atacado e ele responde que não sabe.
Isto eu vou ter que descobrir sozinho, mas confesso que não é nada agradável sair por ai no meu “transatlântico” contando com a boa vontade dos meus “vizinhos”.
Eu vi, numa revista, a foto de uma fêmea de tubarão branco capturada aqui, na baía de Sepetiba (em uma rede de pesca), ela tinha 500 kg.
Na viagem de windsurf, ajudei os pescadores a recolher as redes na restinga da Marambaia e recolhi vários filhotes de tubarão.
Quer dizer que se há filhotes, os pais deles estão por aqui .
Bueno, não entendo nada de mar, a maré vive me pregando peças, não sei muito da vida de tubarões e na dúvida se eles atacam ou não resta um oceano de expectativas...
Quando o vento diminuiu um pouco, resolvi seguir em frente.
Eram já 12:45 h e resolvi seguir pelo menos um pouco.
Fui na direção de uma praia encravada nos costões (indicação do Edgar). Estava situada um pouco antes de Conceição do Jacareí, provavelmente era no local onde eu vi as luzes ontem à noite.
Coloco meu barco no mar e parto com a vela enrolada. O caiaque está adernando para bombordo, a borracha que não deixa o leme subir rebentou, a pá do remo furou nas pedras e enche de água (o meu remo é de fibra, mais um erro...) deveria ter usado um de plástico, que é mais leve e tem um formato arredondado nas pontas e rende mais que o de fibra, que é reto e pesado.
Aliado a isto, estou me sentindo extremamente cansado e com o corpo dolorido.
Quem mandou não treinar nem fazer exercícios?
Agora, my friend... Ajoelha e reza!
Remei por cerca de duas horas contornei um costão e avistei uma praia lindíssima encravada no fundo de uma enseada, com acesso restrito por uma trilha ou por mar.
Era a praia de Sororoca, águas mansas e esverdeadas, fica de frente para a ilha Grande.
Conversei com dois pescadores que recolhiam sua rede de pesca presa a bambus gigantes que flutuavam em círculo, semelhantes às redes de cerco que são usadas pelos pescadores, em Florianópolis.
Eles estavam em uma canoa feita com um tronco só, elas são feitas escavadas no tronco de Guapuruvú ou Garapuvu.
Bati umas fotos dali e depois fui para a praia, uma pequena faixa amarela na base de montanhas verdes.
À medida que chegava na praia, podia enxergar o fundo há mais de 10 metros e que vinha de encontro ao barco até que encostei na areia. Que água cristalina!
Coloquei as rodas de desencalhe mas elas enterravam na areia fofa e a solução foi arrastá-lo com muito esforço até onde achei seguro, pois a maré é violenta
Marcos e André vieram falar comigo. Eles estão acampados no canto esquerdo da praia com família e tudo.
Acampados é o modo de dizer, pois mais parece é que estão morando aqui. É uma confusão de barracas e tetos de plásticos estendidos entre as árvores, tábuas sobre os riachinhos, dá para dizer que é uma favela.
Mas tudo bem, o importante é que o pessoal é legal e camarada.
Eram 15 horas, armei a barraca e aceitei o convite deles para comer um peixe com arroz. A minha comida é muito deficiente e tento compensar um pouco com as vitaminas que o Bello e o Rojas me deram.
Agora são 18:30 horas, estou escrevendo à luz de vela e me preparo para dormir.
Na vinda para cá, vi um navio de guerra a mais de 10 km e estranhei que conseguia ouvir o barulho dos motores.
No mar, o cara escuta muito longe, embora, às vezes, não consiga ver de onde vem o som.
Uma enorme mancha escura passou por baixo do caiaque, se era tubarão acho que ficou com medo do meu arpão para rãs...
Estou de frente para a Ilha Grande, local de tubarões, mas eu estou naquela do “seja o que Deus quiser”!
Remei só 2:15 h e aproximadamente 8 km, não foi muito, mas pelo menos avancei mais um pouco, apesar do cansaço.
Ademais, o lugar é de cinema, águas verdes e mansas.
Estou com saudades da namorada e dos amigos, mas vai demorar muitos dias até que eu consiga chegar em Parati e possa falar com todos.
Já realizei meu desejo de navegar à noite e, diante das circunstâncias, não pretendo repetir a experiência.
Fazer isto de novo é dar muita chance para o azar, se bem que isto não depende muito de eu querer, são as circunstâncias que fazem os momentos.
Vou escutar rádio e dormir, pois a noite passada isto foi impossível.
Buenas noches!
O Michel foi a pé até a cidade e me trouxe um sabonete que encomendei, agora só falta eu achar água doce para tomar um banho decente.
Eles apareceram agora há pouco para me convidar para jantar, mas recusei, pois ainda estou detonado pelo sufoco que passei ontem e com muito sono. Agradeci aos novos amigos e fui dormir.
Mesmo assim, levantei várias vezes para conferir se a maré não ameaçava levar o caiaque, isto já me deixou traumatizado pois aconteceu agora e na viagem de windsurf.

