quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

2230 km de windcar





Queridos amigos
Vocês que estão nesta lista representam o que tenho de melhor na vida.
Este é o primeiro e-mail de uma nova viagem que pretendo fazer daqui a uma semana.
Como sempre tudo ficou para última hora e nem sequer dei uma volta de windcar para saber como anda, o que posso levar, etc...
Estou convidando meus amigos a passearem cerca de 1600 km pela costa sul apenas com a força dos ventos e das pernas, pois não pretendo ficar parado.
Bueno, é só um teste da lista de amigos e de pessoas que direta ou indiretamente ajudaram na viagem anterior.
Será uma rotina de vento, frio, chuva e areia, mas espero pelo menos tentar registrar um pouco da beleza que há em nosso litoral.
Terei que aprender a andar praticamente no início da viagem e meu "primo" o Luigi vai junto por 14 dias, enquanto durarem suas férias.
Bueno, é isso aí, pretendo mandar notícias assim que encontrar lugar para escrever.
Grande abraço do amigo
André

Amigos, já passa de meia noite, recém voltei de Cidreira onde eu e o Luigi fomos com o Roberto Nardi (fabricante dos windcars e verdadeiro professor Pardal, pois faz de tudo, desde camas hospitalares, efeitos para comerciais (a propaganda da Skol, dos caras tomando choque na geladeira é dele), até pequenos robôs.
Bueno, na ida pra lá, a exemplo da viagem de carro com o caiaque para Brasília, fomos parados pela polícia.
O nobre guarda deu uma multa porque o extintor estava vencido...
- Seu Guarda, o marcador indica que está cheio...
- É mas a legislação...
- Ah, quer dizer que o que está dentro não é mais extintor, deve ter virado gasolina...
- O sr quer assinar a multa?
- Claro que não...assinar para oficializar a palhaçada.
Sempre tem um chifrudo na estória!

Bueno, chegamos na praia, o Nardi vai dando as dicas enquanto monta o carrinho. Frio pra dedeu, narizes pingando.
Ele dá uma volta sozinho e depois leva o Luigi.
O que espanta é o mastro de mais de cinco metros pra um carrinho tão pequeno.
Os dois novatos se entreolham temerosos:
- Brody, estamos ralados, não vamos andar nem dois metros nisso aí.
Colocamos o Luigi e, para meu espanto, ele (que nunca teve um contato com vela ou assemelhados na vida) consegue andar e fazer manobras.
O carrinho é incrivelmente rápido, estável e muito simples de manobrar.
É claro que tem as manhas, mas o paciente Nardi (3º no mundial da França, campeão brasileiro e Gaúcho) vai nos ensinando e consegue fazer o quase impossível, ensinou dois bugres a andar em menos de meia hora.
Encasacados com roupas de chuva, óculos de proteção, botas e luvas, vamos andando.
Tchê!
Ficamos entupidos de areia por todo o rosto, cabelo e resto do corpo.
Aliado ao frio que está fazendo pela entrada da frente fria que deixou o Rio Grande branco e abaixo de zero nesta madrugada, fui congelando na mesma medida que crescia o nosso entusiasmo.
À véspera de partir, vimos pela primeira vez um windcar. Dá para dizer que aprendemos a andar.
Amanhã compramos alguma coisa que faltou e seguimos para SC.
Talvez a gente inicie só no domingo, é muita coisa para pouco tempo.
Consegui andar sem capotar, mas é comum andar só em duas rodas.
O Nardi está acostumado a andar a mais de 100 km/h , mas pra falar a verdade, andar perto dos 40 já foi radical demais para nós.
Ainda estamos receosos, mas dá pra acreditar que dá para fazer o que queremos.
É claro que teremos um frio de lascar e péssimos momentos, mas a alegria que sentimos esta tarde fez tudo valer a pena.
Abração a todos
André
LAGUNA
Queridos amigos acabamos de chegar a Laguna, depois de alguns dias inesquecíveis.
Tudo começou dia 14 quando fomos à casa do Nardi buscar os carrinhos.
Ele demonstrou ser uma pessoa sensacional pois nos ajudou demais arrumando os carrinhos e nos dando dicas fundamentais para a viagem. Cada viagem traz uma nova leva de amigos entre eles o Roberto e o Mario Nardi, Bia Bolemann e o Enry. Depois de cinco horas seguimos viagem para a Guarda do Embaú com os carrinhos. Foram seis estressantes horas na Br super movimentada. Depois varamos a madrugada em companhia do Paulo e da Sandra tentando adaptar os tubos.
Não conseguimos e passamos o dia inteiro adaptando peças para colocar os bagageiros nos carrinhos.
Depressão. Extremo cansaço físico e a decisão adiar por mais um dia a partida. Com isto dispensamos o Aldo que tinha vindo de Palmas para buscar o carro. O Brody Paulo ainda teria que viajar para POA para fazer uma cirurgia as sete da manhã. Com isso partimos só no dia seguinte ( 2ª feira ) rumo a Imbituba.
IMBITUBA

Ficamos arrumando e montando os bagageiros nos carrinhos até cerca das 16 horas quando o senhor Doca me levou até a casa de um amigo do Aldo (João e Zaíra) para deixar o carro e levar de volta a praia da vila. Partimos as 16 :30 h depois de tirarmos fotos com um Russo que apareceu por ali. O senhor Gelson do bar ali do lado foi muito bacana.
Seguimos com areia mole e vento fraco de través até pararmos para a travessia de um riacho pois a maré estava alta.
Como já estivesse escurecendo paramos para acampar ao lado do riacho junto a uma cerca. Local lindíssimo e abrigado do vento, Noite muito fria, mas tranqüila.

16-7-07 Partimos só às 10:30h, como a ausência de vento era total, seguimos puxando os carrinhos com cabos, dureza ! Meia hora depois paramos para ver um filhote de lobo marinho, parecia um cachorrinho. Tiramos algumas fotos e paramos para almoçar a ração de guerra (queijo, salamito e chocolate) Luigi falou que não gostava muito de salamito, mas acabou gostando.
Quase chegando em Itapirubá, vimos uma réplica de filhote de baleia franca em uma espécie de museu à beira mar onde Gisele (simpaticíssima) nos explicou que não poderia salvar o filhote de leão marinho. Seguimos em frente, desmontamos os mastros e as velas e seguimos puxando pelas ruas com os cabos. Depois de 400 m chegamos a praia novamente montamos as velas e seguimos puxando.
Seguindo adiante encontramos um lobo marinho adulto, uma fêmea grande que ameaçava atacar quando chegávamos perto para fotografá-la.
Por volta de 5 horas resolvemos montar acampamento entre as dunas porque estávamos muito distante de local abrigado.
Que noite horrível, pois relâmpagos anunciavam uma tempestade e o vento crescente nos obrigaram a sair na noite gelada para deitar os carrinhos a fim de proteger as vela e a nós dos raios.
Depois de algumas horas de chuva acordamos encharcados, pois a barraquinha não agüentou o vento sem proteção e deixou o pelotão na mão. Assim passamos a noite.
17-7-07
Acordamos sob violento vendaval e tentamos fazer a sopa, mas o meu valoroso fogareiro (de 23 anos de aventuras) estragou.
A nós só restou comes o kinojo e a sopa crus mesmos. Estava horrível e o Luigi, para evitar vomitar, colocou a parte dele no meu prato sem que eu visse.
Que fazer com soldado tão valoroso (fogareiro)?
Só me restou deixá-lo cravado na duna ao abrigo do vento, pois os heróis mortos em guerra permanecem no campo de batalha. Tive que deixar meu fiel companheiro de tantas batalhas e seguir em frente, esse é o destino dos membros do pelotão farroupilha.
Partimos caminhando contra as areias que corriam como loucas pela superfície da praia, um esforço tremendo para pouquíssimo avanço. Como parou de chover resolvemos estender os sacos de dormir molhados nos mastros. Após o almoço montamos as velas e tentamos andar contra aquele fortíssimo vento, mas era impossível seguir para o sul. A favor do vento o carro parecia um F1 arrancando, pena que era para o lado contrário. Só nos restou desmontar as velas e seguir puxando contra o vento e a areia mole, pois a maré estava alta quase chegando nas dunas. Um pouco adiante encontramos o esqueleto de um filhote de golfinho.
Caminhando, caminhando,caminhando...
Cerca de 400m antes de chegar a ponta do Gy, após avistarmos a pedra do Frade, resolvemos acampar em um mato de pinus.Para chegar até ele, tivemos que puxar, em dupla , cada carrinho atravessando as dunas. O esforço valeu a pena, pois era abrigadíssimo do vento o chão era forrado de folhas de pinus e alí, certamente passaríamos uma excelente noite, para esquecer a noite anterior. Comemos a nossa ambicionada granola e fomos dormir.

19-7-07 Quinta feira
Dormimos muito bem, mas como estamos sem fogareiro agora, o kinojo teve que ser comido cru com água, pois não há remédio para isso e o pelotão não pergunta, combate!
Partimos às dez horas rumo ao povoado do Gy onde constatamos que o pneu dianteiro do carrinho do Luigi estava furado após alguns percalços conseguimos trocar a câmara e seguir por uma estradinha até cruzar a ponta e chegar a praia novamente. Seguimos caminhando até o almoço para comer o já sonhado salamito. O almoço que parecia ruim no primeiro dia, virou o prato preferido do Luigi o mais novo combatente do pelotão farroupilha.
Levantou um fraco vento de través e (ALELUIA) voltamos a velejar.
Sensação indescritível, de estarmos ali, deslizando pela praia vendo as gaivotas, os talhamares e as ondas nos acompanhando na jornada. Estamos super felizes e conscientes do momento ultra-especial que representa o fato de que com apenas uma aula estamos diante de uma vigem que não deixa de ser um momento inesquecível de nossas vidas.
Seguimos em frente até umas rochas que avançavam pelo mar só nos restou desmontar as velas e passar os carrinhos por uma estrada paralela. Muitos sustos depois (os carros passavam muito rente pois era muito estreito) achamos uma brecha entre as dunas para voltar a praia.
Amigos, que dureza! As areias estavam infestadas de amorosos (espinhos) que nos machucaram bastante se grudavam nos pneus às centenas. Jogo muito duro brody!
Chegando a praia montamos novamente as velas e seguimos à pano até a barra de Laguna, local histórico onde Garibaldi e os Farrapos tomaram a cidade e fundaram a República Juliana.
Desmontamos mastro e velas (para circular nas ruas repletas de fios de luz até um camping). Ali deixamos os carrinhos e viemos até uma lan house mandar notícias e fotos.
Esperamos que estejam gostando, pois amanhã seguiremos puxando pela estrada após a balsa até a praia de Morro dos Conventos. Serão cerca de 20 km , mas o nosso ânimo está bom.
Agora são 20:30h, depois desta pausa o pelotão se prepara para a peleia que terá pela frente.
Um grande abraço a todos.
André e Luigi


TORRES
Queridos amigos acabamos de chegar em Torres depois de dias duríssimos lutando contra vento sul de rajadas, mar crescido areia mole, tempestades e extremo cansaço físico. Pedimos desculpas por não responder os e-mails mas só temos mais uma hora antes que a lan house feche.

20/7/07 Laguna
Ao amanhecer seguimos pelas ruas de Laguna, paramos em uma borracharia para consertar a câmara furada e depois fomos rumo a balsa. Durante a travessia ficamos sabendo que um veleiro argentino se chocou contra uma ilha chamada Ilhota. Eles velejavam no piloto automático e o barco se chocou contra as rochas. Até onde sabemos, dois tripulantes morreram e um foi resgatado (isto foi na noite de quarta para quinta feira). Fizemos amizade com os tripulantes e passageiros da balsa.
Ao iniciarmos a caminhada (de 20km) falei para o Luigi sobre colocar as botas, mas ele retrucou que o pelotão farroupilha tinha que ir de pé descalço, pois guerreiro Farroupilha não tem medo de nada.
Difícil foi acostumar com o areião que picava os pés como agulha. A paisagem era lindíssima, pois seguimos com a lagoa de Santo Antonio aos dois lados da estrada.

- Tenente Issi e Laguna ?
- Soldado Laguna é coisa do passado essa já foi tomada. O Rio Grande precisa de nós, vamos retornar a nossa pátria.

E assim seguiu o pelotão, muita poeira, estrada sem fim, carros, caminhões, etc... Paramos para almoçar, retornávamos, alongávamos e seguimos em frente. Já estávamos com bolhas nos pés dor nos joelhos, mas ninguém queria entregar os pontos. Depois de cinco extenuantes horas chegamos as dunas do Farol de Santa Marta. Encontramos local para acampar (já no escuro) entre pés de pinus perdidos entre as dunas.

21/7/07 sábado
Ainda doloridos de ontem, seguimos por uma estradinha cheia de atoleiros até chegarmos á praia. Ali montamos as velas e seguimos a pano até a barra do Camacho (este rio foi por onde entrou Garibaldi com Seival para surpreender as forças imperiais e atacar Laguna que tinha seus canhões voltados para o mar). Enfrentamos areais e dunas altas para contornar a barra seca do Camacho. Montamos tudo de novo e seguimos a pano. O vento estava fraco a princípio, mas, para nosso delírio, ficou forte e os carrinhos andavam como loucos para nossa imensa alegria. Como é bom ser aventureiro, arriscar e colocar a cara e a coragem ao vento. É inebriante! Mesmo com vento de popa os carrinhos desenvolvem mais velocidade andando em zig-zag, ou seja, andando de través. Assim seguimos até chegar a barra do rio Torneiro, muito profundo. Atravessamos as dunas seguimos para uma pinguela, onde teríamos que remover os bagageiros para cruzarmos com os carrinhos. Na passada vimos barcos e falamos com seu Rogério "Abacate ". Para nossa incredulidade, ele disse que daria para colocar os dois carrinhos e a nós na mesma viagem. Passamos os carrinhos entre as vacas, colocamos no barco e seguimos pelo rio até a barra. Havia muitas garças entre a vegetação e a água era verde e límpida. Seguimos a pano novamente, passamos pelo balneário de Rincão (onde havia duas plataformas) e já no escuro resolvemos parar, pois quase nos chocamos nas estacas de redes na beira da praia. Ameaçava um temporal e decidimos dormir na varanda de uma casa. A noite foi terrível: raios, relâmpagos e ventos fortíssimos que jogavam um pouco de chuva sobre o saco de dormir do Luigi que estava protegido por um plástico.

22/7/07 domingo
Amanheceu nublado e chovendo, mas resolvemos seguir assim mesmo. Não havia vento e a solução foi seguir puxando abaixo de chuva o dia inteiro. Almoçamos sob a base da plataforma ( para abrigar-nos da chuva ) sentados em grandes pneus que protegiam a base do mar. Praia encharcada, areia mole, força e frio. Já no fim da tarde chegamos a foz do rio Araranguá; onde relâmpagos nos obrigaram a desarmar rapidamente os mastros. Seguimos puxando até iniciar uma estrada enlameada e repleta de água. Estávamos exaustos e assim cruzamos uma pequena ponte para chegar na ilha onde havia um barzinho. Conversamos com o pessoal dali, pedimos pouso e uma deliciosa tainha frita que nos aqueceu e matou a fome terrível que sentíamos. Conhecemos pessoas maravilhosas como seu Alvacir, dona Raquel, Sr. Sadi, Sr. Ziltinho e Roberto.
Seu Alvacir sofreu um terrível acidente de carreta, quando chocou sua scania contra outra sobre uma ponte. Seu patrão que estava deitado foi partido ao meio e o cara da outra scania também morreu. O estado dele era tão terrível que foi dado como morto e levado junto com os outros corpos. Ficou um ano em coma e mais três no hospital. Ficou com cicatrizes horríveis nas canelas e nem sei como consegue caminhar. Perto das cicatrizes que ele possui, as minhas não são nada. A vida ensina que nossos problemas nunca são os maiores e que devemos agradecer a Deus por continuarmos vivos e podermos tocar a vida em frente.
Depois do acidente ele casou com dona Raquel e teve três filhos lindíssimos, entre eles Sofia, uma graça de menina, loirinha super simpática (tinha três anos).
A vida é bela!
Chuva, chuva, chuva...
Fomos dormir na casa do Sr. Sadi e alojamos os carrinhos no galpãozinho junto com a carroça.

23/7/07 Segunda-feira
Acordamos bem cedo, um forte vento gelado e que, aliado à correnteza do rio prometia dificultar a nossa travessia do rio Araranguá. Seu Sadi disse que não daria para fazer a travessia. Fomos tomar café no seu Alvacir e ele não quis cobrar. Eu e Luigi ficamos emocionados com o carinho e a hospitalidade de pessoas que mal nos conheciam.
Esta viagem está sendo a melhor escola para o Luigi, pois ele está aprendendo os verdadeiros valores que existem nessa vida, como respeitar as pessoas, ser humilde e reconhecer que apesar de poucas posses as pessoas podem ser felizes com pequenos detalhes.
Seu Alvacir foi um exemplo de tudo isto e mais a coragem de começar tudo de novo. Depois fomos com o seu Helio até a casa de seu Miguel que teria um barco maior para tentar atravessar assim mesmo. Quando vimos o barco, fiz o sinal da cruz e deixei a vida nas mãos de Deus, pois o barco era muito pequeno para enfrentar as ondas, vento forte e a correnteza. Já estava colocando o colete no Luigi e mandando tirar as botas para o caso de naufrágio.
Logo que chegou, seu Miguel falou que não daria. Resolvemos seguir a pé até a balsa. Foi bem mais tranqüilo e depois de hora e meia de caminhada atravessamos o rio pela balsa. Os caras nem queriam cobrar, mas pagamos para ter o recibo como recordação.
O caminho estava lindíssimo e fomos subindo e descendo lombas. Como estávamos cansados de puxar, nas descidas o Luigi Subia na longarina logo atrás da roda dianteira e descíamos como em um patinete, controlando a direção da roda dianteira com nossas "rédeas". Era até divertido! Quando chegamos próximos do camping havia uma imensa lomba para subir. Já extenuados, subimos a maldita. Na descida, meio que arriscando descemos no "estilo patinete". Como a lomba terminava em outra subida, bastava ter sangue frio para descer em velocidade.
Quando começou o calçamento, fiz a grande besteira de descer sobre o carrinho. Foi a pior coisa que podia ter feito, pois ele pegou velocidade demais, não tinha como frear e o carrinho balançava de um lado a outro. Senti que iria me ferrar, pois iria de encontro a uns carros mais abaixo. Desviei para o meio-fio e tentei me atirar, mas foi em vão, pois com a velocidade já caí na descida e a roda traseira passou sobre mim. Depois o carrinho bateu no muro e parou. Fiquei deitado no chão com o abrigo todo esfarrapado. Joelhos, ombro, braço e dorso da mão esquerda "lixados". Nem em todos os meus tombos de moto eu me machuquei tanto. O Luigi chegou entre apavorado e com vontade de rir, pois foi muito ridículo.