03/07/1997 Quinta-feira
Despertei às 6 h, consertei os furos no remo com durepoxi, depois troquei a borracha do leme e ficou boa e assim fui arrumando os tarecos.
Os fones do meu radio não funcionam mais e por isto dei o rádio para o Michel, além das pilhas que molharam com água do mar e principiam a oxidar. É melhor comprar pilhas novas.
Parti às 8:30 h com mar de almirante. Água verde cristalina e meu barco segue em frente, traçando linhas harmônicas na superfície.
Agora estou descansado e pronto para outras, o caiaque não está adernando mais e as demais coisas estão funcionando legal.
Aquele arroz com peixe dos amigos me recuperou um pouco, não é fácil remar o dia inteiro e comer um pedaço de queijo e salamito como almoço e um miojo (um pacote de miojo tem apenas 100 g de macarrão) à noite; é muito pouco e o corpo vai enfraquecendo com o passar dos dias.
Fui seguindo no curso NW (300o ) com a Ilha Grande por bombordo e o terminal da Petrobrás como alvo na proa, já no final da enseada de ITAPINHOACANGA.
Enquanto seguia, pude ver casas milionárias construídas sobre as rochas, ao fundo de pequenas e belas baías. Todas tinham seu próprio deck e sua respectiva lancha.
Aliás, está ocorrendo uma coisa intrigante, quase todas as praias são privativas de poderosos condomínios de luxo e o acesso por terra para as praias é vedado ao público.
Acho que tem uma lei proibindo isto, mas aqui no Brasil, muitas coisas são proibidas, mas tudo se faz, que intere$$ante!
A Ilha Grande é gigantesca, parece continente. Ali tem praias belíssimas, mas fica muito fora da rota e demandaria muito tempo para visitá-la.
O terminal é como um viaduto sobre o mar. Fui passando sob o terminal e um pouco mais adiante cheguei na praia da Espia, onde tem um monumento aos mortos do navio de guerra Aquidauã que explodiu e afundou na baía da Ilha Grande, em circunstâncias misteriosas.
Pretendia encostar na praia para comer algo, mas o vento favorável que principiava me fez mudar de idéia e seguir em frente.
Resolvi tocar direto para a Ilha da Gipóia, uns 15 km adiante (umas três horas de remo), só que o vento favorável não durou nem uma hora e voltou a calmaria.
Meu temor era de que quando o vento voltasse, fosse de proa e forte.
Se isto acontecesse, estaria fuzilado, pois agora eu estava a mais de 15 km da costa, longe de tudo e todos.
Esta viagem está se tornando um jogo enervante; se perder, perco a vida...
Além disto, estou com uma dificuldade tremenda em identificar corretamente as ilhas para saber o rumo a seguir.
Depois de muita indecisão, consigo identificar a Ilha dos Porcos (do Ivo Pitangui) e Porcos Grandes já ao largo da baía de Jacuecanga.
Seguindo em frente, após passar por um pontal, avistei a cidade de Angra dos Reis, a Escola Naval da Marinha (onde poderia me alojar como oficial da Marinha) e outras ilhas mais ao fundo. Mas vai que alguém (na Escola Naval) resolve complicar minha situação proibindo de continuar...
Como fosse cedo, resolvi seguir em frente, agora mais próximo do continente (cerca de 5 km) na direção da ilha da Gipóia.
A travessia foi toda feita na calmaria, acompanhado de um sol forte que me obrigou a viajar sem a roupa de neoprene e de óculos escuros.
Na verdade eram óculos de solda que, mais tarde vim a saber, detonaram minha visão para sempre, pois eles dilatam a pupila e não protegem contra os raios ultravioleta.
Imaginem o cara navegando no mar e com o reflexo do sol nas águas espelhadas o dia inteiro e com as pupilas dilatadas e sem proteção...
Ainda por cima, os pingos d’água que caem na lente, funcionam como lente de aumento para a luz que penetra.

OLHO POR OLHO, DENTE POR DENTE
Um pouco antes de chegar na ilha da Gipóia, passei por uma lindíssima ilha toda ajardinada e com ferozes cães pastores que arreganhavam os dentes e latiam furiosamente quando fui me aproximando.
A raiva deles era tanta que entravam na água e nadavam na minha direção.
Isto despertou meu lado assassino e desviei o caiaque na direção deles só por implicância, para que levassem com o remo nas guampas!
Acho que sentiram a maldade e recuaram rapidamente. Nestas horas fico meio assassino; é olho por olho, dente por dente.
Se vou para terra eles me atacam, se eles vêm para a água sou eu quem ataco, não quero nem saber!
Quando um bicho ou alguém me ataca sem motivo, desperta o meu lado assassino, principalmente em viagens como esta em que minha vida não vale muita coisa; assim foi na selva amazônica e continua sendo.
Deve ser esta tensão de querer permanecer vivo que diminui a tolerância ou sei lá o quê!
O Paulo gosta de dizer: “Tem que exercitar a tolerância...”
Aqui é impossível!
Bueno, bati umas fotos da bela ilha e meu filme acabou.
Segui na direção de outra pequena ilha, já na ponta da ilha Gipóia e descubro que ali é a badaladíssima ilha de Caras ou ilha da Piedade.
Ultrapasso a ilha da Piedade e baixo à terra, já na ilha da Gipóia, ao lado de uma belíssima igrejinha rústica, para colocar filme na máquina fotográfica.
Foram quase 7 h dentro do caiaque sem parar nem para comer. Até estou me acostumando.
Que visual de cinema!
É incrível e extasiante estar navegando em águas verdes e cristalinas, vendo as estrelas do mar nas pedras enquanto o caiaque parece deslizar no ar sobre as rochas submarinas, parece que estou voando...
Além de tudo, havia um bar flutuante (como eu vira em uma revista de turismo) ao largo, na enseada. Ali eles servem pratos de frutos do mar como suchis e sachimis.
Coisas de gente rica!
Passei ao lado de uma traineira fundeada onde dois amigos puxaram conversa e me deram uma lata de cerveja gelada para que eu bebesse com eles. Eram Luciano e Sinei que tiraram uns dias para pescar e passear na traineira que compraram só para este fim.
Fiquei no caiaque mesmo enquanto eles batiam fotos para mim. Eles não acreditam que eu vim da Restinga da Marambaia e muito menos que estou indo para o sul com este caiaque que mal excede a linha d’água e carregado como um navio cargueiro.
Depois da agradável conversa e da cerveja, fui para a praia da Piedade, já na ilha da Gipóia e conversei com o Sr. Gabriel e sua família que moram em uma casa rústica com varanda.
Tomei um delicioso café acompanhado de pão e manteiga (que delícia) e fui ajeitar a barraca sob uma frondosa árvore à beira mar, observando o sol de prata se derramando por trás da ilha da Piedade, sabiás cantando e eu viajando em espírito...

Como é que tanta felicidade pode caber no coração?
Como é que num dia a gente está de frente para a morte e no outro se depara com um lugar incrível destes?
As cores são mais vivas, os sons mais audíveis; são nestes momentos que o corpo e o espírito encontram a beleza!
Nada pode ser mais intenso do que tu quase morrer e depois encontrar a alegria de viver!
Parece que corpo e o espírito se fundem com a beleza da natureza.
São por estes momentos embriagantes que eu me tornei um viciado irrecuperável por aventuras e por estes momentos posso até morrer, nada mais importa...

Depois criei coragem e... Aleluia!
Finalmente tomei banho de água doce, com sabonete e tudo...
I’m a new man!
Que diferença, como é bom renascer das cinzas, digo, do sal!
Armei a barraca sob uma frondosa mangueira, puxei o caiaque bem para cima e o amarrei no tronco. As rodas de desencalhe que o Paulo bolou não funcionam na areia fofa e tive que puxá-lo para cima no muque. Cara, ele é extremamente pesado!
Agora são 20 h e escrevo, a luz de vela, dentro da barraca.
A noite estrelada me convidou para ir até a beira do mar silencioso admirar a harmonia do mar com a terra da praia e o reflexo das estrelas pulando sobre as águas.
Pude observar dois satélites em órbitas perpendiculares nesta noite calma e relaxante.
O lugar é de cinema e já compensou todo o perigo que passei.
Por enquanto vou em frente; depois decido se sigo em frente ou paro.
Passei muito sufoco no começo com o defunto, dores musculares, quase morte na noite de ventos e ondulações gigantes no choque contra as rochas da Laje Branca, o susto da maré e dos tubarões...Muita coisa já aconteceu e já tenho muita estória para contar; o que vier daqui para frente será lucro.
Agora vou rumo a Parati e lá decido o que faço.
Obrigado Senhor!
Buenas noches!