- APAGADÃO!!
- Seu imbecil, como é que pode ter feito uma manobra tão ridícula?
- PAGA CINQÜENTA FLEXÕES!
- Sim, senhor!
- Senhor, acho que estamos sendo injustos, pois o tenente Issi jogou o próprio corpo diante do carrinho para amortecer o impacto contra o muro.

Bueno, fotos tiradas, quase chorando de rir da minha imbecilidade, seguimos em frente. Descemos a imensa lomba que leva à praia e lá montamos novamente as velas. Velejamos até a plataforma e ali o vento ficou fraco demais para deslocar carros e passageiros. Rebocamos até chegar Arroio do Silva. Ali descansamos e comemos alguma coisa. Seguimos até as 17:30h e resolvemos dormir na varanda de uma casa.
A noite foi horripilantemente gelada e custou a passar.

24/7/07 Terça-feira
Acordamos com o barulho de um trator que puxava com dificuldade uma rede do mar. Eles levaram mais de uma hora para retirá-la do mar. A rede veio com enormes bagres de olhos vermelhos, tainhas e peixe-espada. O pessoal foi muito legal e disse que esta noite fez menos sete graus centígrados na serra. Aqui chegou perto do zero, aliado ao vento...
O mar estava lambendo as dunas e o vento sul muito forte aliado a areia mole que demandava enorme esforço físico para seguir para o sul. Resolvemos seguir pelas ruas paralelas ao mar.
Acontece que a estrada estava encharcada e a areia era mole. Terrível!
Voltamos ao mar, mas logo ficamos estafados. Que fazer?
Andamos mais um pouco e resolvemos esperar até às 14:00h, pois um senhor falou que o mar iria baixar. Mas o que vimos foi o contrário, pois ele subia cada vez mais.

- Senhor, estamos cercados!
- Nossas tropas estão exaustas e não vamos agüentar combater com tamanha desigualdade.
- Tem razão, precisamos cavar uma trincheira para combater esse inimigo que nos golpeia sem parar!

Ali ao lado havia uma pousadinha (do Valmor) e como não havia opções (mar e estrada), além do que estava por vir chuva, resolvemos ficar por ali.
Que pessoal agradável! Sr. Valmor, dona Adelina (que nos ofertou um delicioso café preto), Sr.Júlio, Sr, Nelson e o Sr.Sergio. Ficamos ali tomando sol com eles e abrigados do vento. Depois fizemos uma deliciosa sopa acompanhada de kinojo, pois havia fogão no apartamento.
Quando cheguei, estava com as feridas inflamadas e mal conseguia dobrar as pernas, tanto que o Luigi foi quem arrumou as coisas nos tubos hoje de manhã, pois eu não podia apoiar os joelhos cheios de feridas no chão. Dona Adelina me deu um café com cânfora e passou azeite de oliva nas cascas, pois ao tomar banho esfreguei bastante com sabonete para remover a areia.
Foi pior, pois arranquei as cascas todas e a dor ficou quase no ponto de não poder dobrar as pernas pior ainda para puxar o carrinho e caminhar pela areia mole.
Antes de dormir tomei um "coquetel molotov" , ou seja, antibiótico, antinflamatório e alguma coisa para dor.

25/7/07 Quarta-feira
Choveu toda a noite e amanheceu nublado e com vento sul bem forte. Desanimador! O Sr.Valmor, uma pessoa extremamente simples e boa não queria que seguíssemos, disse que não cobraria nem a diária.
Ficamos emocionados com tamanha gentileza, mas o nosso pelotão é de guerra e não veio até aqui para ficar aquecido e abrigado. Temos um objetivo diante de nós e os chefes Farroupilhas necessitam de nossas tropas para tomar São José do Norte e tentar retomar a fortaleza de Santa Tereza que caiu em mãos dos Orientais.
Partimos às 11:30h pela praia contra o forte vento sudoeste. Lembrei do livro " A pior viagem do mundo" que narra a trajetória dos exploradores ingleses rumo ao Pólo Sul puxando os seus trenós. Como agora estamos puxando os nossos carrinhos, é de desanimar e a moral da tropa anda baixa.
Só nos resta cantar o hino Farroupilha e dizer que não está morto quem peleia.
A nossa hora vai chegar e o inimigo será triturado pela raiva acumulada em nossos corações!
Para não dizer que não tentamos, montei um carrinho e tentei seguir no contra vento. Praticamente impossível, pois nem praia havia para bordejar. Desmontamos tudo e seguimos em frente.
Seguimos até a praia da Caçamba onde paramos para almoçar à reversa do vento. Logo chegaram alguns habitantes dali para conversar. Disseram que a estrada estava melhor por ali e decidimos seguir por ela, pois nela o vento contra não seria tão forte.
E assim fomos em frente. Passamos pela praia de Arpuadeira, Maracujá até chegar as dunas onde havia um mato que abrigaria do vento, já às 17:00h (praia do Bio).
Montamos a barraca ao lado de uma cerca elétrica ao abrigo dos pinus. O vento rugia sobre a copa das árvores e assim ficou durante toda a noite gelada.

26/7/07 Quinta-feira
Acordamos com ausência total de vento e partimos pela estrada procurando local para voltar ao mar. A primeira tentativa não deu certo, pois atolamos no meio do campo. Seguimos em frente pela estrada até achar uma passagem entre as dunas.
Resolvemos almoçar antes (11h), pois ainda estávamos cansados de ontem. Pequenos gaturamos (passarinhos amarelos com a cabeça azulada) nos observavam enquanto comíamos.
Já na praia, deixamos as velas montadas (caso o vento mudasse) e seguimos puxando.
Estamos exaustos e revoltados com esse vento, pois quando sopra a favor mal tem força para deslocar os carrinhos, nunca Torres pareceu tão longe...
O vento estava indeciso e foi testando nossa paciência, pois hora estava fraco, hora estava fraquíssimo. Tínhamos que subir e descer do carrinho a toda hora, o que irritava, pois o mar subia e o carrinho atolava. Neste jogo de paciência e musculação (tínhamos que ir bombeando a vela) chegamos a praia de Gaivotas.
Um rapaz começou a tirar fotos e se aproximou para conversar. Identificou-se como repórter (graças ao Alzhaimer esqueci o nome do jornal e do repórter). Fez uma entrevista ali mesmo.
http://www.contato.net/
Aventura
Ao sabor do vento, de Imbituba ao Uruguai
Fonte: Jornal Destaque Catarinense
Balneário Gaivota - "Faz exatamente dois anos e cinco dias que sofri o acidente na BR-101, onde o meu querido carrinho foi pulverizado. Sofri fraturas nas pernas, quase um reimplante do braço esquerdo, além de cortes profundos na face e parte posterior do crânio." Esse é o início do diário de bordo de uma das muitas aventuras de André dos Santos Issi, em 23 de julho de 2000. A viagem seguia, ora de windsurf, ora de caiaque, entre a Lagoa Mirim e Porto Alegre. Mas hoje, depois de sete anos, a história é outra e a aventura também.Ao lado do sobrinho Luigi Becker Issi, de 14 anos, o dentista gaúcho morador da Guarda do Embaú saiu há uma semana de Imbituba e partiu pelo litoral com destino ao Uruguai. A dupla usa como transporte dois carros à vela e vai cortando as areias na direção sul. Por volta das 15h15min desta quinta-feira (26), André e Luigi passavam pela praia central de Balneário Gaivota. "Se o vento ajudar, em cerca de uma hora estaremos em Torres (RS)", disse o aventureiro.Do acidente de 1998, ele traz apenas as marcas e a força que o levou a fechar o consultório odontológico e partir em busca de aventuras. "Em 2006, percorri cerca de seis mil quilômetros de caiaque, saindo de Brasília e passando por Foz do Iguaçu (PR), Assunção (Paraguai), Buenos Aires (Argentina), Porto Alegre (RS) e acabou aqui na praia de Bella Torres, em Passo, em virtude de um novo acidente", conta. E acidente parece ser a especialidade de André, que mostra nos joelhos e cotovelos as marcas mais recentes. "Em Morro dos Conventos, fui descer uma pequena ladeira sobre a parte da frente do carro à vela e, quando tentei parar, ele caiu sobre mim." Seja de windsurf, caiaque, carros à vela, bicicleta ou moto, André já passou por toda a América do Sul e até subiu na mágica cidade de Machu Picchu, no Peru.Nesta última aventura, Luigi viaja com André apenas até o dia 31, quando ele passa a seguir sozinho. Viajará até o extremo sul do Rio Grande do Sul, na divisa com o Uruguai e volta a Imbituba e posteriormente à Guarda do Embaú, para passar o verão em sua pousada, Maktub. DESTAQUE CATARINENSE
Cadastrada em: 27/07/2007 07:50:38
Atualizada em: 27/07/2007 08:08:23

Depois vieram dois caras que diziam andar de kite bug (?), eles disseram que Torres estava há 35km, o que nos decepcionou, pois era muito mais distante do que pensávamos.
Às 16h, aleluia, o maldito vento resolveu se manifestar com mais força e começou a deslocar os carrinhos com muito mais velocidade. Nem colocamos as roupas impermeáveis, tal a nossa ansiedade de aproveitar esse raríssimo momento.
Com isto fomos tomando banho de areia e água, principalmente nas saídas de riachos.
Com a velocidade, nossa alegria foi tão grande que esquecemos os dois últimos dias de sofrimento e decepção.
Torres foi se aproximando vertiginosamente e começamos a acreditar que chegaríamos ainda hoje. Passamos por Bela Torres (local onde terminou a viagem de caiaque em fevereiro do ano passado, ali estava a guarita dos salva-vidas que me ajudaram quando cheguei a praia ensangüentado).
Nem paramos para não perder o embalo, apenas quando avistamos um gigantesco lobo (ou leão?) marinho para tirar umas fotos. Era impressionante o tamanho do animal ( que estava morto ).
Depois, já com o mar lambendo as dunas, seguimos em frente até a barra do rio Mampituba, repletos de felicidade (17:30h).
Batemos algumas fotos junto ao farol Mampituba norte, desmontamos os carrinhos e, enregelados, seguimos puxando pelas ruas de Passo de Torres rumo a ponte que liga com Torres.
Em Torres, muitos hotéis diziam estar "lotados", pois eu e o Luigi parecíamos dois papeleiros maltrapilhos arrastando aqueles carrinhos pelas ruas.
Ficamos no hotel das Figueiras, fomos a uma lan house e não conseguimos terminar o diário.
Por isto pedimos desculpas por não responder a todos os e-mails de apoio e que me fizeram mudar de idéia e seguir em frente, mesmo quando o Luigi retornar às aulas no domingo.
Bueno, o diário está sendo "interneteado" pelo Luigi, que é muito mais rápido para digitar.
Agora são11:37h e temos que partir.
Até a próxima e um grande abraço a todos.
Luigi e André

Tramandaí
Queridos amigos
As grandes guerras são vencidas com pequenas derrotas e grandes vitórias.
Ontem o pelotão farroupilha chegou muito tarde ao palco de combate (16 h), pois o relatório aos amigos nos tomou muito tempo.
Quando chegamos à praia da Guarita, soprava violento vento de rajadas do sul. Além de tudo estava enregelante.
Para mostrar ao inimigo que não nos metia medo, resolvemos utilizar o final de tarde para aprender a orçar (seguir contra o vento). Várias vezes os carros quase viraram, mas pegamos a manha e saímos do combate sem nenhuma baixa (tombo).
Resolvemos nos entrincheirar na varanda de uma casa abandonada e seguir no dia seguinte.
Ali o vento quase não existia, e a noite prometia ser gélida.
Por isto, mesmo com o teto da varanda, armamos a barraca.

28/07/07 Sábado
Acordamos muito cedo e às 9 h já estávamos no cenário da batalha de ontem.
Tchê, que loucura!
Vento enfurecido, totalmente congelante e o mar lambendo os cômoros...
Resolvemos avançar mesmo assim, mas o mar não dava tréguas e fomos "lavados " por ondas que nos cercaram e atolaram os carrinhos.
que luta desigual!
Como o Paulo viria buscar amanhã o Luigi (final de férias escolares), resolvemos voltar e antecipar o resgate em um dia, pois estava quase impossível de avançar.
- Senhor, que fazemos?
- Vamos voltar e nos entrincheirar novamente.
- E o recruta Luigi?
- Não o chamem mais de recruta, esse menino que nunca esteve em um campo de batalha se comportou de maneira excepcional e demonstrou alto grau de bravura em combate.
- O alto comando se reuniu e resolveu promovê-lo a Tenente Luigi.

É verdade, não esperava encontrar nesse menino um companheiro tão leal, amigo e divertido nos piores momentos. Cheguei a chorar de tanto rir quando ele fazia caretas de cansado, mas nunca quis parar, sempre foi positivo e graças a ele o pelotão conseguiu superar dezenas de obstáculos que não teria conseguido sem ele.
Luigi, eu só tenho a te agradecer!
Amanhã o pelotão perderá um grande soldado que será deslocado para o setor burocrático.
Espero que não se transforme em "mais um tijolo na parede" como cantava o Pink Floyd.
Acho que esses dias foram a melhor escola de vida que todo garoto deve passar, aprende a respeitar os mais humildes e vê que o melhor da vida não é uma marca de tênis, roupa ou refrigerante, mas que o verdadeiro valor de tudo se baseia na amizade e na honestidade.
Bueno, é isso aí!
Amanhã tem mais.
Muito obrigado Luigi, foi inesquecível para mim e para ti, no alto dos teus quatorze anos.

Pois é, o Luigi partiu e todos no pelotão sentem sua falta. Era o escrivão dos diários e sem ele volto a "catar milho"!
Na verdade esta viagem iniciou com uma de moto, que levou oito horas desde Imbituba a Torres (pela praia).
Depois mais duas de moto em função do carrinho que não conseguia encontrar.
Em uma delas perdi os 1600 dólares que trazia para pagar os carrinhos. Coloquei por dentro da bota e voôu nota por nota....
De carro ainda fomos ter uma aula em Cidreira e depois de porto para a Guarda e dali para Imbituba, mais de 4000 km ....

- Soldado! Relatório!
- Senhor, perdemos o tenente fogareiro, três soldados bujões e duas varetas da barraca naquele combate nas dunas...
- Em Torres perdemos o tenente Luigi, sargento Panela e mais quatro soldados bujões dispensados em função do falecimento do tenente fogareiro.
- Afora isto, o Tenente Issi ficou com mais cinco "medalhas" (cicatrizes) em combate no Morro dos Conventos (queda e atropelamento pelo carrinho).
- E os reforços?
- Bueno, este ano levamos mais duas "damas de companhia" (hérnias), afora as fraturas de plantão...

É isso aí. Parto do hotel e vou à casa de Lopes e Gabriel que guardaram o carrinho para mim.
Consigo montar a vela sozinho e vou ao campo de batalha que vejo pela terceira vez.
Ainda está com pouca praia, mas dá para encarar.
O vento fraco e a favor não tem força para deslocar a mim e ao carrinho.
Descubro que subindo na longarina da roda dianteira o carrinho atola menos e até dá para seguir em frente.
Dou um embalo, pulo na longarina e sigo em pé, de frente para onde estou indo e controlando a direção com as rédeas ou corrigindo o curso dando biquinhos na roda dianteira.
Andar no estilo "patinete" corre o risco de ser atropelado se cair, mas a velocidade é baixa.
As horas vão passando e mais adiante encontro outro filhote de lobo marinho (não sei a diferença entre lobo ou leão marinho).
Tiro uma foto do bichinho e mais adiante encontro enormes carretéis de cabos de luz, agora amarrados em troncos e que são utilizados para facilitar o recolhimento das redes de pesca.
É impressionante o nº de redes!
Por volta de 15 h, justo quando o mar subiu, o vento aumentou.

- Senhor, o inimigo cortou nosso caminho!
- Calar baionetas e preparar para combate.
- Este vento favorável é raríssimo e temos que avançar de qualquer jeito!

Odeio ir por onde estão as ondas, pois os carrinhos não têm pára-lamas e na areia molhada o cara vira um verdadeiro "croquete” de areia molhada e congelante.
Bueno, seu André. Te rala!
Agora enfrenta isso ou desiste!
- Nem a pau, Juvenal!
E lá se vai o croquete, digo, pelotão!
O mar sobe até as dunas, desce uns 20 m e volta com tudo.
Para pegar velocidade, tenho que acompanhar o recuo das ondas e subir antes que elas me atinjam.
Acontece que,às vezes, elas vêm muito rápidas e o carrinho perde velocidade na subida e somos envolvidos pela água gelada.
Apesar de estar com roupa de chuva, já estou encharcado.
Cabos e roldanas estão entupidos de areia que lixam as mãos nuas que manejam retranca e cabos.
Começo a tremer, mas agora só me resta seguir em frente sem parar sequer para comer.
O vento aumenta e o jogo de gato e rato se sucede na região das ondas e das dunas.
Quando subo, encontro areia mole, o carrinho pára e as ondas vêm por cima.
Ele atola, tenho que descer e voltar ao cockpit toda hora.
Passando por Capão da Canoa há uma infinidade de pedras e lixo junto a estreita faixa de terra e tenho medo que fure os pneus.
Sigo adiante e paro depois das 17 h, já com o sol abaixo do horizonte, muito vento, frio, encharcado e cheio de areia.
Tive que desmontar a vela, pois havia uma plataforma (Xangrilá). Alguns caras que pescavam ali perguntam se não tenho frio...
Estou cheio de areia e só me resta entrar no mar com carrinho e tudo para me livrar da areia.
Uma onda forte quase faz o carro me atropelar.
Agora tenho que achar lugar para dormir, mas é um local de casas de alto luxo, cercas elétricas e seguranças...
Desmonto vela e mastro e sigo pelas ruas, já escuro e com vento forte.

- Senhor, que fazemos?
- Calma, desenvolvi uma técnica Ninja para estas situações!
- Agora nós somos a escuridão e o inimigo não nos perceberá...
- Como se faz isto, senhor?
- Basta usar o poder da mente!

Dito e feito, à medida que caminhava, os seguranças me seguiam discretamente com suas motinhos.
Em uma distração dos chifrudos, encontrei um condomínio onde as luzes estavam apagadas, estava abandonado e havia varandas que protegeriam do vento NE.
Fui para a varanda mais do fundo, onde era mais escuro.
Troquei de roupa, coloquei plástico, isolante térmico e o saco de dormir por cima. Puxei o plástico sobre o saco de dormir e assim passei uma noite que prometia ser difícil razoavelmente bem. Como não comi nada o dia inteiro, fiz uma granola básica e fui nanar.

31-07-07 Terça-feira
Acordei bem cedo e parto logo, com as roupas ainda molhadas de ontem.
Cadê o vento?
Nothing!

- Senhor, como vamos combater o inimigo?
- Já estamos combatendo!
- Vocês relaxaram e o pelotão foi tomado por uma leva de ácidos graxos, colesteróis e assemelhados.
- Quando chegamos ao final da viagem de caiaque ano passado o pelotão não passava de 68 kg .
Ao partirmos de Imbituba, vocês largaram com 86 kg ...
- Agora... MARCHEM!
- SEUS "APAGADÕES"!

E assim nos fomos, marchando e cantando a canção...
Parei para almoçar ao meio dia, pois já estava com dor de cabeça. Ali ao lado havia um daqueles carretéis para recolher as redes do mar.
Mais adiante encontrei uma fêmea de lobo marinho e dois filhotes. Um deles estava morto.
Depois de três horas de caminhada o vento começou a se manifestar. Fraco a princípio, mas às 13 h já podia navegar sentado, pois o estilo "patinete" é cansativo.
Às 14:30 h, já com o mar subindo e com pouca praia, cheguei a foz do Rio Tramandaí. Conversei com Eduardo que veleja de windsurf e kite surf e dali segui para o hotel Alaska. O mesmo onde me hospedei ano passado quando passei rumo a Torres naquela viagem de oito meses.
Aliás, foi ali que se hospedaram meus hermanos de Rosário em sua viagem de caiaque rumo ao Rio de Janeiro.
Encontrei Márcia, esposa de Marcos, dona Vani, esposa de seu Juvenal, o dono.
Agora são 21 h e screvo na mesma net onde enviava os mails ano passado.
Foi legal ter passado aqui e rever meus amigos.
Parece que vem outra frente freia e chuva, mas o pelotão segue em frente.
Grande abraço
André

Quintão 3-8-07 19:42 h
Buenas e me espalho, nos pequenos dou de plancha e nos grandes dou de talho!
Assim chegou o tenente Issi em Quintão ontem, abaixo de chuva.
Como minha roupa não aguentou a marcha, tive que comprar outra de chuva que só chega amanhã.
É chuva que não pára mais, mas amanhã as aventuras continuam pela parte mais desolada da viagem.
Disseram que daqui há 100 km não haverá passo na saida de um riacho, mas é coisa pra mais tarde.

1º/08/07 Quarta-feira
Parti de Tramandaí depois de reencontrar seu Juvenal. A festa foi completa. Dona Vani lembra minha mãe e é muito querida. Marcia, Marcos e seu filho (Taylor) são pessoas especiais e só aceitei que não me cobrassem a diária com a promessa de que irão retribuir a visita lá na pousada.
Essa é a parte que mais interessa nas viagens, a amizade que permanece, os bons amigos.
Às 10:30 h já estou na praia velejando e logo adiante desmonto a vela para cruzar pela plataforma de pesca.
Dali em diante o vento diminuiu e tive que velejar no estilo "patinete", ou seja, dar um embalo e subir na longarina do eixo dianteiro e seguir de pé, apoiado no mastro, segurando o cabo da vela e controlando a direção dando bicos no comando da roda dianteira.
Fico parecendo com aqueles mestres de barcos que seguem de pé em suas canoas com os cabos do leme na mão.
É legal, pois o cara segue de frente para onde está indo e percebe melhor onde a areia está mais firme.
O perigo é escorregar e ser atropelado, mas isto só aconteceu uma vez; acho que estou ficando craque!
As horas passam, observo as gaivotas, as garças e os talha-mares.
Eles ficam numa patinha só e ficam pulando...não sei se a areia está fria, mas a outra pata não está machucada. Na hora de voar eles a colocam no chão.
Passo por uma infinidade de lobos marinhos mortos, na maioria são filhotes, parecem pequenos cachorros sem orelhas.
Horas depois chego a plataforma de Salinas, a mesma onde o Nardi nos deu a única aula que tivemos um dia antes de partir. Estava gelado pra caramba e tomamos nosso primeiro "banho de areia".
Depois passo por Cidreira e um casal legal (Caco e Lúcia) conversa e oferece chimarrão... Era tudo que eu queria! Passei o dia todo sem comer, mas o pelotão têm que aproveitar os raríssimos ventos favoráveis, mesmo que fracos.
Até hoje não houve um dia inteiro de vento forte o suficiente para eu velejar normal. Por isto adotei o estilo "patinete"!
O pelotão está ficando com fome, mas é bom para emagrecer, hehehe
Amanhã entra chuva e outra frente fria, por isto tenho que aproveitar.
Depois de Cidreira o cenário ficou feio e triste. Há uma verdadeira favela que tomou conta das dunas e com elas lixo, bichos e detritos...
Assim foi até chegar a Pinhal.
Há, também, muitos desses rolos que os pescadores utilizam para remover as redes do mar. Desde Capão há áreas demarcadas para pesca, surf e banhistas, visto que essas redes são perigosíssimas, pois mais de 40 surfistas e banhistas já morreram enroscados nelas.
É uma polêmica que se arrasta e as pessoas morrem...
Outro fator curioso são as casas de salva-vidas ao longo da orla. Cada município as faz nas mais diferentes formas, desde pirâmides, quadradas ou mesmo em formato de boné.
Às 17:30 h, quase escuro, resolvo sair da praia para encontrar a varanda de uma casa pois há previsão de chuva para esta noite e guardar a barraca molhada é ruim.
Resolvo limpar o carro e as roupas com a escova antes de seguir. Percebo algo estranho no pneu e puxo... Era uma espinha de peixe e foi tirar para esvaziar.
Tchê, que confusão! É um vira-desvira o carro e nada da câmara sair. As coisas se espalham no chão e não posso sair dali sem antes consertar o pneu. Para complicar o mastro travou e não desconecta...GRRRRRRRRRRRRR!
Estou quase mordendo aquela maldita câmara que não sai e ainda por cima o esforço arranca as cascas das feridas do tombo em Morro dos Conventos.
Ah é, tu vai ver maldita! Pego o alicate e tiro a câmara "a la André ", ou seja, animalescamente. Acabo arrancando o ventil, grrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr!
- Burro, incompetente!
- Sabia que irias fazer porcaria!
- Agora azar, arranquei a maldita e consegui colocar outra. O mais importante é achar abrigo.
Sigo pelas ruas possesso, pois o mastro "colou" por causa da areia e não desmonta totalmente.
Para me acalmar os cachorros se botam por cima e estragam meu disfarce ninja para encontrar uma varanda em silêncio.
GRRRRRRRRRR!
- Calma seu boludo, te concentra no objetivo maior!
Vai querer jogar pedra em tudo que vê ou achar lugar para dormir?
Bueno, as casas estão no fim e finalmente encontro uma de jeito, com boa varanda e abrigada.
Coloco o saco de dormir e tento passar a noite.

02/08/07 Quinta-feira
Desperto com chuva e vento sul.
Hoje a Ângela (minha irmã) está de aniversário. Parabéns!
Lúcio (professor de windcar em Rio Grande ) falou que só terei vento favorável Terça que vem...Ele é amigo do Nardi e do Henri "Talha-mar".
Os amigos crescem na mesma medida da viagem. O Danilo ajuda como pode com previsões e o Rodrigo "Asterix" (que é biólogo), informa sobre a fauna.
Ele disse que aquele "filhote" de golfinho (esqueleto) na verdade é adulto.

"a observação q tenho q fazer é que o "filhote de golfinho" q vc fotografou na verdade é um golfinho adulto! Provavelmente vc vai encontrar muitas mais ao longo do litoral, em especial ao gaúcho na parte sul. Trata-se do menor golfinho do mundo e que vive em nossas águas, da Argentina ao Rio de Janeiro, em maior quantidade concentrand-se do Uruguai a Santa Catarina e Paraná! O Rio Grande do Sul é rota e presença frequente desses animais. Chama-se vulgarmente como Franciscana (na região do Prata) e Toninha (RS, SC, PR) e a espécie é a Pontoporia bleinvillei. São animais muito frágeis e acabam morrendo emalhados nas redes de pesca próximo ao litoral onde se afogam rapidamente. Como é proibido por lei matar, capturar ou perseguir estes animais, os pescadores com medo as desemalham já mortas ou ainda inconscientes e vão acabar dando na praia. No caso das insconscientes acabam indo ao fundo e se afogando. Se vc puder ao longo da sua jornada registrar com uma foto (coloque alguma coisa como uma caixa de fosforo ao lado para se ter uma noção do tamanho) e as coordenadas (tá funcionando o GPS?) seria uma boa para eu repassar esses dados ao Museu Oceanográfico de Itajaí, onde sou co-fundador e colaborador. Eles realizam trabalho de pesquisa com estes mamíferos e seus dados podem ajudar em algum aspecto sobre a mortandade e distribuição no litoral. O mesmo vai ocorrer com lobos e leões marinhos, eventualmetne outra espécie de golfinho e provavelmente vai encontrar várias tartarugas marinhas mortas. Se fotografa-las é possivel q identifique para vc as espécies o que, ainda mais por fotos, vai depender muito do estado de deterioração para achar as caracteristicas.
Achei q ia gostar desse feedback pois sei q curte os animais q encontra e sabendo mais deles fica melhor ainda.
Abração! Toca ficha! Bom passeio.
Asterix "
Bueno, vamos em frente pela praia com fraco vento de proa, areia mole e ruim de puxar.
- Hay que tener huevos!
Paro em uma guarita na praia para descansar, pois mesmo com chuva e frio fico suando pelo esforço de puxar.
Já estou em Magistério e decido que é melhor ir por cima, pois é mais fácil de seguir.
O plano é parar em Quintão, comprar câmaras, reparos de câmara e mais kinojo antes dos próximos 200 ou 300 km sem nada.
Dali pra frente é sem moleza, apenas dunas e eventuais povoados perdidos no meio do nada...
Resolvo também almoçar, pois estou ficando fraco.
Liguei pra casa, dei os parabéns a Ângela e falei com a mãe. Ela disse que o Luigi emagreceu cinco quilos nos 14 dias que viajamos e que está comendo como nunca...
Paro para almoçar no restaurante da Olga em Magistério...
Tchê, nunca comi um filé a parmegiana tão saboroso. Que delícia!
Para acompanhar uma deliciosa feijoada e dois baita copos de vinho, que adoro.Antes não bebia por causa do Luigi, para não influenciar soldado tão novo e adepto do refri.
Fico assistindo tv, bebendo o vinho e sem vontade nenhuma de seguir puxando na chuva...
Faço amizade com Olga, Tereza e Jaíra e elas topam fazer um café depois de eu "chorar" dizendo que poderia ser meu último café, heheheh
Essa "tática" sempre funciona com a mãe!
Depois sigo até uma casa de material de construção para comprar o que falta. Uma parte havia, mas o resto só em outro local. Os donos, sr. Júlio e Simone, me levam de carro até onde tem o que preciso. Que pessoal legal!
É isto que torna viagens assim tão agradáveis, as pessoas saem da rotina e te surpreendem!
Dali sigo para o asfalto que liga Magistério a Quintão.

- Senhor, o nosso barco não foi desenhado para pelear por aqui!
- Quieto, o nosso pelotão peleia onde quiser! Se aparecer vento por aqui monte a vela e siga em frente.
- Mas pode haver polícia, não temos freios...
- Então atropele os chifrudos, pois eles só param para verificar a validade do extintor!
- Senhor e essa mania de velejar em pé, junto ao mastro e de frente para a proa?
- Dizem que estamos amaldiçoados, pois nas noites de lua cheia vemos apenas nossos corpos magros... Como se fossem esqueletos!
- Será que o nosso barco não está amaldiçoado como aquele navio fantasma do Jack Sparrow?
- CHEGA!
- Te pára de frescura!
- O bagual que não aguentar o tirão sentirá a fúria do pelotão!
- Esta guerra é real e se o inimigo (vento) vacilar, montamos a vela e seguimos por cima desse bicho preto (asfalto) rumo ao sul velejando...
- O pelotão não tem caminho definido, não temos regras e só dependemos de nosso esforço!
- E os Imperialistas (polícia)?
- Soldado, viemos aqui para combater e não para pedir licença.

... E às 17 h o pelotão chega em Quintão!
Acampamos na pousada da Lorinha e do Francisco. Chuva, ruas inundadas e vento...
Não sei como, mas a calça de chuva rasgou nas duas pernas e nem o conserto com fita silver tape ajudou. Amanhã tenho que achar outra em Quintão no inverno e chovendo a cântaros!

3-08-07 Sexta-feira
Desperto com o barulho de um corno acelerando sem parar. Descubro que é o vento assoviando pelas frestas...
Chuva, chuva e chuva!
Caminho pela city e nada da roupa. Uma menina diz que encomenda uma e que amanhã de manhã a roupa estará por aqui. Durmo parte da tarde e depois venho a lan house para mandar notícias.
Espero que estejam gostando e amanhã inicia o trecho sem nada...
- Senhor, é aqui a fronteira final?

Abração Rio Grande 13-08-07
Queridos amigos. Estou aqui na casa do Henri, depois de muitas aventuras neste trecho desde Quintão até Rio Grande.
Houve um capotamento espetacular na saída de um riacho-rio, rotina de faróis, esqueletos de barcos naufragados, esqueletos de baleias, tempestades e frio.
Graças ao Henri o pelotão Farroupilha pode continuar tentando seguir em frente até o Chuí e tentar voltar. Até onde eu não sei, mas não está morto quem peleia e vamos tentar ir e voltar, embora sabendo que um simples acidente possa findar tudo em um instante.
O acidente rompeu a braçadeira de inox que sustentava o mastro e entortou para dentro uma das longarinas de alumínio.
Só uma pessoa poderia consertar isso, era o Henri aqui em Rio Grande , mas tive que viajar por mais de 150 km com um conserto feito de uma tábua cortada a facão e um “bolo” de cordas amarradas que permitiram velejar até aqui. Cheguei na sexta a noite. Vamos ao diário desde Quintão:

04-08-07 Sábado Quintão
Ficar aqui na pousada foi bom e ruim ao mesmo tempo, pois acostumei a ficar embaixo das cobertas, no quentinho enquanto lá fora chove e venta sem parar.
Para ir à lan house todas as ruas estavam viradas em riachos e caminhar aqui só de botas ou de chinelos, o meu caso.
- CHEGA!
- Pelotão! Sentido!
- Arrumem suas tralhas e partam!
Fomos chamados de Laguna para ajudar o comando maior e as ordens chegaram.
- Temos que tomar a vila de S. José do Norte e a barra da Lagoa dos Patos.
O General Bento atacará a vila de S José com Garibaldi e Canabarro e vocês atacam a barra norte que parece estar tomada de Soldados papa-terra e peixes-porcos.
Passo na loja e pego a tal de roupa impermeável. É de nylon, made in China, uma porcaria. Agora azar!
Sigo pelo asfalto, mas logo vou para a praia. Monto a vela, mas o mar está alto, areia mole e pouco espaço para orçar.
O céu está roxo; temeroso dos raios desmonto a vela e sigo puxando.
Vejo uma coisa inusitada: um pescador com uma pandorga (pipa) atada a uma garrafa de refrigerante com metade cheia de areia e outra metade com ar. A garrafa flutuava e era arrastada pela pandorga para além da rebentação.
Na garrafa ficava atada a rede que era arrastada conforme a pipa ia para o fundo, na direção do vento.
Na praia, o pescador dava linha que estava presa à outra extremidade da rede que seguia puxada pela pipa e controlada da praia pelo pescador...
Essa eu nunca tinha visto, que coisa impressionante, como é que os caras tiveram esta idéia? Genial!
Há muitas corvinas e papa-terras mortos. Os pescadores recolhem aqueles que ainda tem as gelras vermelhas (podem ser consumidos). Dizem eles que os peixes estão morrendo de frio.
Chego ao farol Berta, vejo um lobo marinho que me olha suplicante. Percebo agora que possui diminutas orelhas e uma pequena cauda após as nadadeiras traseiras.
Fico com pena e volto a pé um bom pedaço recolhendo peixes mortos. Dou para o lobo que está muito magro e de costelas aparentes.
Ele come tudo, mesmo os peixes mortos há mais tempo.
Resolvo buscar mais e recolho mais vinte peixes. Enquanto me afasto ele se esforça e me acompanha com o olhar suplicante e se deita a própria sorte.
Faz frio e chove, fico mais de uma hora recolhendo peixes.
Ele come a maior parte e se deita, exausto.
- Pelotão! Encontraremos muitos feridos nesta batalha.
- Deixem comida e sigam seu caminho!
Vou me afastando com o carro, ele se levanta e fica me olhando, mas logo se deita esperando a sua hora.
Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás!