4/7/1997 Sexta-feira
Arrumei as coisas e fui na casa de D. Donila e da Gina para despedir-me; acabei tomando café e comendo um pão. Eles foram muito simpáticos e amigos, agradeci por tudo e parti por volta de 8:30 h rumo à ilha de Caras onde estava o Sr. Zezé fazendo reparos no deck onde os artistas tiram as fotos que aparecem na revista.
A maré estava baixa e uma estreita faixa de terra ligava a ilha de Caras com a ilha da Gipóia, bem em linha com a igreja da Piedade. Não poderia sair pelo trecho que fizera ontem.
A solução foi contornar a ilha de Caras para seguir entre a ilha da Gipóia e o continente.
É impressionante a transparência das águas, a sensação é de que o caiaque está no ar, deslizando sobre pedras submersas, vejo jardins subaquáticos e peixes que parecem estar sobrevoando o fundo.
É uma infinidade tão grande de estrelas do mar, anêmonas, pepinos e ouriços do mar, peixes multicoloridos e rochas submersas que, distraído com a beleza de tudo, paro de remar e fico tirando fotos submarinas das enormes estrelas do mar (cor de laranja) e da vegetação exuberante que cresce no fundo.
É isto que este tipo de viagem proporciona: mundos e coisas diferentes, luzes e cores, pessoas com modo de vida completamente distintos de tudo o que estamos acostumados em nossa rotina urbana, a beleza exuberante da natureza marinha e terrestre.
É um show!
Já estou terminando de contornar a ilha da Piedade (Caras) quando vejo um minúsculo barquinho (pouco maior que uma banheira) carregado com estranhas armações trançadas de bambu (em forma de coração) amontoadas na popa e com um senhor que a manobra com um pau (em pé), na proa.
Ele é muito simpático e me explica que estas estranhas armações são armadilhas chamadas covas para capturar garoupas e lagostas e que possuem uma pequena entrada por onde entram os peixes para comer as iscas.
Depois do inusitado encontro, finalmente retomo meu caminho, já por volta de 9:20 h, e vou costeando a ilha da Gipóia.
A exuberante mata atlântica se debruça sobre o mar e vai me acompanhando por uma hora, até que chego na ponta oeste da ilha.
Ali, na ponta, desembarco sobre as rochas para tirar uma foto do local tendo o continente como segundo plano.
Dali, segui em frente, em direção de um rochedo no mar, passando por duas pequenas ilhas, uns 5 km adiante.
O vento resolveu se manifestar e ficou muito forte e contra, dificultando meu avanço e me deixando em uma situação difícil, pois eu estava sem abrigo e a coisa ficou feia.
Quando o cara está em perigo, as distâncias ficam muito maiores e o tempo parece não passar.
Com muito esforço, às 11:45 h, consegui me aproximar daquele rochedo no mar e ficar à reversa do vento.
O problema é que as ondulações enormes e a correnteza dificultavam meu desembarque sobre uma laje e ameaçavam jogar o caiaque sobre as pedras.
Acontece que eu não podia prosseguir (pelas condições adversas), então resolvi desembarcar.
A correnteza tendia a ir da ilha para o continente, por isto, amarrei uma corda no caiaque e desci na laje, com água pela cintura, para comer meu queijo e salamito.
Foi o maior sufoco e as ondulações estavam me desgastando nas pedras, além do que a bolina do caiaque estava raspando nas pedras, o caiaque arranhando e eu cortando os pés na laje escorregadia e inclinada.
Além disto, ao lado era profundo e eu não estava gostando de estar com as pernas dentro d’água, como isca para tubarão...
Resolvi encarar o mar, ali estava muito perigoso.
Rizei a vela, atei cabos de segurança na bolina, no remo e no meu pulso para fazer uma travessia de 5 km em direção de uma ilha na ponta do Mamede.
Parti às 13:45 h e o Náutilus não arrepiou, encarou o mar e as ondas fortes até que o vento foi diminuindo e parou totalmente.
Já ao largo da ilha do Mamede(14:20 h), parei um pouco para descansar e resolvi não seguir a rota segura que traçara antes de partir hoje de manhã.
Passei a leste da ilha e fui em frente, já às 15 h, direto para a ilha Sandri, entre 5 a 10 km do continente.
Como o vento parou totalmente, parei para enrolar a vela na retranca, já ao largo, de onde podia avistar a usina atômica.

UMA BOA CERVEJA GELADA - CONSELHOS
Uma possante lancha de 225 H.P. (Asterix) fez a volta e encostou ao lado. Era o Sr.Gonzaga e o Sr. Mauro, curiosos com o caiaque e pela distância do continente.
Eles me deram uma cerveja gelada e dicas sobre o mar.
- Cuidado com a ponta do Juatinga e com os tubarões!
- A ponta é muito perigosa, cheia de fortes correntes, ondas violentas e falta de abrigo, pois há mais de 60 km de costões...
- É muito perigoso!
- Ela é o nosso Cabo Horn !
Eles batem uma foto para mim, com a usina atômica de fundo e me deixam sozinho no mar.
É muito ruim quando paro para conversar assim, pois nestas horas o cara sente consciência da real situação e dos perigos que tem pela frente.
Contra os tubarões não tenho a mínima chance. A faca e o arpão que fiz para enfrentá-los, em caso de ataque, não farão nem cócegas neles.
Vou em frente com a cara e a coragem, nada posso fazer quanto a isto.
A ponta da Juatinga, lugar de ondas gigantes, fortes correntes e redemoinhos, além dos costões (onde as ondas estouram com violência) vai requerer uma tática para ser vencida.
Nesta ponta, estará o maior desafio, pois todos com quem falo se referem a ela e duvidam que eu a cruze com o meu “barquinho”.
Antes de partir, eles perguntam pelo nome do meu barco e, como todos dizem que ele vai afundar, digo que é Náutilus.
Eles riram muito e foram embora, me deixando sozinho no meio do mar e pensando na vida.
Eu estava meio estafado mas acho que a cerveja tirou o cansaço, pois peguei a remar com vontade.
Em parte era porque estava preocupado que o vento voltasse e eu ali, longe de tudo.
Vi alguns cardumes saltando e outros que ficavam assustados com a aproximação do meu silencioso barco.

A BARBATANA...
Mais adiante, no meio daquele silêncio perturbador, escutei uns barulhos abafados...
Só falta esse caiaque estar fazendo água aqui no meio, pensei!
Parei de remar e fiquei olhando para a popa para ver se enxergava alguma anormalidade, nada!
Bueno, segui em frente e reparei que havia, à minha proa, um pau de uns 30 a 40 cm para fora d’água.
Não dei muita importância e segui em sua direção até a uns cinco metros de distância.
- Cara, desvia, pois este pau pode estar preso a um tronco submerso e pode avariar o barco!
Qual não foi minha surpresa quando o pau começou a submergir e o mar a sua volta formou ondas de sucção...
O pau era uma barbatana!
Pois é seu André, mais uma pro teu caderninho...
Segui em frente e finalmente cheguei na ilha Sandri (18:30 h).
Antes de ir para uma praia de areia encontrei um barco de pesca fundeado na pequena enseada da ilha, voltada para o continente.
Falei para os pescadores sobre a barbatana e eles disseram que poderia ser uma baleia.
Disseram que ela não é agressiva, mas que é vingativa, caso sofra um choque com barcos...
Após mais de sete horas de viagem, encostei na ilha Sandri e falei com o Sr. Moacir e Sra. Fátima que me deixaram armar a barraca ao lado do rancho dos barcos enquanto iam revisar sua rede de pesca em uma pequena canoa.
Arrastei o caiaque bem para cima na praia e o amarrei em uma árvore; é o medo da maré...
Quando voltaram, fui convidado a tomar um café em sua casa.