Chove mais ainda e fico na dúvida se procuro local ali nas casas do farol ou se sigo. Já são 15:30 ...
Resolvo seguir em frente, pois tenho que deixar de ser dependente e aprender a me virar sozinho. Está na hora de enfrentar o que vim combater.
Andando mais um pouco, vejo o que parece uma casinha perdida entre as dunas, subindo um pequeno riacho que se mete entre as dunas.
Está cheia de flores de plástico e tem uma cruz no alto. Parece uma sepultura, mas há uma varandinha e tem teto, ali posso inaugurar minha barraca “sarcófago”, que alguns chamam de bivaque. Ela não tem mais do que 50 cm de altura e mal cabe o cara deitado ali, mas acho que oferece menos resistência ao vento se tiver que dormir nas dunas.
- Senhor, isso aqui parece uma sepultura!
- Vamos dormir ao lado de um defunto. O senhor não tem medo de alma penada?
- O que sei é que aqui abriga do vento e da chuva. Vocês querem seguir e dormir nas dunas armando a barraca sob chuva?
- Além do mais o perigo são os vivos!
Tenho que me garantir agora, dormindo mais cedo e amanhã enfrentamos melhor o que vier.
O importante é que estamos no campo de batalha e livres das tentações de cama e cobertas.
Essa barraca eu havia comprado para viajar de caiaque, mas é extremamente desconfortável (não dá nem de ficar sentado, além do que eu não queria dormir “embalado” como papel de bala para sucuri, o grande pavor daquela viagem afora as corredeiras que quase me mataram e que me mandaram para o hospital).
Antes de me deitar, já às 18 h, vi um claro nas nuvens para o sul. Apesar disto, a chuva, o vento sul e o frio permanecem.

5-08-07 Domingo
Hoje realmente começa minha marcha de Quintão para o sul.
Acordo cedo, vento fraco e contra. Está nublado e sei que será um dia sem velejar, mas faz parte.
Enquanto escrevia, chega seu Luis Gonzaga que mora um pouco adiante. Ele pergunta por que não fui dormir em sua casa, diz que onde estou dormindo é uma igrejinha e informa que na barra da Lagoa do Peixe está profundo e que terei que arrumar um caíque para cruzar. Dei a ele um isqueiro para acender seu cigarro de palha e se foi.
Acabei partindo só às 10:30 h; à medida que caminhava vi muitos objetos do tamanho e formato de ovos de galinha, só que transparentes. Muitos peixes porcos e papa terras.
Depois pequenos caranguejos com patinhas coloridas e com cracas na carapaça.
Fui caminhando de chinelo e calção até às 12 h e mais tarde uma caravana de jeeps 4 x 4 cruza por mim. Cerca de vinte.
Depois fica o silêncio... Adiante o piado dos talhamares, gaivotas de cabeça preta e algumas garças.
Havia muitas gaivotas pequenas de dorso negro-azulado e peito branco, com bicos e patas azuis. Pareciam pássaros migratórios.
Depois encontro pedaços de uma embarcação que os pescadores dizem ser do barco pesqueiro que naufragou no furacão Catarina (em 2004). Parte dele está nas dunas e parte semi-submersa na beira do mar.
Caminho em intervalos de hora, alongo, subo nas dunas para ver melhor o que tem pela frente. Vejo algumas casas. Algumas delas são sinalizadas na beira da praia por espantalhos e não se vê, pois estão escondidas atrás das dunas.
Cerca de 15:30 h chego a uma caminhonete que vi de longe onde havia um pessoal pescando.
Converso com eles e Paulinho mostra um peixe estranhíssimo que encontrou ali. Ele ainda está vivo, é marrom com listras negras como zebras. Na parte inferior tem nadadeiras que parecem patas e na parte superior da boca uma extremidade semelhante a uma vara com linha de pesca e uma bolinha como isca. Ele balança aquilo na frente da boca, atrai peixes menores que vêm comer a “isca” e os devora. Já tinha visto um semelhante na National Geographic.
Paulinho é legal, diz que tem um haras de cavalo crioulo, uma loja de autopeças e diz que para frente é deserto e que não tem abrigo. Diz que é melhor eu dormir numa casinha quase ali ao lado e que nem percebi, pois estava atrás da duna, bem ao lado de uma saída de riacho.
É cedo ainda, mas o céu está nublado e é melhor me garantir de novo.
Fico ali tomando vinho com eles e depois vou me instalar na casinha. Na porta os dizeres:
-Use, mas não estrague!
-Feche a porta ao sair!
Está vazia, tem umas prateleiras onde coloco o mais necessário e uma espuma, onde coloco a lona e sobre ela o saco de dormir.
Paulinho retorna com uma caixa plástica atopetada de arroz, feijão, salada de batata e um baita pedaço de churrasco. Além disto, deixou o resto da garrafa de vinho que (Hic!) estou bebendo até agora.
Ele está voltando e diz que o que estou fazendo é o que todos queriam fazer, mas não têm disposição para encarar.
Deixa seu cartão e retorna para Porto Alegre.
Vou deitar, começa um vento forte que balança a casa.
Incrível, ele vem do norte... Nem acredito. Não consigo lembrar quando foi que soprou favorável a última vez...
Nem durmo direito.
O fecho da japona estragou, agora seguirei com a mais fina.

6-08-07 segunda-feira
Cara, que vento forte e de rajadas.
- Senhor, esse vento dá medo! Não é melhor esperar diminuir?
- Negativo, nós viemos combater e não podemos escolher. Vento favorável é raríssimo e temos que avançar a qualquer custo!
Tenho medo de estragar algo, mas ou eu crio coragem e arrisco ou é melhor voltar para casa.
Mal armo a vela e o carro dispara como louco, pega velocidade demais e fica perigoso, pois as constantes chuvas armaram dezenas de armadilhas, pois o mar está alto e os riachos cavocaram barrancos perigosos além de estarem bem mais profundos.
Quando menos espero, mergulho com força nos riachos mesmo seguindo as instruções do Nardi de navegar junto às ondas para livrar dos barrancos.
Quando o mar recua posso descer um pouco e diminuir o perigo, mas às vezes coincide de o mar subir bem na hora que surge um riacho e a coisa fica perigosa, pois estou muito veloz, o carro não tem freios e só tem duas opções: ou dou um cavalo de pau ou embico para o mar.
Afrouxava a vela quando surgiam os riachos, mas parecia que ali ele pegava mais velocidade ainda.
Passei por um esqueleto de baleia e tirei umas fotos.
Seguindo adiante encontrei dois enormes riachos onde o carro quase flutuou e a força da vela o fez emergir e avançar.
O negócio começou a fugir do meu contrôle. Embiquei contra o vento para verificar os cabos e o carro não parava. Para meu espanto ele empinou sozinho, pois as rodas estavam apoiadas no barranco; isto que a vela estava solta...
Segui em frente e a força do vento cada vez pior.
É a primeira vez que sopra um nordeste de jeito em 20 dias.
Já nem paro para fotografar os vários esqueletos de navios e outro enorme, de baleia.
Estou encharcado e de botas cheias de água de tanto varar riachos profundos.
Quase não enxergo direito, pois virei croquete de areia e os óculos escuros estão arranhados na vã tentativa de tirar a areia e ver algo.

- Senhor, há um enorme rio a frente, é profundo e tem barranco...
Estou em alta velocidade, com certeza a mais de 60 km/h e dar um cavalo de pau a menos de 10 m é arriscadíssimo de capotar sem parar.
Para meu azar o mar sobe com tudo invade o rio com tal força que parece uma pororoca, pois a água do riacho desce com fúria
- Rápido, soltem a vela!
-Soltamos, mas o cabo trancou nas mochilas e ela abriu na posição “asa de pomba”, onde o carro pegou mais velocidade ainda.
Para piorar havia uma descida antes do riacho e fui para o choque a mais de 70 km/h .
Não havia mais o que fazer, segurei-me nas barras e não vi mais nada.
Foi uma pancada tão forte que a roda dianteira mergulhou, trancou no fundo e o carro levantou nas duas rodas traseiras, girou no ar e tombou para bombordo.
Meu desespero era que o carro fosse enterrando na areia com aquela força de água e tentei me desvencilhar do ferro retorcido para dentro e que me prendia dentro do carro.
Saio dele desesperado, tento levantar pelo mastro, mas a força do vento na vela o mantém para baixo.
Corro atrás dos chinelos que seguem a correnteza para o mar e os deixo em terra firme.
Volto para o carro e desamarro nervosamente o cabo que prende a retranca para tentar sacar mastro e vela ao mesmo tempo.
- Sai sua maldita, sai senão eu te quebro ao meio!
E berrando como um doido consegui, no desespero, arrancar o mastro e a vela.
Levo tudo até o outro lado, volto ao carro, consigo desvirá-lo e arrasto o coitado até onde está a vela.
Resgato os chinelos e vejo que o varão está muito torto para dentro. Desentorto com coices para que pelo menos eu possa entrar no cockpit novamente.
Abro a caixa preta e escuto os últimos momentos da tripulação:

- Estamos com muita velocidade, desvia!
- Não dá!
- Tenta os freios...
- Não tem senhor!
- Baixe os flaps (cabos da vela)...
- Soltamos, mas prendeu. Não funciona!
- Estamos com muita velocidade....
- BZZZ, BZZZ (sons de choque nas ondas, etc...)

Olho para mim, desta vez estou inteiro, tenho que montar a vela e seguir...
- Senhor, estamos apavorados...
- O primeiro boiola que arrepiar vai se ver comigo!
- Todo combate tem esses choques de tropas.
- Reagrupem o pelotão e preparem-se para o combate!
- O pelotão tem que seguir batalhando!

E assim nos fomos, agora mais experientes e conscientes que o negócio não é tão fácil assim e que tem que ter muita farinha no saco.
Encharcados e congelados seguimos em frente passando por riachos menores, agora sem os óculos que foram aposentados, pois prefiro ficar cheio de areia nos olhos, mas enxergando melhor por onde vou passar.
Passei vários riachos, mas havia outro enorme, só que vi com mais antecedência.
- Soltem o cabo!
- Trancou de novo!
- Puxem com a mão!
- Soltou senhor, mas ainda estamos com muita velocidade...
- Preparar cavalo de pau!
- Estamos muito rápidos...
- AGORA!
É viver ou morrer. A roda dianteira gira, vejo a traseira esquerda deslizando na areia, o carro girando e ficando de frente para o vento.
A vela balança como louca e o carro inicia a andar de ré, tal a força do vento.
- Pelotão, finquem as esporas no chão até que gastem e arranquem os “garrões”!
Finalmente o bólido pára!
- É isso aí xiruzada, ainda terão que inventar um bicho bagual que o pelotão não aprenda a domar.
Desço e atravesso o Imortal (em homenagem ao brasão de armas da República do Rio Grande) até o outro lado.
Acontece que meu cavalo está ferido e estrala sem parar.
Estou encharcado, cheio de areia, botas cheias de água e enregelado. Não quero parar nem para tirar fotos, tanto que passo por várias carcaças de barcos, grandes esqueletos de baleia e dois faróis: Solidão (avermelhado e base cônica) e Mostardas.
Nem quero saber se molhou a máquina fotográfica para não baixar mais o astral.
Ali no farol de Mostardas havia um povoado grande, mas mesmo com o vento diminuindo bastante sigo em frente, já andando de um lado a outro para pegar mais velocidade.
Aproveito para aprender a andar com uma das rodas no ar, mas o carro estava esquisito:
- Senhor, rompeu a solda que segura a braçadeira das longarinas ao mastro.
- Droga, façam um conserto emergencial com o cabo que usamos como rédea (para puxar o carro)!
Encharcado, congelado, meio da tarde e vento parando.
Dormir aonde?
Subo uma duna e vejo árvores ao longe. São 15:30 o vento parou total, mas pela primeira vez (em 20 dias) velejei por 6 h seguidas.
Sigo puxando e chego às árvores. O céu promete chuva e ali há um povoado, mas não vejo moradores. Um povoado fantasma semi-enterrado pelas dunas.
Vejo um cachorro preto, algumas galinhas e só!
Chamo e nada!
Aparece um carro e um dos moradores sai da casa. Pergunto se posso passar a noite em uma das várias casas.
Tudo bem! Protásio (Tazinho) é muito legal e oferece um café que tomo ao lado do fogão a lenha que aquece um pouco. Ajeito umas tralhas, coloco roupas secas e descubro que a máquina fotográfica molhou, já era!
Tiro as pilhas, ajeito a lona e o saco de dormir em um diminuto quartinho e vou dormir.
O saco de dormir molhou então deito sobre o plástico e puxo a metade sobre mim para reter o ar quente.
Chove forte e para completar o dia duas goteiras finalizam o dia. Uma sobre a cabeça e outra nos pés.
Tortura chinesa (aquele som martelando no plástico e molhando aos poucos) para lembrar da roupa de chuva chinesa que não serve pra nada...
Assim passei a noite.

07-08-07 terça-feira
Viajei mais de 100 km ontem, estou na altura de Tavares e a 8 km da travessia da barra da Lagoa do Peixe, um parque nacional onde centenas de espécies de aves migratórias param em sua trajetória e onde há muito camarão e tainha.
Poucos puderam permanecer e por isto o povoado ficou “fantasma”. Além disto, o mar avançou e mais de 150 m foram tomados; onde antes havia casas hoje é o mar que continua avançando. Fora isto as dunas avançaram, inclusive já invadiram a garagem da casa onde deixei o carrinho.
Agora são 11:15 h, adaptei uma madeira para apoiar a braçadeira quebrada e fixei com cordas, espero que funcione.
As fotos já eram, as roupas coloquei para secar no forte vento SW que sopra hoje e tenho que decidir o que faço.
Resolvo tirar o dia para consertar coisas enquanto secam as coisas de ontem. Como não tenho nada a perder, abri a máquina fotográfica tirando os minúsculos parafusos com a ponta do punhal e a coloquei ao vento, aberta com uma madeirinha.
Na parte da tarde fui até a Lagoa do Peixe caminhando pelas dunas e encontrei a rural de Jorge “Lambari” que a deixou ali na margem para largar as redes. A rural é como muitas outras daqui, funciona a gás, cabine em madeira e muita improvisação.
Volto ao povoado e a máquina fotográfica voltou a funcionar. Fiquei louco de alegria e acabei jantando com Luis, Jorge, Jéferson e Lambari. Comi um delicioso arroz com feijão, moranga e aipim.
Que pessoal legal. Um frio de rachar, mas sigo para minha casa no escuro e dessa vez minhas roupas estavam secas.

08-08-07 quarta-feira
Acordo cedo, tomo café com os amigos que preparam dois ovos e um copo de café antes de partir. Que gente mais amiga. Jorge dá as dicas para subir a barra onde há um povoado e conseguir um caíque para atravessar a barra que está profunda e com muita correnteza.
Parto às 10h com vento fraco e uma hora depois chego a barra. Subo até o carro atolar e sigo a pé até o povoado.
Encontro uma senhora, seu Nilton e Joel. Eles vão me atravessar. Pego uma tábua de madeira grossa para fazer novo conserto, pois a outra não agüentou e partiu.
Na hora de atravessar tiro as botas, cair na água com elas é caixão. Não adiantou seu Joel dizer que não precisava, não vou dar chance pro azar.
Foi uma luta, mas seu Joel conseguiu tirar uma foto para mim e depois ele se foi enquanto eu cortava a grossa tábua com meu facão.
Amarro com cordas e sigo arrastando pela areia mole com muito esforço até voltar a beira do mar.
O vento ficou mais forte e sigo logo para aproveitar, pois o vento pára de repente por volta de 15 h.
Mas o conserto não durou muito, pois as cordas afrouxaram e tive uma crise histérica e fiquei berrando toda sorte de nomes feios enquanto desamarrava e reamarrava as cordas, agora utilizando as outras que possuía.
Segui em frente, a braçadeira rompeu em outro ponto e vou na manha para ver se consigo chegar em Rio Grande.
Não posso trocar de bordo e tenho que segurar o mastro com as mãos para impedir que ao virar de lado, force mais ainda sobre a braçadeira.
Ao passar pelo povoado areia da Praia, o pneu traseiro fura de novo...
O pessoal dali vem observar, oferece pouso em suas casas, mas dessa vez troquei rápido a câmara e resolvo seguir mais um pouco. É a neura de aproveitar o vento favorável ao máximo.
Sigo em frente até às 17:30 h, e resolvo arrastar sobre as dunas até um grande casarão nas dunas.
O vento frio está forte, mas ele tem uma boa varanda e coloco o plástico no chão.
Chove muito durante a noite, mas as goteiras não me alcançaram e dormi bem.