MORTE NA JUATINGA
Papo vai, papo vem e o Sr. Moacir iniciou a contar estórias tristes dos tempos em que era pescador e uma em particular sobre seus colegas e amigos que morreram justo na ponta da Juatinga...
À luz de vela e com uma penumbra que permitia que minha imaginação viajasse sem limites dentro daquela atmosfera de mar e mistérios, ele foi narrando a estória:
Eles estavam em um possante barco de pesca, com motor de 600 H.P. e que ficou perdido durante uma tempestade.
Como nada funciona nestas horas, eles se aproximaram da costa para terem alguma referência de onde estavam.
A correnteza estava levando o barco em direção do continente, apesar do motor possante.
Então eles baixaram a âncora e continuaram, com força total dos motores, contra a correnteza e as ondas gigantes.
O mar foi mais forte (do que a força dos motores e da âncora) e foi carregando o barco de encontro aos paredões da Juatinga.
Só estando ali para sentir a força da narrativa do Sr. Moacir descrevendo o barco sendo lançado no alto de um paredão onde, do barco destroçado, a casa das máquinas. ainda hoje permanece no alto das rochas.
Da narrativa de seus amigos se “desossando” ao rolar nos paredões sobre as ostras e caindo nas águas revoltas. Alguns deles caíram no mar, enrolados em suas próprias redes de pesca; o que um dia era seu sustento, no outro virou mortalha...
Cinco homens morreram ali mesmo e três sobreviveram agarrados a bambus.
Um deles contou o que sucedeu para o Sr. Moacir.
A estória foi impressionante e me deixou abalado, pois foi tão bem contada que parecia que eu estava lá!
Eles não querem de jeito nenhum que eu continue, dizem que o meu caiaque não é próprio para isto, o que é a mais pura verdade.
Fiquei tão impressionado que concordei em seguir só até Parati e lá desistir.
Bueno, vou até Parati, estudo bem os mapas e só lá vou decidir o que faço. Sei que eles têm toda a razão do mundo mas não sei o que está me levando para frente, apesar de todos os riscos.
Deve ser, como diz a “Nega” lá do salão em Floripa, que é espírita e diz que há um espírito ruim que me leva a fazer estas coisas.
Por outro lado eu não acredito nem um pouco nesta teoria.

PESADELO
Fui para a minha barraquinha e tive uma noite agitadíssima, sonhando estar embarcado no caiaque, na crista de uma Tsunami (onda gigante) que invadia uma cidade e passava entre os edifícios...
O estranho é que o caiaque permanecia na crista o tempo todo e quando eu olhava para baixo via o abismo que se formava antes de as águas invadirem tudo.
A agonia era que eu esperava a todo momento despencar naquele abismo e ser destroçado pela força das águas, mas isto não acontecia...
Fiquei tão agoniado que despertei no meio da noite.
Na verdade eu sei porque estou assim, é por ter desistido sem tentar.
- Te lembras quando fostes de bicicleta para Machu Pichu?
- Quando chegastes na cordilheira e todos diziam que a altitude fazia o sangue espirrar pelo nariz, que a areia do deserto ia te “picar” toda a cara, que o frio ia te matar e que quando dormisse não irias acordar de novo?
- Quando voltasse lá de moto o Alessandro que foi contigo desistiu...
- Pois é, tu chegou a desistir, mas passou a mesma sensação de agora e resolveu continuar, vencendo teus medos e a cordilheira várias vezes, tanto de moto como de bicicleta.
- Então brody; já sabes qual é o teu caminho!
Talvez meu destino seja a morte, mas a dor de desistir sem tentar é muito mais forte do que o medo de morrer...
Essa ponta da Juatinga se tornou um símbolo do medo, traumas da vida e eu tenho que vencê-la de qualquer maneira ou morrer tentando.
Acho que este é o meu destino!
Depois dela sim, mas antes não!

5/7/1997 Sábado
Agora são 6:30 h e estou escrevendo desde às 5 h, foi uma noite muito agitada e de decisões muito difíceis.
Travei uma batalha interior muito difícil, tratos foram feitos e desfeitos, novos acordos e metas a serem seguidas.
Foi uma confusão total e o que eu consegui captar é que só vou descansar se conseguir cruzar esta bendita ponta da Juatinga e os pavorosos costões.
O que incomoda é saber que certamente vou me ralar, ficar de frente com os medos mais básicos, no meu limite físico e mental.
Mas a vida é isto aí, não adianta pintar de rosa o que é preto, tenho certeza que isto vai me ajudar na vida, se conseguir passar desta.
Preparo meu café e vou arrumando as coisas para seguir logo. Vou me despedir dos amigos mas o tempo mudou.
Quando falo com o Sr. Moacir, ele avisa que o tempo vai mudar:
- 1o Porque a maré baixou demais
- 2o Pela direção das nuvens, elas “dizem” que direção o vento vai tomar, antes mesmo de ele se manifestar
- 3o Pela direção que as folhas de um coqueiro localizado na extremidade NW da ilha (no alto do morro), estão tomando. Elas estão voltadas para o Norte, sinal de que o vento que está soprando é do quadrante sul
Isto significa que terei ondas e vento de proa. Seguir em frente será apenas para me ferrar, para não dizer impossível, pois contra o vento este caiaque não vai.
Falei para o senhor Moacir que cheguei a sonhar com os amigos dele que morreram na Juatinga.
Quero ver se aprendo a ter paciência, pois daqui para a frente minha vida vai depender disto.