09-08-07 quarta-feira
Antes de partir, reaperto os cabos, pois o vento está forte.
Agora são 8:45 h. que deus me ajude!
Faltam 95 km para a barra da Lagoa dos Patos.
Estou próximo a Bojurù, de frente para a Barra Falsa, na Lagoa dos Patos.
Vou rezando para o conserto dar certo, pois o vento está forte.
A princípio estava dando certo, pois o carrinho pegou velocidade (apesar da areia mole).
Bueno, dia de vento favorável o pelotão não pára e assim fomos passando por ossos de baleia, lobos marinhos e cascos de navios pesqueiros. Eu nunca pensei que houvesse tantos.
O farol de pedra da Conceição desabou e um pouco mais acima há uma torre de metal, é o novo farol.
Sem sobressaltos fui deixando o carro correr, pois estava mais plano e sem grandes riachos, apenas alguns “mergulhos” em alguns mais profundos, mas tudo bem, normal.
Logo depois de ultrapassar um trator, vi uma caminhonete dando sinais de luz. Passo em velocidade e eles pedem que eu para. É da FURG (Fundação Universidade de Rio Grande).
São Candinho, Paulo e uma menina, amigos do Henri “Talhamar”. Só consigo parar mais adiante, pois vinha em velocidade. Estou cheio de areia e molhado. Eles tiram muitas fotos, avisam de riachos grandes adiante e seguem para o norte, vão monitorar a barra da Lagoa do Peixe e voltam.
Quando eles partiram, percebi que o pneu estava saindo da roda, por isto trepidava tanto. Esvazio, ajeito o pneu e ponho menos pressão, pois o carro já está todo fora do esquadro e trepida com mais velocidade.
Fui em frente e passei por outra torre de metal (farol do Estreito).
Exatamente as 15 h o vento parou... Não dá de acreditar na força que tinha de manhã e de repente pára!
Para piorar começa a chover e imediatamente a superfície brilha e fica encharcada, difícil para puxar.
Não há casas abandonadas por perto e só me resta puxar, pois acampar nas dunas é muito ruim.
Caminho por mais de duas horas até que chego a um mato de casuarinas (uma espécie de pinus) que vi de longe.
Está cercado, três placas de proibido entrar na porteira.
Acontece que o pelotão está encharcado, cansado e sem ver nada para frente por causa da neblina e da chuva.
Abri a porteira, penetrei no mato e montei a barraca (sob chuva) abrigado pela duna e pelas árvores.
Estava tremendo, mas coloquei as roupas secas, comi a granola e fui dormir na barraca sarcófago.
Deixei as roupas molhadas penduradas nos galhos (pois deu uma estiada) e dormi super bem, abrigado do vento.

10/08/07 sexta-feira
Sou despertado por raios e trovões e desarmo a barraca em tempo recorde. Nada de diário nem comida.
Monto tudo e logo o dono das terras aparece. É seu Nilton, gente muito legal que diz que adiante há o povoado de Marumbi, quase em linha com S José do Norte. Então ontem andei cerca de 80 km e faltam uns 15 km até a barra...
Pena que não há vento e tenho que seguir puxando.
Chove, fica uma neblina que não deixa ver mais que 500 m . Logo adiante passo por pequenos abrigos com telhados de frente para o povoado e com redes penduradas. Na neblina as coisas são estranhas, tu vês o que parece um farol e quando se aproxima não passa de uma estaca de rede.
Caminho uma hora, como uma laranja, outra hora, outra laranja.
Estou de botas e roupas de chuva, ruim para caminhar, mas não tem remédio.
O pelotão não tomou café e está cansado.
Vejo a carcaça de um enorme leão marinho e depois a de um filhote de baleia. Resolvo parar por ali para descansar.

- Senhor, estamos famintos e de saco cheio de comer queijo e salamito!
- O quê? Soldado reclamando da ração de guerra?
- Sim senhor!
- Bueno, então vou fazer algo que não vão esquecer...
A comida estava ótima, apesar de fria.
- Senhor, que delícia. O que era?
- Ora, o kinojo, um pacote de sopa e... Sprite!
- Argh!
- Por que não fez com água fria?
- Ela estava por baixo das mochilas cheias de areia e achei melhor adicionar o refrigerante!
- Viram como ficou salgado, doce e frisante ao mesmo tempo?
Bueno, o tempo ficou esquisito e parece aumentar, mas está rondando.
Parece ficar a favor e resolvo montar a vela.
Ando um pouco e o corno do vento pára, grrrr!
Em terra, para o lado da barra umas nuvens negras começam a girar em círculos e se dirigem para o mar. Parece um mini tornado...
- Senhor, estamos em perigo, é a frente fria com vento de SW se chocando com esse de NE.
Rajadas chegam de repente, violentas.
Desmonto o mastro rapidamente, pois raios ao longe dixam todos de alerta.
Virou um inferno, chove, venta forte e contra. A superfície fica molhada, mole e me obriga a um esforço triplo.
As pernas fraquejam, tenho que parar a todo instante e os 7 km que faltavam parecem 20 agora.
Paro a todo instante, e tenho que caminhar de costas, pois assim fica mais fácil de seguir contra o vento, pois este desvia no capuz e assim não judia tanto, pois o nariz pinga sem parar, pois ficou mais frio ainda.
Que coisa mais estafante, mas agora só faltam mais 3 km .
Foram os piores que já andei. Sigo entre milhares de peixes porcos e, papa terras e bagres (perigosos de furar os pneus por causa dos esporões).
O mau cheiro está no ar, as areias correm como loucas de encontro e oferecem bárbara resistência ao pelotão que está nas últimas. Quando dá, cantamos o hino farroupilha e seguimos em frente.
Finalmente, às 14:30 h, depois de 5 horas de caminhada arrastando o Imortal (em homenagem ao brasão de armas da bandeira gaúcha) o pelotão encilha as rédeas nas pedras dos molhes.
Dou um berro de raiva, o pelotão conquista mais um baluarte!
Depois arrasto até a vila quinta seção da Barra e lá muitas pessoas vêm olhar o carro.
Depois como um baita bauru e tomo um café quente, pois o vento está horrivelmente frio e forte.
Está difícil de atravessar, mas lembrei de Chico Preto que disse que me atravessaria se não conseguisse com mais ninguém.
Encontro ele num barzinho, no quente e jogando cartas com os amigos.
Fico até com vergonha, mas não tenho nem onde dormir aqui e já escurece.
Chico se levanta, fala no telefone com os amigos e me leva a sua casa. Tom,o um delicioso café em companhia de sua esposa e uma vizinha. Ele fala que se eu quiser dormir em sua casa ou no barco, que arranja quem solde a braçadeira rompida, etc...
Cara, que pessoa maravilhosa, ele nem me conhece!
No fim, depois de fotos e conversas, ele concorda em me atravessar.
Já que está quase escuro, vamos no vento cortante e três rapazes super divertidos carregam o carro pelo trapiche e o colocam no imenso barco pesqueiro (Chico Preto) sobre as redes, no convés.
Mais uma pro caderninho. Sigo na rústica cabine e fico adimirado da coragem deles de sair mar afora, à noite, soltar e recolher redes.
Muitos dos cascos que encontrei eram de barcos iguais a este... Isso sim é que é coragem!
O pelotão se recolhe a sua insignificância enquanto atravessamos em direção da quarta Seção da Barra, já em Rio Grande.
Quando tento pagar, Chico Preto não quer nem me ouvir falar, disse que já viajou muito e que estas coisas não se cobra... que dizer?
Eles se vão, ganhei outro amigo, dos bons!
Estou no meio de uma vila meio “complicada” e sigo caminhando por uma estrada enlameada rumo ao grupamento de Fuzileiros Navais.
Falo com o pessoal que autoriza que deixe o carro aqui, mas não há alojamento...
Em frente, nos Fuzileiros, fizemos o Estágio do curso de formação para oficiais do corpo de saúde da Marinha.
Ali eu, o Rojas, Bello, Beltrame, Verdi e tantos outros iniciamos nossa vida independente e sou muito grato, traz boas recordações.
Se os guris soubessem que vinte anos depois estou onde tudo iniciou...
Eu não tenho saída, tenho que apelar e chamar o Henri, queria tomar um banho antes...
Foi ele que fez com que eu passasse por Rio Grande na viagem do caiaque e fosse alojado no Yatch Club de Rio Grande.
Falo com ele e vou arrumando os tarecos antes que venha. Fico ali no vento gelado arrumando tudo e quando vou tirar as botas, com horror, que dois zorrilhos vêm abraçados nas meias.
Elas fedem tanto que depois de mais de oito horas de caminhada os bichinhos se apaixonaram pela “essência” das meias que eles as querem com cobertor.
Para minha desgraça chega o Henri e a Maíra e não deu tempo de trocá-las.
Só aí me dou conta de que o último banho foi em Quintão.
Sou muito bem recebido pelos dois que mereceriam uma medalha de bravura, pois levaram o pelotão fedorento sem fazer nenhum comentário.
Quando chegamos a sua casa, coloco as meias em um balde com ácido.
- Morram suas meias fedidas!
Minhas botas estão pior que caldeirão de bruxa!
Quando me olho no espelho outro choque.
Só aí foi que vi como está frio, pois minha barba está branca por causa da geada e da neve.
Um banho delicioso, uma janta divina que Julieta preparou e assim recupero minha dignidade de ser humano resgatado do banhado!

11-08-07 sábado
Resgatamos o carro no Comando de Grupamento Naval do sul e voltamos para a casa do Henri.
Ele tira as cordas, olha reolha e logo está cortando chapas de inox, desentortando longarinas e o meu carro ficou melhor do que estava antes.
Se havia alguém que pudesse recuperar meu carro aqui em Rio Grande , seria o Henri, que tem uma oficina em casa com todo e qualquer tipo de ferramentas que possui como hobby.
Revejo dona Gesine e seu Pierre, vamos jantar e passear.
Almoço, amigos do Heri, Yatch e outro passeio maravilhoso em companhia dele, de Julieta e Maíra
Ontem foi dia dos pais e fomos passear de toyota desde Povo Novo, arraial, Quitéria e vila Quinta..
Voltamos depois de visitar os pais e irmãos de Julieta e depois me puz a escrever.
Agora são 4:34 h da manhã e estou podre. Mais tarde estarei partindo para o sul.
Tem feito muito frio, ontem fez 0º C e outros dias esteve – 2 e -4º C.
Vou enviar este e depois vou tentar mandar as fotos.
Um grande abraço a todos e Bom dia
André

Trecho R Grande - Chuy
É isso aí amigos, foi mais feio que peleia de foice no escuro, mas a custa de grande esforço e muita raiva o pelotáo chegou há pouco ao Uruguay, de onde agora vos escrevo. Desculpem a acentuaçáo, mas o teclado é em espanhol e aí complica o vosso "catador de milho".
Cheguei aqui completamente encharcado e com frio de rachar, mas o inimigo abriu o flanco e o pelotáo aproveitou a oportunidade e se jogou pro tudo ou nada e a vitória, antes tarde do que nunca, premiou todo o sofrimento que foram os últimos noventa quilômetros de uma viagem que já chega aos 800 km .
Pensei em desistir, mas o que eu me arrebentei nos tais de "conchais" me deu tanta raiva que agora vou dar marcha-a-ré no caminháo e passar por cima dele de novo, só de raiva!
A máe foi pro hospital, mas me informaram que ela recebe alta hoje e que está bem, por isto o pelotáo volta pra essa guerra sem fim.
Um grande abraço a todos e espero que viajem e se divirtam mais um pouco neste trecho que virou passado.

Rio Grande,13-08-07 Segunda
Eu fiquei táo desesperado para escrever antes de partir que acabei resumindo um pouco da acolhida maravilhosa que recebi de Henri, seus familiares e os de Julieta, sua esposa.
Foi um fim de semana ultra especial, assim como foram os dias que passei com eles durante a viagem do caiaque e da viagem para a Argentina de moto, ano passado.
Muito obrigado amigos!
O Henri ainda foi buscar a câmara de ar no borracheiro e me deixou na Av Atlântica, no centro do Cassino. Ali montei a bagagem e fui entre os eucaliptos até uma lan house mandar as fotos que náo tive tempo de mandar, pois escrevi até às cinco da matina e levantei às sete, pois o coitado do Henri tinha que trabalhar e se atrasou por minha causa.
Fiquei mandando fotos até às 12 h e depois fui para a praia. A lan house ficava exatamente na esquina da rua Porto Alegre, a mesma onde havia o "fantasminha", a casinha de madeira onde sempre passávamos as férias de veráo em nossa infância. Náo havia luz, o lampiáo era de querosene, o leiteiro trazia o leite em garrafas coloridas penduradas na sela... Coisas de High Lander!
Duas pessoas ali vêm me ajudar e tiram fotos.
Vejo a belíssima estátua de Yemanjá na chegada a praia.

- Tenente, o que está fazendo?
- Depositando flores para a santa...
- E desde quando o senhor é adepto de Yemanjá?
- Se ela é táo gostosa como essa estátua, sou adepto desde hijo...
- Pensávamos que como homem do mar o senhor preferisse as sereias...
- Tá louco? Só se eu fosse metade golfinho, fazer as coisas pela metade náo é comigo!
Venta frio e forte, penso em sair amanhá, dormir numa pousada...
- O quê? Já pra peleia!
- Basta um final de semana e já viraram uns molóides1
Parto perto de 13 h e quarenta minutos depois chego aos destroços do navio Altair que naufragou em 1976. Tiro umas fotos e a praia se revela o melhor trecho que passei até agora. Ampla, limpa, firme e melhor, vento favorável.
Mais adiante o vento foi diminuindo e tive que ir bordejando para pegar mais velocidade.
O carro e a estrutura parecem bem, estrala aqui e ali, mas acho que é normal.
No fim, estou no estilo patinete, pois ficou fraco demais.
- Senhor, o Imortal está depressivo!
- Ele náo sabe mais se é carro a vela, patinete, carro de máo, carroça ou cavalo...
- Deixem-no, ele é adolescente e está buscando sua própria identidade...
- Mais queixas...
-O que é agora?
- O soldado sarcófago (barraca) reclama que todos o chamam de "baixinho"!
- É o que sempre digo, quando o pelotáo náo está de peleia começam as picuinhas!

As horas passam, vários riachos sem importância e um ou dois que parei antes para náo me molhar.
Aquela roupa "china" para chuva chupa tudo, deveria ser utilizada para coisas mais úteis como absorventes, por ex.
Em um dos riachos conheço Ernani. Mora em uma casa ali nas dunas e diz que o farol Sarita está a 40 km e que eu posso chegar lá ainda hoje...
Todavia faltam só duas horas para findar o dia, vou tentar!
Depois outro homem se aproxima, pois a vela é visível de longe.
Ele gesticula grosseiramente, quase impondo que eu deveria seguir em sua direçao, mesmo quando eu sinalizo que vou em frente... Só me faltava um chifrudo querendo dar ordens ao pelotáo!
A praia fica mole, vai diminuindo e o vento também. Como já vejo o farol, sigo puxando no final e, já no escuro, chego em linha com o dito cujo, mas ele está muito para dentro, já nas dunas.
Deixo o carro na praia e sigo no escuro em direçáo de duas dunas altas que têm árvores de pinus.
Volto e arrasto o Imortal até a base delas e resolvo montar a barraca sem a lanterna, para aprender para uma situaçáo de emergência.
Náo é que deu certo? O sarcófago até que ficou bem montado.
Ô barraquinha baixinha! Náo dá nem de ficar sentado nela.

14-08-07 Terça
Andei 60 km ontem, mesmo saindo só às 13 h.
Agora sáo 8:18 h, escrevo sentado nas dunas tomando um sol para aquecer um pouco. Parto às 9:40 h com vento favorável e vou cruzando com lobos e gaivotas até que surge uma toyota da marinha. É Axel, pensa que sou o Lúcio, amigo do Nardi e do Henri. é Que Lúcio, além de professor de vela no Yacht de Rio Grande viaja em carros a vela do Nardi.
Paro pra almoçar perto de doze horas e tento alimentar um lobo magro, mas ele recusa o peixe.
Depois sigo puxando, porque o vento parou total. Como deixei a calça china pendurada para secar na retranca, só fui perceber que a dita cuja caiu sei lá onde.
Busco ou náo? Melhor buscar, por pior que seja. Há uma neblina no ar e bastou correr seis minutos para náo ver mais o Imortal. Que tempo esquisito...
Vejo para o fundo matos de pinus e dunas náo muio altas que náo daráo abrigo para o caso de vento ou chuva que estáo previstos para hoje.
Às 15:30 h, finalmente entra o NE e desisto de procurar local para me abrigar, pois vejo o farol Verga ao longe.
Chego rápido lá, recém sáo 16:44 h, mas é melhor me garantir.
Arrasto o Imortal sobre as dunas e o farol tem uma porta na parte de trás. Melhor, está aberto. É uma base de concreto piramidal e uma torre de metal na parte superior.
Está cheio de areia, mas é muito bom abrigo.
Deixo o carro e a vela na duna em frente e coloco o plástico sobre a areia. No meio o saco de dormir e dobro o plástico por cima para reter ar quente e suportar mais uma noite fria.
Agora sáo 18 h, estou sentado dentro do farol Verga enquanto sopra um NE feio lá fora. O carro ficou na moita e ninguém vê lá da praia.
O travesseiro inflável furou (como na viagem do caiaque) entáo vou usar uma garrafa de refri como travesseiro daqui pra frente. Forro com minha manta de lá e fica show!