- Que Deus me dê :
- Serenidade para aceitar as situações que não posso mudar,
- Valentia para mudar as que posso,
- E sabedoria para diferenciá-las

Nos costões da divisa com São Paulo tudo terá de ser meticulosamente calculado e ainda assim só terei chances se os fatores Natureza e Deus estiverem do meu lado.
A dor de desistir sem tentar é insuportável e por isto vou em frente.
Pelo menos vou fazer de tudo para ficar vivo e as besteiras ficarão de lado; tudo vai depender de mim e da resistência do material.
As ondas estão altas e indicam que vai piorar, seria roubada continuar.
Eu, louco de vontade de continuar, tive que deixar prevalecer o bom senso.
Dona Fátima definiu bem:
- Pra que tu vais sair num mar ruim se estás em um porto seguro?
Palmas para ela!
Não gosto de ficar parado, pois nestas horas sinto saudades de todos e quando estou no mar fico preocupado com outras coisas (em como ficar vivo, por ex.)!
Resolvi caminhar pelas pedras e explorar um pouco a ilha. Sentei sob uma pitangueira com frutos gigantes e depois comi coquinhos até arrotar (burb !) como um porco.
Fiquei olhando o mar e as ondas agitadas que passavam ao largo, pois nesta pequena enseada as águas estavam calmas e nem mexiam com o pequeno veleiro ali fundeado (seu Moacir diz que ele atravessou o oceano e que seu dono o deixou por ali).
Como já guardara a barraca no caiaque, fui para o rancho de pesca e me acomodei dentro das canoas feitas de um tronco só.
Ali fiz um miojo no fogareiro a gás e depois fiquei escrevendo.
Bueno, agora são 13:50 h, ainda estou na ilha do Sandri deitado numa canoa de pesca com cordas penduradas ao lado e outra canoa repousa sob o telhado, por bombordo.
As nuvens cobrem a serra do mar e daqui, deste ranchinho de pesca, vejo a chuva passar.
É a tão falada frente fria que chegou trazendo um vento SW totalmente contrário à minha rota.
Coloquei meu abrigo e deixo a tarde passar.
Tenho que esquecer de todos para não sair no mar em condições adversas; nostalgia é muito perigosa!
Vou dormir agora a tarde nesta canoa e depois vou jantar com os amigos que disseram para eu dormir esta noite na casa deles. Desta forma não perco tempo desarmando a barraca amanhã e poderei sair mais cedo, isto se o vento permitir, pois agora está chovendo forte (14:10 h).
Estou tentando decifrar a maré e anotei mais ou menos assim :
ALTA - 12 h; 16 h e às 24 h.
BAIXA - entre 8 e 9 h;
Agora são 16 h, cochilei um pouco, o dia se foi e esfriou mais ainda. Sigo dentro desta canoa, observando as ondas, a usina atômica, a neblina e as coisas do rancho de pesca...
Saco! Mesmo num lugar lindo destes, eu me sinto como um prisioneiro se fico parado.
Azar da paciência ! A minha já acabou há dez mil anos...
Amanhã me mando de qualquer jeito, parece que parado aqui a vida está escorrendo entre meus dedos...
É por isto que eu acabo me ferrando, pois quando estou calmo digo para mim mesmo:
- Cara, agora não faz besteira, não fica longe da costa, não sai com tempo ruim, não faz isso, não faz aquilo...
E aí o meu sangue quente põem tudo a perder, porque ficou nervosinho e vai querer provar, para não sei quem, que pode e que nada vai detê-lo...
Ou seja, tem merda na cabeça!
Depois é tarde para se arrepender!
Acho que, por ser assim, quando estou em perigo, não fico me xingando, pois a culpa de estar em situações difíceis é minha mesmo.
Lembrei de todos os amigos de Floripa (da vida que eu tinha) da minha princesa e pensei no futuro...
Gozado!
Eu aqui, sem muito futuro, pensando nele!
Quem sabe não faço uma casa no terreno com vista para a Lagoa da Conceição, sonhar é tão bom...
Claudinha, Sandrinha, Bety , Nega, Zenit e todas as princesas, quero mais um cafezinho!
Saudades de sacanear o Rojas, Bello e o Aldo; saudades de jogar bola com a turma do Paulão e do França. Onde andará o Robson e o Cláudio Amante?
É isso aí, daqui para frente vai ser pedreira da grossa e terei de esquecer de todos para vencer ou morrer.
Quando houver tempo para pensar, os amigos e a família estarão comigo para onde quer que eu vá!
Bom seria estar na Vila Nova, em Porto Alegre, tomando vinho com o tio Laerte e a turma de lá. Ver um jogo de futebol com o meu irmão, conversar com os véios; o pai dizendo para eu “colocar uma camisa de força” e a mãe para eu “ter juízo”.
E a turma de Canoinhas?
Um abraço para o Milton que emprestou a roupa de neoprene e pela toalha que “emprestei” dele.
Michel, mucho loco e “menas”!
Liginha, Luciano, tia Elaine e tio João que diz:
- Larga disso, cara. Não tem o que fazer?
Paulo, meu irmão e amigo, dá um beijo na sobrinha, no Gigi e na cunhada...
Ih! Isto está parecendo uma despedida.
Eu heim! Nem pensar!
Deu pra ti, baixo astral, vou pra Porto Alegre, Tchau!
Espero que, se o caiaque estourar nas pedras, pelo menos o diário chegue em alguma praia e que seja devolvido para os meus.
Deixei um aviso na contra capa pedindo a remessa do diário para o endereço especificado ou mesmo que telefonassem a cobrar caso houver um acidente e o diário for encontrado.
Bueno, a noite chegou e fui na casa do Sr. Moacir jantar com eles.