15-08-07 terça (acho que 1 mês de viagem)
Está nublado e parece que vem chuva. Sáo 7:47 h e náo está táo frio, se bem que estou com o "kit" de dormir: duas meias, dois abrigos, camiseta, jaqueta de neoprene, dois blusóes de lá, japona grossa (que estragou o fecho) e japona fina do Grêmio. Fora luvas e touca de lá, básico!
Estou com erupçóes cutâneas no dorso da máo direita; devem ser por causa da raçáo de guerra, conservantes ou mofo, sei lá!
- Senhor. Estas erupçóes apareceram naqueles exploradores que tentavam achar uma passagem entre o Atlântico e o Pacífico, próximo ao pólo norte...
- O que aconteceu?
- Os que tiveram sorte morreram antes, intoxicados pelas toxinas em alimentos enlatados. O navio ficou aprisionado pelo gelo por três anos, pois os veróes foram muito rigorosos e náo houve degelo.
No fim o navio foi destruído pela pressáo do gelo e os que sobreviveram tentaram ir para o sul, rumo a uma estaçáo baleeira arrastando enormes botes sobre o gelo. A comida acabou, houve casos de antropofagia e náo sobrou ninguém para contar a estória, apenas evidências.
Parece que o nome do navio era Endurance...
- Tudo bem, náo te preocupes, pois os exploradores eram ingleses e o pelotáo foi forjado no Rio Grande e aguenta muito mais que isso!
- Êta índio bagual! Gaúcho barbaridade!
- Senhor, podemos utilizar como enfermeiras aquelas "mulheres da vida" que acompanham o pelotáo numa carroça velha (meu corpo)...
- Quem?
- As irmás Pedritas (pedras no rim) e as gêmeas, as Ernas (2 hérnias de disco).
- É verdade, todo pelotáo é seguido por "Chinas" e além da "especialidade" elas podem servir como enfermeiras...
-Vá chamá-las!
Ao puxar o imortal levei uns sustos, pois toda hora parecia que um carro se aproximava rápido, quase ao meu lado.
Depois é que percebi: era o eco da rebentaçáo batendo na vela.
Parto às 9:40 h, náo há vento e sigo puxando por uma hora. Paro para comer uma laranja e ao olhar para o horizonte fico de cara com as "peças" que essa imensidáo prega aos olhos.
Tu vês algo ao longe, parece uma pessoa, mas depois de avançar muito, percebes que náo passava de uma gaivota. Confundi uma estaca na duna com um farol. Vacas parecem casas, depois carros e finalmente...Vacas!
Sigo em frente e numa duna ao longe vejo vários cachorros descendo e vindo pela praia em minha direçáo. Como náo fico só olhando, deixo o facáo à máo!
Eles retornam para as dunas e vejo uma coisa esquisita ao longe, parece uma neblina branca, mas é um forte vento SW que chega de repente.
- Senhor, estamos sofrendo um ataque! Náo conseguiremos avançar!
- Negativo, aqui a praia é larga e firme, temos espaço para orçar!
- Impossível, senhor!
- Para o pelotáo isso náo existe, sempre teremos um punhal na bota (carta na manga)!
E assim seguimos em frente, bordejando e avançando graças a praia larga e firme.
- Senhor outro ataque de índios, parece que sáo da tribo canídea!
- Calamos as baionetas (facáo)?
- Negativo, acho que vi os chefes deles (pescadores) e náo quero arranjar mais encrencas que já temos.
- Que fazemos?
-Lutem a soco! Acho que estes índios nos confundiram com algum carroçáo de colonos, por causa da lona que cobre a bagagem.
Cara, que inferno. Cerca de quinze cachorros correm a meu ladoenquanto subo e desço a praia. Eles se aproximam dos dois lados e além de velejar tenho que me cuidar para náo ser mordido.
Quando o carro pega velocidade tento atropelá-los, mas os bichos sáo muito rápidos. Aquela zoeira nos meus ouvidos vai me perseguindo, irritando e despertando meu ódio assassino.
Quando o lider deles se aproximou mais perto, acertei um soco que derrubou o corno e este embolou com outro que vinha logo atrás.
- Grande tiro tenente!
O chifrudo voltou a carga e a estes se aliaram outros mais. Para meu azar a praia ficou mole, estreita e o carro atolava.
Aproveitava para jogar areia e conchas nos chifrudos, de preferência nos olhos.
O vento SW cada vez mais forte fez eu cometer um erro. O carro atolou antes de dar o bordo, os chifrudos vieram por cima e na ânsia de acertá-los, deixei a retranca subir e dar a volta com o cabo preso,.
Resultado: quebrou a tala mestra da vela. Logo o pedaço pequeno furou a bainha da tala e ameaçava rasgar a vela.
Fui em frente, os cornos ficaram para trás e como estava atolando direto além do risco de rasgar a vela, resolvi seguir puxando.
Deito o carro para remover a vela. Ela estremece no cháo como um possuído pelo "demo" em terreiro de umbanda.
Dois coices a la pelotáo e o bicho se acalma até que enrolo a corna.
Acontece que com forte vento contra, mar subindo e sem parte firme, seguir em frente era só pra me ferrar.Resolvo almoçar na entrada de um riacho ao abrigo de uma pequena duna e decidir o que fazer.
Para o sul o céu roxo e prenúncio de tempestade. Acampar ali era temerário, mas os pinus ficaram para trás e uma planície de areia e sem dunas era o que tinha para a frente. Apenas tufos de capim colono e salgado.
Que fazer?
Resolvo utilizar o GPS pela primeira vez. Olhando o mapa dele e o que eu tenho calculei que minha única saída seria o farol Albardáo, mas ele estava há cerca de 12 km , eu teria só três horas, arrastando contra o vento e a areia mole, afora o fato que a partir das 13 h o mar sobe cada vez mais.
Que que tu achas cara?
Se a gente aguentar arrastar sem parar chegaremos perto, mas se as forças acabarem vamos morrer na praia, pois se a tempestade nos alcança antes...
Resolvi tentar! Eu náo tenho escolha, é chegar ou chegar!
Começo a marcha desesperada, atolando, me irritando e xingando o vento, o carro e tudo mais que se atravesse no caminho.
Na beira da praia está mole, no meio também, entre as dunas pior. Começo a ficar agoniado e náo adianta simplesmente parar. Se o temporal me pega naquela parte estou ferrado. Sou obrigado a seguir mesmo sabendo que náo vou conseguir. A tempestade chega antes ou minhas forças acabam.
Depois de uma hora vejo o farol na bruma e o céu roxo por trás dele...
Se o vento mais forte e a chuva me alcançarem antes, morrerei na praia. Náo tenho mais forças!
- Pelotáo! Cantem o hino farroupilha...
- Até a pé nós iremos...
- Náo, esse náo
- Como a aurora precursora do farol da Divindade
- Foi o vinte de Setembro, o precursor da Liberdade....
- É isso aí bugrada. Náo desistam!
Pela primeira vez na viagem estou agoniado, pois se náo chegar a tempo vou me ferrar. Faço alongamentos, paro para respirar, estou nas últimas.
Já vejo o farol há duas horas, mas falta mais de hora e meia.
- Alguém jogue um laço e traga esse maldito farol mais pra perto!
No meio de tudo vejo um porco solitário na beira da praia. Pronto, além do extremo cansaço físico estou vendo coisas.
Além disto, vários barcos de pesca sobem a costa a favor do vento, a menos de 1 km da costa. Estáo fazendo arrastáo...
Lembro de Chico Preto, o amigo que ganhei na vila Quinta.
Depois de 3,5 h de caminhada desesperada chego em frente ao farol que está bem para dentro, lá no meio das dunas. Já passa de 18 h, escurece rápido. Deixo o carro e sigo a pé para o farol. Falo com Franklin e outro faroleiro.
Eles dizem que posso ficar, tenho que arrastar o Imortal sobre as dunas moles.
Vejo algo mais próximo da beira e pergunto o que é.
- É um container...
Se for bom, posso ficar lá?
- Como você quiser...
- Vou a pé. a porta está aberta e virada para NW, abriga do SW. Por dentro tem furos na parede SW, mas o vento mudou para SE e dá para encarar.
Arrasto o Imortal até ali, monto a lona e o saco de dormir ao fundo do container e a chuva chega com tudo...
Será que tem um santo me ajudando?
Antes que pense muito, desabo no cháo e durmo. Estou no meu limite físico, quase estafa. Amanhá conserto a tala que quebrou e reaperto uns parafusos.
que dia!
´Náo foi nada, mas andei 30 km contra o vento. Dos 220 km que faltavam de R Grande já fiz 130 km . No total já foram mais de 700 km .
Faltam só 90 km para o Chuí.
A tripulaçáo até já fez uma marchinha de carnaval:
- Hei Chuí, olha eu aqui, olha eu aqui...
Como algo e "apago"!

16-08-07 Quinta
Cara, que dureza! estou estafado.
Desperto cedo e há vento. Caso seja favorável sigo em frente. Todavia é S, bem contra e como choveu direto esta noite além de estar nublado, resolvo ficar e arrumar a tala quebrada além de apertar uns parafusos.
Como já estava previsto, o dia será de descanso da tropa.
Durmo o resto da manhá e a tarde toda foi de chuva. Estivesse nas dunas estaria mal.
Agora sáo 16:11h, o dia se foi, arrumei a tala com silver tape. Aqui no container tem uma espécie de barquinho de fibra com as iniciais FEG (Geologia).
Faltam cerca de 70 km para o Hermenegildo, mas o Henri falou que daqui para a frente há incríveis depósitos de conchas (Conchais) ao longo de 40 km e barrancos de riachos com altura superior a um metro.
Um carro destes ao bater num barranquinho de 20 cm já é uma tragédia a 70 km/h . Vejam o que aconteeu ao meu ao bater na água...
Antes de dormir preparo um kinojo cru com sopa.
- Senhor, está frio...
- Deixem de frescura, o pelotáo é superior ao tempo! Náo precisamos de comida quente!

17-08-07 Sexta
A exemplo de ontem amanhece perto de zero grau centígrados e com forte vento que passou de SE a SW. Arrastar o carro contra o vento e com atoleiro é caixáo. Levanto e congelo rápido. Volto para o saco de dormir.
Aqui no interior cinza deste container tudo o que vejo é um céu polar, meu carro na porta de entrada e o farol preto e branco do Albardáo ao fundo, na dunas.
Escuto o pio dos talhamares, gaivotas e o vento...
- Senhor, estamos entrincheirados aqui já quase pelo segundo dia. Nossas provisóes estáo diminuindo...
Lembrei de Sir Scott, que foi a pé até o pólo sul com mais seis homens. As provisóes foram findando, os mais forte morreram primeiro.
A um dia de chegar no depósito de comida que haviam deixado na ida, foram pegos por violenta tempestade e tiveram que montar acampamento.
A tempestade durou tempo demais e ali eles morreram. Relataram suas últimas horas e a tristeza de terem chegado ao pólo e saber que o Noruegues Amudsen havia estado lá um mes antes, pois ele foi com trenós puxados por cáes e os ingleses de esqui puxando trenós. Eles até levaram uma espécie de snow board, uma invençáo na época, mas que estragaram logo no início.
- Senhor, nós vamos morrer?
- Te pára de frescura! Vocês já enfrentaram coisas piores.
- Lembram da moto em Ushuaia com neve? E aquela outra ao relento nos geisers entre a Bolívia e o Chile com temperatura abaixo de 6 graus negativos.
Nem vou falar das noites de tempestades na Lagoa Mirim nas viagens de windsurf ou de caiaque.
E a pior de todas, naquela tempestade ao atravessarmos de caiaque a Lagoa dos Patos na parte mais larga... Lembram, foram 70 km de travessia, aguentamos a tempestade que iniciou às 23 h até virarmos às 3 h da manhá com ondas de 3 a 4 m . Quase perdemos o caiaque no escuro e só nos salvamos porque havia uma lanterna a prova d'água presa ao pulso e pudemos achar o caiaque que se ia nas ondas. Foram 3 dias sem dormir, tivemos visóes e 24 h depois chegamos do outro lado...
- Quando o inimigo fraqejar, atacaremos!
Tenho que diminuir a comida, pois em trinta dias (incluindo os 15 com o Luigi) gastei só duas das quatro garrafas de granola e só em 4 dias já gastei a metade da terceira.
Agora sáo 13 h, faz muito frio, estou dentro do saco de dormir e o vento contra aumentou, quem sabe amanhá?
O container está todo furado, mas achei uma parte onde náo tem goteiras. O chato é o sopro do vento o tempo todo e eu nem trouxe um radinho desta vez (por falta de espaço). Estou mais ou menos na metade do comprimento da lagoa Mangueira, é uma planície desolada, sem dunas e apenas tufos de capim pioneiro e capim salgado. O pior de tudo é que preciso destas frentes frias se quiser voltar.
Tenho que comprar outra roupa de chuva, pois ficar encharcado nete frio é muito duro.
Perto de 14 h, o Sargento Franklin MR e o cabo Magno MO vieram me buscar. Eles estavam no alto do farol e me viram. Pensaram que eu já tivesse ido.
Dizem para eu dormir em uma da casas do farol. Levo o básico e deixo o carro por ali mesmo.
Almoço com eles uma deliciosa massa e depois chega o vizinho deles, Edmar. Ele traz uma garrafa de cachaça de butiá que bebemos no ato. Aqui eles têm internet e gerador.
Tchê, que frio!
Há 4 casas com telhado em forma de pirâmides, sendo que duas estáo inoperantes.
O farol original foi inaugurado em 1909 e o atual em 1946, tem 44 m de altura (o mais alto da costa Gaúcha) e 42 milhas de alcance. Contando os faroletes, nossa costa tem 19 faróis, sendo que o farol da barra da Lagoa dos Patos foi o primeiro da costa brasileira (construído em 1820), mas este já caiu, (foi substituído pelo atual em 1949) como vários de nossa costa e da Lagoa.
A manutençáo é precária, parece que os governos acham que os faróis náo sáo mais necessários e o fim deles é caírem. O popa participou da recuperaçáo da base do Cristóváo Pereira, mas as coisas náo andam na velocidade necessária.
Inlusive o Franklin está na matéria sobre a recuperaçáo do Cristóváo.

18-08-07 Sábado
Acordo cedo, dou um pulo no container e depois subo no farol. A vista lá de cimav é lindíssima, vejo "meu" container e o carro perdidos nas dunas baixas desta planície desolada, a Lagoa Mangueira, campos e matos de pinos ao norte. Amanhece frio e com vento de SE de novo e náo dá de enfrentar os conchais com vento contra. Parece que iniciam a cerca de 20 km ao sul do farol.
Estou lendo o livro "Areias do Albardáo" de Ulrich Seelizer, Cézar Cardozo e Lauro Barcelos.
Ali explica a formaçáo dos Conchais:
- Há 4 mil anos, havia uma barra na Lagoa Mirim que fechou, formando o banhado do Taim e a Lagoa Mangueira. Hoje, a erosáo da costa próximo ao balneário de Hermenegildo está expondo os depósitos deste antigo canal como testemunho do passado geológico.
Um pouco mais ao norte, em trechos apropriadamente denominados de "concheiros", as ondas cavam grandes quantidades de conchas e moluscos fósseis da plataforma submersa e jogam-na na praia. Junto com pedaços de conchas, sáo depositados dentes fósseis de tubaróes, mamíferos terrestres que viveram há cerca de 15.000 anos, na planície costeira ( mamutes, tigres dente de sabre e preguiças gigantes).
No inverno, as ondas de alta energia e a declividade da praia formam barrancos de 1,20 m de altura na parte alta pouca mobilidade (atoleiros) devido à areia grosseira.
Ou seja, acho que para passar ali terei que arrastar. O Magno falou que a toyota quase capotou numa parte por causa da inclinaçáo e por causa das ondas que estouram ali em cima, agora no inverno.
Descobri que os lobos pesam no máximo 160 kg e que os leóes marinhos chegam aos 300 kg .
Aqueles "ovos" de galinha transparente que achei perto de Quintáo sáo, na verdade, cápsulas com embrióes de moluscos. Tem uns pretos que todos dizem ser de tubaráo, mas na verdade sáo de raias.
Aquele maçaricos pequenos que correm como doidos sáo batuíras, as gaivotas de cabeça preta e perna curta sáo chamadas de Trinta-réis e as chatas, de cabeça preta, gaivotas de capuz.
Estou aqui há 3 dias e pelo jeito vou ficar a quarta. Estou constrangido, náo quero abusar da hospitalidade, mas o pior é que a previsáo para amanhá é de forte chuva e ventos fortes.

19-08-07 Domingo
Tchê, entrou uma frente fria em cima de outra e amanheceu com chuva...
Fiz um discurso inflamado que iria para a peleia de qualquer jeito, mas assim é sacanagem!
Vim aqui na casa deles disposto a partir ou voltar ao container, mas o Franklin mandou eu sentar e "esfriar", pois seguir assim eu náo iria andar nem 10 km .
O pior é que nem roupa de chuva tenho. Ficar molhado com o frio que está fazendo...
O Magno falou que foram registradas ondas de 5 m na Lagoa dos Patos quando ele navegou por lá e o Franklin falou de experiência semelhante.
E eu achando que estava exagerando quando falei que as ondas naquela noite do temporal no caiaque estavam entre 3 a 4 m ... Talvez até tivessem mais!
Estes 90 km nem foram percorridos e já se tornaram o pior dos trechos. Estou entrincheirado há 4 dias e tenho que ficar mais um. O pior é que o vento forte está previsto para esta noite.
Agora sáo 21 h, lá fora sopra o maior pau de vento que assobia nos fios da cerca. A chuva chegou junto e forte.
Por isto o pelotáo continua aquartelado.

20-08-07 Segunda
Cara, amanheceu, a chuva parou. Vou partir...
Tchê, sopra um violento vento de SW que assobia nos fios e faz a areia correr como louca pela planície. O mar está de ressaca, alto e a crista das ondas é jogada para trás pela força do vento. Náo há condiçós de prosseguir.
Que merda! Estou aqui já faz cinco noites, náo tenho como sair náo quero abusar da hospitalidade e esse vento corno náo pára...
Saco, que situaçáo!
Vou até o container olhar o carro e caminho pela praia. A areia está mole, o mar lá em cima, náo há condiçóes sequer para arrastar...
- Senhor, isso aqui está parecendo praga de sogra!
- E das brabas!
Faço uma pesquisa rápida. Tive cerca de vinte sogras mais ou menos estáveis e apenas me extressei com duas... Uma delas já morreu!
Dizem que sogra ruim, quando morre vira bruxa... Eu náo acredito!
Mas esse tempo...
- Senhor, vamos morrer como os exploradores do pólo sul. Ficaram acampados na tempestade até as provisóes acabarem. As nossas já estáo no fim...
- Náo se preocupem demais, pois o nosso pelotáo foi reforçado pelo sargento Franklin e pelo cabo Magno. Náo fosse eles o pelotáo estaria virado num esqueleto como os do navio fantasma!
Eles estáo fortificados no farol Albardáo forneceram abrigo e alimento ao pelotáo.
Brody, os caras sáo legais demais, mas eu tenho até vergonha em dizer que náo posso prosseguir. Falo a mim mesmo qu náo vou mais almoçar com eles, que utilizarei a raçáo de guerra, mas eles náo querem nem saber, dizem que é assim mesmo e para eu náo esquentar.
Almoço com eles de novo, Franklin diz que passou um furacáo extra tropical próximo da costa, por isto este vendaval fortíssimo.
Acho que até já identifiquei a sogra, mas essa náo prcisa morrer para se transformar. Acho que ela exagerou!
Pô, furacáo extra tropical...
A bruxa é poderosa. Por isto que os furacóes têm nome de mulher!
- Só há uma coisa mais poderosa que praga de sogra...
- O que é tenente?
- Praga de "falecida"!
- É verdade tenente. Eu conheço um amigo que a "ex" riscou o carro por 3 vezes. Cada vez que ele repintava ela voltava e riscava.
- Ela tinha ciúmes do carro...Isso é normal?
- Claro, sáo coisas do cromossomo XX.
- Cada uma tem ciúmes de coisas náo vivas, como carro, poster de mulheres, do tempo que o marido passa com os amigos...
- Isso é que nem futebol. Vocês já viram jogador de futebol gostar de ser substituído?
- É tenente, mas é a lei da vida. Se náo estáo jogando direito têm que ir pro banco e aguardar uma nova chance!
- Homem náo é assim, ele sempre parte para outra, a natureza sempre se renova.
- Para as mulheres é mais difícil, o tempo de vida útil é menor...
- Isso está mudando. Agora tem botox, silicone, plástica, etc... Há cada coroa!
- Como diz o brody Rojas: Se Deus fez coisa melhor, guardou só para Ele!
- Chega! O que é que estávamos fazendo?
- Iríamos invadir a banda oriental (Uruguai).

21-08-07 Terça
Amanhece com vento contra, mas já decidi que vou partir. A previsáo é que entre vento favorável amanhá quero estar perto do conchal quando ele chegar.
Meus amigos vêm até o container comigo e parto às 12:15 h. Nem parece que fiquei parado por seis dias.
O pelotáo entra no espírito de guerra assim que chega ao local de combate.
Olho atrás e aceno aos amigos perdidos nas dunas.
Sigo arrastando o Imortal contra o vento. Pelo menos a praia está mais firme do que ontem.
Caminho 1 hora, descanso e sigo.
Almoço ao lado de um enorme tronco tomado de cracas.
Ao longe vejo algo. Parece uma casa, depois um carro e depois uma carroça. Só quando chega mais perto é que percebo que é um cavaleiro e dois cavalos. É seu Antônio, tio de Edmar. Aviso que ele foi para a cidade e Antonio resolve voltar.
Passo por muitas saídas de riachos, pequenos meros, toninhas e peixes voadores mortos... Depois vejo uma estranha rocha toda furada e em algumas partes parece haver ovos. Náo sei o que é.
Às 16:30 resolvo parar antes, pois subindo pelo leito de um riacho há uma mata nativa que abrigará em caso de vento norte ou sul.
- Onde acampar tenente?-
- Utilizem o "windcocômetro"!
- Como assim?
- Onde houver mais bosta de vaca é onde fica mais abrigado do vento!

22-08-07 Quarta
Sáo 8:30 h, faz frio está nublado, mas o vento é favorável.
Arrasto o caiaque por dentro do leito de riacho e depois pelas dunas até a praia.
Velejo por cerca de 7 km e chego aos conchais.
A praia fica inclinada, o mar sobe e passa da parte inclinada e forma lagoas mais para cima. Essa parte plana é fofa e atola.
Tenho que voltar a seguir pela zona de "varrido" (onde fica o vai e vem das ondas). O mar sobe com força e lava o pelotáo. Ainda por cima a areia é muito mole e atolamos direto. Parece praga, o carro atola e em seguida as ondas sobem e as rodas ficam até a metade na areia.
Virou um inferno. Depois de sete dias, quando finalmente tem vento a favor, o mar está de ressaca e chego nos conchais, um atoleiro sem fim.
Arrastar um metro é uma agonia. quando olho para o horizonte e vejo esse "mar" de conchas sem fim começo a ficar sem forças.
Tento seguir pelo meio das dunas. Náo dá. Tento a parte plana, atola igual.
Pela beira do mar, além de atolar o mar sobe com fúria e afunda as rodas.
Pensava que sobre as conchas seria mais irme, mas é um inferno.
Aparece um cara de moto e diz que o trecho de conchais tem 40 km , mas que a pior parte tem uns 15 km . Ele diz que depois de uma bóia o trecho melhora um pouco.
Se arrastar cada metro está me matando, como vou andar 15 km assim?
Bem mais distante, há um mato, o único abrigo que vejo. Ele diz que é o Capáo do Pouso, mas nem olho muito. Náo sei como avançar e só me resta seguir como dá.
Cara, é o pior trecho que já peguei. O pior é que justo com vento favorável e estou num imenso atoleiro. Vejo barrancos enormes na saída de riachos. Tem horas que o mar está batendo nestes barrancos e só tenho a opçáo de seguir por cima. Ando uns poucos metros, paro para descansar e volto a fazer força. Náo tenho opçóes e desanimo.
- soldados náo desistam!-
- Náo dá tenente, estamos "mortos". Teremos que acampar...
- Nem pensar. Se entrar vento sul aí sim é que náo sairemos daqui.
Chego a um barranco que tem a altura do meu peito. Seguindo pela parte plana, a pé, eu náo o vi. Só vi quando cheguei em cima. Um perigo para quem vem de carro.
Se bem que hoje náo passa carro normal por aqui, pois quando chega nos barrancos tem que descer para a praia, bem no depósito de conchas. Isto se as ondas estiverem na descida. Se o cara náo for rápido e passar antes da onda subir ou atolar ali, perde o carro. Talvez dê tempo de tirar a frente do som...
Eu náo posso me entregar. Tentei de tudo...
- Tenente, abra a vela. Talvez diminua a força que temos que fazer para arrastar na parte mole.
- Tem razáo!
Abro a vela e deixo o cabo amarrado. Realmente ajudou e assim fui em frente.
Ora descia para as ondas, ora pela parte plana e fofa, ora perto das dunas.
Às vezes deixava o carro e seguia a pé para verificar onde seria mais firme.
Passando por vários lobos marinhos, filhotes de mero e barrancos sem fim finalmente cheguei na tal bóia cilíndrica. Ela estava atirada na praia, deve ter uns 3m de altura e o mesmo de diâmetro.
Um pouco adiante dela tem um container azul, mas destroçado. Vejo muitas coisas esquisitas jogadas de navio como potes de comida com escritos em japonês, garrafas de uísque, caixas de frutas del Uruguay, etc...
Parece vir um temporal e resolvo parar mais cedo e me garantir de novo.
Subo outro riacho, mas o mato náo é táo bom como ontem. Armo a barraca ao lado de um tufo de junco e sobre juncos que cortei com o facáo.
Fiz um kinojo cru com sopa e ficou salgadérrimo. Resultado: bebi toda a água da garrafa que me serve de travesseiro.
Estou encharcado, pois uma onda me pegou de jeito e encheu as botas.

23-08-07 Quinta
É brincadeira. esperei sete dias e quando entra vento favorável estou no meio do pior lugar que poderia estar. Agora amanhece com uma baita cerraçáo e o vento está fraco e parece contra... Fiz 13 km no primeiro dia e 16 ontem... É soda!
Se entrar vento sul forte de novo, ficarei encalhado no conchal.
- Pelotáo, arrumem suas tralhas e partam.
Parto só às 10:50 h e sigo puxando de novo.
achei que iria melhorar, mas o mar continua alto, tudo mole e sem vento para ajudar...
Quando os depósitos ficam perto da praia, é certo que a praia fica inclinada e tudo fica mais difícil e longe.
O avanço é terrível, dá vontade de parar, mas se parar náo terei abrigo e ninguém me levará para a frente. Tenho que controlar meu desespero e seguir em frente.
Estou estafado, pois o carro atola direto por onde quer que eu vá. Se fosse só caminhar já seria difícil, mas arrastar o corno está acabando comigo.
Estou com tanta raiva que nem é bom ter nada por perto.
Para piorar o SE fica muito forte e resolvo desmontar a vela, pois é mais uma resistência que faz piorar o que já está ruim.
Na hora de desmontar as secçóes do mastro, uma parte "colou" e o corno náo desencaixa de jeito nenhum. Chego a entortar a guia da roda dianteira tentando desencaixar, mas nem mexe.
A única coisa que "desencaixa" sáo os parafusos que ainda me mantinham normal.
Cheguei a ficar rouco de tanto berrar toda sorte de palavróes contra tudo o que está acontecendo.
Isso aqui no veráo deve ser uma auto pista e com vento favorável...
Agora no inverno, seguindo para o sul com frente fria colada uma à outra. Frio, vento contra, riachos que náo existem no veráo e muitos temporais.
Fora isso é o mar que sobe e fica quase sem praia firme...
Agora entra outra frente fria depois de um miserável dia de vento a favor...
- Soldados! cuidado, o tenente Issi está uma fera. Vai sobrar para nós.
- Pelotáo! Esse vento e esse atoleiro sem fim nos levaram ao pior grau de resistência até aqui. O nível de mantimentos e água chegou ao ponto crítico..
- Que fazemos, desistimos?
- Pelo contrário! Agora virou questáo pessoal. Se nosssos inimigos pensam que acabaram conosco estáo muito enganados.
- Nem que a gente avance 5 ou 10 km por dia, mas iremos hastear nossa bandeira no Chuí.
se possível vamos invadir o Uruguay até La Coronilla , próximo da fortaleza de Santa Tereza.
- Senhor, estas sáo do tempo do Império. As fortalezas de Sáo Miguel e Santa Tereza além da Colônia do Sacramento passaram para eles pelos tratados entre Portugal e Espanha...
- Bueno, náo importa. Seguir até o Chuí virou questáo de honra.
- Nunca tivemos uma resistência táo feroz e náo viemos de táo longe para desistir a menos de 50 km do objetivo.
As palavras do tenente emocionaram o pelotáo que decidiu lutar até o fim das suas forças.
- Pelotáo! Calar baionetas. Esqueçam as regras, combatam corpo a corpo e náo tenham piedade do inimigo.
... E diante de tal circunstância o pelotáo seguiu os claríns farroupilhas.
Devorando coxilhas se transformou em distância...
- Soldados. que sirvam nossas façanhas de modelo à toda a terra!
Seguindo adiante econtro um jipe com imensas rodas, alto do cháo e um reboque.
Sáo três caras legais e vêm de Santa Vitória do Palmar. Conhecem meu amigo de muitos anos, o advogado Dilson Mespaque que tanto me ajudou nas três vezes que passei por Santa Vitória.
Essa parte náo tem nada, já estou conformado em passar a noite sem abrigo nas dunas, mas a praia melhorou, ficou plana.
Resolvo consultar o GPS e descubro que estou há 6 km de uma casa que marquei no GPS antes de vir. É que "viajei" antes pelo google earth e marquei os pontos que poderiam me ajudar. Talvez tenha valido a pena.
Resolvo encarar uma caminhada forte antes que escureça, pois parece vir chuva de novo.
Caminho como louco e respirando fundo sigo em frente. Vejo umas casa mais para dentro, mas estáo dentro de um banhado. Além disto o astral náo parece legal está cheio de ossos de baleia. Vi uma vértebra com mais de 5 m .
Volto e sigo caminhando. Escurece rápido. Vejo outra casa, mas náo gosto de me aproximar no escuro.
Procuro abrigo entre pequenos tufos nas dunas quando ouço trovoadas. Mudo de idéia, atravesso um banhado fundo e vou até a casa. Náo tem ninguém, está trancada, mas ali é melhor que as dunas.
Arrasto o carro até ali, armo a barraca na face norte e coloco roupa seca.

Fiz tudo no escuro, felizmente a tempestade chegou depois de tudo pronto.
Graças ao esforço final fiz 20 km hoje. Estou na altura do final da Lagoa Mangueira. Faltam cerca de 36 km até o Chuí.
Essa parte me fez pensar em desistir de fazer o caminho de volta, pois atravessar os conchais no inverno e esse atoleiro uma vez é desconhecimento.
Voltar é insano! Mas o pelotáo nunca foi normal...

24-08-07 Sexta
O exército de Thor (o chifrudo) atacou a noite toda. Raios, relâmpagos e trovoadas acompanhadas de vento, chuva e frio.
O pelotáo em sua trincheira (soldado sarcófago) aguentou bem o ataque.
A chuva forte permaneceu até às 10 h e aliada ao vento contra me fez desistir de seguir hoje. Ainda mais que náo tenho roupa de chuva.
Está muito gelado e a minha hora vai chegar. Ontem o mar estava simplesmente gélido, náo sei como os lobos aguentam aquela temperatura.
Passei o dia aqui ao lado da casa que tem um crânio de tartaruga do tamanho da cabeça de um homem.
Agora sáo 15 h, espero amanhá para poder continuar.
A barra tá pesada, mas agora virou questáo pessoal.
Ou eu chego ao Chuí ou náo me chamo Joáo Cardoso, hehhe

25-08-07 Sábado
Acordo com frio, o vento está batendo na barraca...
sonolento ainda me dou conta que estou protegido do sul. Entáo esse vento é leste.

Às armas cidadáos, formem seus batalhóes
O dia da glória chegou
Marchem, marchem!
Que o sangue impuro do inimigo regue os nossos campos.
Sigo cedo para a praia.
Às 9 horas o que resta do pelotáo está enfileirado para o derradeiro combate.
A bandeira farroupilha hasteada ao lado do imortal.
O inimigo lança um vento gélido como o hálito da morte, mas os homens estáo com uma raiva contida que nada irá deter. Velejamos pela beira do mar que encharca os homens já com as roupas em farrapos. Atolamos várias vezes nas partes com os últimos depósitos de conchas, mas a maior parte está firme e o pelotáo finalmente encontra campo firme para lancear o inimigo hasta la muerte!
- Senhor, riachos profundos!
- Ataquem, náo deixem concha sobre concha!
E mergulhando, corpos enregelados, máos quase com cáimbras e endurecidas pelo ardor do combate, seguindo pela zona de atuaçáo das ondas, em hora e meia estamos passando pelo Hermenegildo. Barrancos altos, mar quase tocando as dunas e detritos de construçóes derrubadas pelo mar.
Sem parar seguimos em frente. A vitória é só questáo de tempo, pois o pelotáo esteve no mais baixo degrau e teve forças para fazer seu próprio caminho.
Mais uma hora, depois de passar um enorme riacho a pé, o pelotáo derruba mais um baluarte e encilha os cavalos na Barra do Chuí.
Os soldados dáo hurras, 800 km no inverno e contra o vento...
Dois casais de uruguaios se aproximam e tiram fotos. Tenho que voltar uma parte para chegar às ruas e ir para o farol onde pretendo deixar o carro e seguir para o Chui e comprar mantimentos e uma roupa de chuva.
Consigo me lavar antes de seguir para o farol. Deixo o carro com Gama no Farol e vou pela estrada. Pego carona na caçamba de uma picape com outros uruguaios e sigo até o Chuí. Compro a roupa de chuva, mantimentos e vou me hospedar no mesmo hotel que parei quando passei de caiaque e bici. Fiz o mesmo ano passado quando vim de moto para agradecer a quem me ajudou naquela viagem.
Falei com Sandra e seu esposo (que ficaram com o reboque e a bici) e fui a uma lan house aqui no Uruguai. Fiquei 6 h escrevendo ontem e fui dormir já passando de meia noite. Hoje amanheceu com frio e chuva (normal) e a lan só abriu de tarde. Agora sáo 20:17 h do dia 26, domingo. Estou há mais de 5h e meia escrevendo.
Amanhá volto a barra e sigo para onde o vento me levar.
Muito obrigado pelos mails de apoio. Desculpem se náo respondo, mas estou podre. Queria dizer que sem eles eu náo teria força para fazer o que fiz. Nem falo dos que ajudaram pelo caminho, pois sem eles o pelotáo náo existiria.
Um grande abraço e até a próxima.
André

Pois é, mandei o relato depois de treze horas em dois dias no computador e sigo sob chuva e frio para o lado brasileiro.
Antes dou uma olhada na previsão meteorológica que revela que soprará um vento sul até sexta feira. Então ficou decidido meu destino. O pelotão volta suas armas para o norte, pois além de ser contra o vento, não tenho documentos do carro e a prefectura (que detonou minha viagem de caiaque no Uruguai) estará me esperando. Além disto, aquela vez eu sai do Uruguai na moita, minha pequena vingança. Ano passado fui a Argentina com minha xtz 125 para agradecer a quem me ajudou em parte do caminho. Dali passei ao Uruguai e tive problemas com um boludo na fronteira. O cara mandou eu voltar, eu recusei e ele disse que iria me prender. Assim mesmo não recuei e fiquei ali até às 3 h da manhã e ele foi embora. Os colegas dele resolveram me deixar passar e segui pelo Uruguai para agradecer a quem me ajudou no trecho em que fui de bicicleta rebocando caiaque e carga (mais de 100 kg ) por 650 km . Aproveitei e segui pela costa para saber onde poderia velejar mais ao sul caso decidisse viajar em windcar. Descobri que seria en La Coronilla , cerca de 25 km ao sul do Chui.
Aquela viagem de moto foi de 4500 km e na fronteira, a mesma onde tenho de passar agora, de raiva acelerei quando os caras da aduana saíram para ver quem se aproximava. Estou com aquela porcariada de papéis burocráticos deles jogados em uma gaveta.
Atravessei a ponte e adiós!
Então é melhor não mexer no vespeiro!
Vou dormir e um frio de rachar acompanhado de chuva se faz sentir.