ESTÓRIAS DE MAR E LENDAS ...
O Sr. Moacir já tem mais de 50 anos de mar, não acredita que o homem esteve na lua (diz que tudo não passou de “truque”), foi contando os “causos” da vida.
Ele contou que antes de haver a Rio-Santos, o trajeto de Angra dos Reis até Parati era feito de barco ou à cavalo.
À cavalo, o trajeto era feito em dois dias, através de picadas na mata.
Aqui o número de cobras venenosas é alto e o seu Moacir diz que já foi picado por víboras cinco vezes.
- Sabe por quê não morri?
Aí ele mostra um vidro com uma meleca amarelada mergulhada num líquido desconhecido.
- O que é isto?
- É gordura de lagarto derretida em meio copo de cachaça!
- Isto aqui salvou a minha vida por cinco vezes!

Papo vai, papo vem e ele dá outra “dica” :
- Se por acaso algum camaleão te morder corre e toma um copo de água!
- Água, seu Moacir?
- Sim, dessa forma, quando o camaleão for beber água para repor o veneno, ele é que vai morrer e não tu, que bebeu primeiro...
É mole?
Ele ia narrando e dona Fátima confirmando.
Bueno, depois ele começou a falar sobre uma parteira negra e bem velhinha que era querida por todos da comunidade e que atendia todos, de casa em casa.
Certo dia ela sumiu...
Nunca mais ninguém ouviu falar dela, mistério!
Depois falou de um médico que atendia todos e não cobrava. Era uma espécie de santo.
Quando ele faleceu seu corpo não se decompôs e isto, diz seu Moacir, foi determinante para que seu corpo fosse levado, em segredo, para o Vaticano.
O papo estava bom, as horas passando e o sono chegou.
A cama onde fui dormir era de cimento e dois acolchoados faziam o papel de colchão. Mesmo assim dormi super bem com dois cobertores, pois a frente fria fez a temperatura cair muito.

6/07/1997 Domingo
Despertei às 5 h, fui arrumar as coisas, tomei um café com os amigos e depois, já na praia, tive que “escutar” de dona Fátima, pois ela estava indignada com o tamanho do barco, seu peso e com o seu formato, que era totalmente inadequado para tamanha viagem.
Eles me deram vários conselhos para que eu não tentasse seguir em frente depois de Parati.
- Tu já fez até demais com esse barco!
Não que eu me sinta superior ou mesmo que esteja desdenhando dos conselhos deles, mas é fato que tenho meus objetivos e nada vai me desviar do meu destino.
Por outro lado eu os escuto atentamente e aproveito para ficar “ligado” naquilo que eles estão dizendo e que possa me ser útil para adiante.
Assim que passar a preguiça, continuo transcrevendo o diário.

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