27-08-07 Segunda
Tchê, cama com dois cobertores grossos e eu dormindo que nem no sarcófago. Cabeça tapada e encolhido sob as cobertas. A chuva é tão forte que dá de ouvir o barulho da água correndo nas calhas. Ligo a tv, faz 4ºC.
Tomo um banho quente e sigo meu destino.
Vou para a rodoviária e o ônibus parte só as 10:30 h. Aproveito para tomar um delicioso café com leite e volto para a rodoviária. Estou sentado lá no fim e duas pombas entram no prédio e vem caminhando até o lado do meu pé. Fico maravilhado com a calma e a tranquilidade do bichinho. Tiro uma foto da pomba e vou para o ônibus.
Que delícia! Ali dentro está quentinho e vou me deliciando com o calor enquanto vejo a paisagem. Tudo que é bom dura pouco!
Logo chegamos perto do farol. Desembarco no vento gelado e sigo para o farol. Pelo menos parou de chover.
Encontro o sub Gama e o sargento Pepolim, super legal e amigo de Magno e Franklin. Eles me oferecem ajuda e Pepolim chega a me oferecer dois óculos para proteger os olhos. Agradeço de coração, mas desde o acidente naquela saida de riacho-rio não uso mais óculos de proteção.
Arrumo as coisas, está tudo certo. Vento sul até sexta.
Agora chegou a minha hora.
Sigo a estradinha de terra até o asfalto. Ali é só dobrar à direita e seguir para a praia...
O pelotão está com o coração apertado. A sensação é de derrota, como se algo estivesse faltando oprime o peito cheio de cicatrizes de um pelotão que não sabe o que é paz!
- Soldado!
- Sim tenente!
- Aquele acordo ou tratado foi entre que países?
- Portugal e Espanha, senhor!
- A República do Rio Grande participou dele?
- Não, senhor!
- Então porque não vamos a La Coronilla ?
- Porque sopra vento sul, porque por várias vezes atravessamos a fronteira sem permissão, porque a prefectura...
- Não me fale destes boludos!
- Dizem que nem bicicleta pode descer para a praia...
- Com essa vela de mais de cinco metros de altura somos visíveis como um holofote em corredor escuro...
- Então você quer dizer que viajamos 800 km no pior inverno dos últimos 44 anos, contra o vento, com cicatrizes que não curaram ainda, atoleiros, acidentes, lutas sem fim... Para simplesmente virarem as costas e desistirem sem tentar?
Silêncio...
- Soldados, vocês deveriam se orgulhar, vocês foram forjados no ardor das batalhas, no orgulho de ser do sul, nos costumes e na tradição.
- Eu não acredito que ninguém aqui do pelotão esteja satisfeito consigo mesmo.
- Nós temos origem em um povo que sabe dizer não e aprende desde cedo a fazer seu próprio caminho, mesmo que pareça não ter fim ou mesmo que alguns tombem no campo de batalha.
- O que sobra disto tudo não é um ou outro soldado, mas o legado que deixamos para as outras gerações.
- Todos sabemos que um Gaúcho não se dobra em combate e que se ele cair outros cem tomarão seu lugar.
- Calar baionetas, nós vamos para o Uruguai ou onde quer que seja!
- O pelotão inteiro explode de alegria e os hurras são ouvidos até mesmo para os lados da banda oriental.
E assim o pelotão dobra para a esquerda e segue para a fronteira.
Já chegando na ponte, peço a um senhor tirar uma foto. Para minha agradável surpresa sua linda filha se aproxima para tirar a foto ao lado.
Nem entrei no Uruguai e já deram um jeito de machucar meu coração...
O primeiro prédio ao passar a ponte é o da Prefectura Naval Nacional, mas devido aos gritos de hurras do pelotão todos estão aquartelados e fingem não ver.
Resoluto, o pelotão se dirige para a aduana e fala com o simpático sr Gerardo!
Ele nem pede minha identidade...
- Puedo seguir por el pavimiento?
- Si!
- Si no vuelvo hoy, no hay problema?
- No!
- Puedo sacar una foto de ud.?
- Si!
Não é por nada, mas se os boludos me pararem adiante tenho a foto com quem me deixou passar.
Vou em frente, nem olho para trás!
Quando estou longe o suficiente dou um salto no ar.
Lembrei da cena final do filme Expresso da Meia noite, quando um cara ficou preso em uma prisão Turca por muitos anos. Quase ficou louco, mas um dia, sem querer, matou o guarda que mais lhe torturava.
Desesperado, colocou as roupas do Guarda e foi em direção ao portão de saída da prisão. As portas foram se abrindo até que ficou do lado de fora daquela terrível prisão. Quando estava longe o suficiente, ele deu um salto no ar.
O pelotão está radiante, não cabe em si de tanta alegria.
- Senhor, agora é só seguir contra o vento pelo asfalto e voltar de La Coronilla velejando...
- Negativo! Nós vamos pela praia!
- Mas senhor...
- Isto é uma ordem soldado!
Entro por ruas, mas o fim delas é nas dunas altas. Pergunto aos moradores se hay paso!
- Es mejor que te vayas cerca de la prefectura...
Dou um largo sorriso e vou para as dunas altas.
Com um pouco de dificuldade chego a praia e sigo para o sul.
Para minha surpresa o vento sul pega um pouco de través. Acho que dá de encarar na vela.
- Mas senhor! Vai estragar nosso disfarce, vamos ser vistos com esta vela montada...
- Eles que corram atrás!
Monto a vela, o peito parece pequeno para tanta felicidade. Eu tenho a chance de poder lutar para realizar o objetivo então vou entrar nessa com tudo.
Meus pés e o cabo de puxar estão sujos de óleo.
- Tenente, isso sim é que é jogo sujo!
São 13 h, não quero saber nem de comer nem de beber água até chegar a La Coronilla !
Vou partes a pano, partes no estilo "patinete" e partes puxando, pois o vento está diminuindo rapidamente.
IUUUUUUUUUUUHHHHHHHHHHHUUUUUUUUUUUUUU!
Como é bom jogar a vida ao destino e ter estes momentos máximos de alegria, de liberdade e poder ao mesmo tempo. São momentos que tu mesmo constrói e que nada consegue apagar depois. São tão intensos que ficam para sempre. Um destes foi quando entrei entre Paraguai e Argentina, depois de vir remando de Brasília por dois meses e seguir assim depois de tantos percalços.
São vitórias alcançadas através da ajuda de familiares, amigos e pessoas maravilhosas que vou conhecendo nas trilhas da vida.
A vocês eu dedico estas pequenas vitórias, pois elas não são apenas vitórias, são realizações dos sonhos de muitos que não tem a felicidade ou oportunidade de fazer o que estou fazendo e a alegria que sentem por mim é tão ou mais intensa do que a minha própria.
É por isto que nunca desisto, acho que ajudo a realizar pequenos sonhos dos outros além dos meus.
A costa aqui é de dunas altas cobertas de matos de acácias e se precisar é fácil de achar lugar ali no meio para passar a noite.
Vejo leões, lobos, papa-terras gigantes e até uma tartaruga marinha que não havia visto até então, todos mortos.
Há muitas gaivotas e quero-queros.
Depois se aproxima uma carroça com três garotos simpáticos (Franklim, Brian e Arturo). O mar começa a subir e a praia fica pequena. De moto eu passei aqui de noite e não vi muitas coisas que vejo agora.
Adiante eu vejo a construção onde desci com a moto para a praia, é La Coronilla , o destino perseguido arduamente contra o vento por mais de 800 km ...
Já não tem mais vento, mas as pernas estão no rítmo do coração e nem precisam de alongamentos.
Agora o pelotão é coração!
Adiante vejo um filhote de baleia. Está mais inteiro do que aquele que encontrei na barra, em São José do Norte.
Mais um pouco e chego na construção. O mar está quase batendo nos barrancos e a cor da argila ali é verde...
Algumas construções o mar derrubou e outras estão condenadas... Os caras constroem nas dunas, cercam a beira do mar e depois o mar retoma...
Às 17 h chego ali, naquela parte as ondas estão furiosas e tiro umas fotos no trapiche de concreto onde as ondas batem. Coloco o Imortal ali e tiro boas fotos.
- Senhor conseguimos...
- Negativo! Vamos em frente!
E assim seguimos em frente até que chegamos a saída de um rio. O sol aparece e tudo fica mais lindo. Do outro lado ainda tem uns dois km de praia que terminam em uns rochedos, mas para passar há uma ponte pênsil.
Ela não tem largura suficiente para o Imortal. Tiro fotos dali e dou por encerrada esta etapa da viagem.
- Senhor, este cerro logo depois é onde está localizada a fortaleza de Santa Tereza. Vamos retomá-la?
- Não. Como posso pelear com um povo tão amável e hospitaleiro?
- Vocês viram aqueles garotos?
- O Uruguay não é o que as autoridades representam. Eles são nossos amigos.
- Que fiquem as fortalezas e Colônia do Sacramento como um presente dos Riograndenses a esse povo amigo.
- Vamos para casa!
Encontro outro garoto de uns dez anos (Sebastian) que corre com seu cavalo pela beira do mar.
Assim como veio, o pelotão se volta para o norte e segue em frente.
- Onde vamos dormir?
- Onde escurecer, como sempre!
Por volta de 18 h subo uma estradinha pelo meio das dunas e enfio carro e barraca entre uma brecha no mato de acácias.
Arrumo tudo e como minha granola assistindo ao espetacular surgimento da lua cheia no mar.
Depois um espetacular reflexo nas águas do Atlântico servem como palco de fundo ao dia mais importante da jornada.

28-08-07 Terça
São 8:36 h, escrevo sentado ao lado da barraca e hay viento, sólo no sé de donde!
- Senhor, como se sente depois de tudo?
- Em paz comigo mesmo!
- A questão é: por quanto tempo?
Fez um frio do cão esta noite, mas já estamos acostumados.
Arrumo tudo e às 10 horas o pelotão está perfilado na praia.
O vento é terral e o avanço é a pano.
O que levei 4 h ontem fiz em hora e meia hoje. Passo do ponto onde saí na praia e sigo até os molhes, só que do lado uruguaio. Encilho o Imortal nas pedras e depois sigo para La Coronilla.
Desmonto a vela, atravesso as dunas e encontro a menina de ontem (suspiro profundo). Passo pela aduana e não resisto:
Tiro uma foto do Imortal bem na frente do prédio da prefectura, qui qui ri qui qui!
- Senhor qual é o placar?
- Pelotão (duas de bike, duas de moto e uma de windcar) 5 X 1 Prefectura
Passo pelo farol para agradecer. Iria seguir em frente, mas descubro que aqui na barra do Chuí tem net, mas só abre às 15 h. Resolvo ficar por aqui, pois o pelotão pertence ao cromossomo XY, ou seja, não pode ficar sozinho numa ilha deserta com um mulherão, ele tem que contar pros outros, hehehehheh

Amanhã de manhã eu sigo para o norte, mas acho que já fizemos história.
Um grande abraço



Chuí a Rio Grande

29-08-07 quarta-feira
Barra do Chuí
Amanheceu com um frio tremendo. Uma geladeira!
O vento é um SE quase E, vento de través. Despeço-me de Eduardo e deixo um abraço a Cris e Anderson e sigo puxando para a praia. Paro para montar a vela onde Darlan e Preta me ajudaram quando cheguei.
O plano é chegar até a parte ruim dos conchais e dali seguir no dia seguinte.
Parto só às 10:40 h e às 11 h, já estou passando pelo Hermenegildo. O riacho grande que cruzei na ida se transformou num riachinho de nada. Antes tive que descer do carrinho para cruzar o barranco e mais de trinta metros de largura. Agora... Nothing!
A velocidade é muito boa e uma hora depois do Hermenegildo estou passando pelo local onde fiquei dois dias, por causa da tempestade. Sei que logo adiante começarão os Concheiros, mas não esperava avançar com tal velocidade. Já estou encharcado, pois quando passo nas saídas de riacho a velocidade é tanta que a água sobe pelo espaço entre a calça impermeável e as botas de borracha..
Passam um jipe buzinando muito e uma toyota.
As mãos estão tão congeladas e a dor nas unhas é quase insuportável, quase que arranca umas lágrimas de “saudades do Rio Grande”.
Estou muito veloz, começam os conchais e mesmo com o forte vento o carro vai perdendo velocidade e mais adiante pára.
Não acredito! E eu nem cheguei à pior parte ainda. Achei que na parte menos fofa daria para passar.
- Tenente, que fazemos?
- Arrastem, isso já fazia parte do nosso plano!
Sigo em frente puxando pelos areais, pelo menos descongelo um pouco e penso melhor no que fazer.
Tento seguir pela parte plana, revejo as marcas por onde passei na vinda. Algumas partes ali ficam firmes e avanço no estilo “patinete”, em pé, na longarina do eixo dianteiro.
- Tenente. Isso aqui vai nos matar no cansaço de novo...
- Negativo! Lembram que na parte inclinada, uns dois passos para dentro havia piso firme?
- Sim, só que fica dentro d´água. Como vamos seguir assim?
- Este vento está quase de través, é muito forte e o mar está um pouco mais baixo que na vinda. Acho que podemos tentar.
Como não tinha nada a perder, resolvi seguir pela parte inclinada, um pouco para baixo. O mar, percebendo a manobra ousada dos tauras, avançou enfurecido.
Tomei um banho que passou por cima dos joelhos e lavou o carrinho e a carga.
Na volta da água, as rodas atolavam na areia e eu tinha que pular e desatolar rápido, pois as ondas atacavam sem dó.
Muitas vezes, antes que conseguisse desatolar o carro já estava submerso de novo e, no desespero, começava a praguejar contra o inimigo e xingava o carro junto.
-Senhor, temos que subir.
- Morreremos afogados e congelados, não sei o que vem primeiro...
- Negativo, mantenham suas posições.
- Eles nos detonaram antes porque não conhecíamos o inimigo. Agora essa peleia será decisiva para o futuro do pelotão e só avançaremos se combatermos o inimigo dentro do mar.
- Calar baionetas será luta corpo a corpo!
Apesar de sermos fustigados pelas malditas, percebi que o carro avançava com a força do vento, mesmo atingidos com forças pelas ondas. Se subisse um passo para cima atolava, então só restava manter a posição de combate, pois lá em cima era muito pior.
Finalmente cheguei à bóia encalhada na praia e que demarcava onde iniciava o pior trecho. Ali perto dela foi onde passei a 2ª noite na vinda. Em poucas horas já estava “matando” 3 dias da viagem de ida.
- Preparem-se homens, agora é que vem o pior!
- O que esse cara tá pensando que somos?
- Alguém aqui é 4X4 ou tem guincho?
- Calem-se e concentrem-se no inimigo!
Agora eu sei por que os lobos estão arrepiando. A água do mar simplesmente congela.
O vento forte judia da tripulação e os dedos da mão já não servem para muito, tenho que firmar o cabo da retranca enroscando na mão. Subo na longarina e quando sinto que o carro vai parar devido à força das ondas, desço rápido e empurro com a ajuda da vela para que não encalhe. Apesar da fúria das ondas, estou perdendo o medo do inimigo e combatendo melhor no terreno delas.
- É só isso que tu consegue? Tu não és tudo o que pensas e agora vais sentir a força do pelotão.
E o pelotão canta:
Mas não basta pra ser livre
Ser forte aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude acaba por ser escravo
Mostremos valor constância nesta ímpia e justa guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda a terra....

E vou avançando a pano no trecho onde achei que levaria um dia inteiro para passar.
- Senhor, o inimigo está perdendo as forças e parece que vamos vencer essa batalha decisiva...
- É verdade. Não esmoreçam e cantem de novo.
Por mais terras que eu percorra, não permitas Deus que eu morra
Sem que leve por divisa este “V” que simboliza a vitória que virá...
E assim, cerca de 16 h, o pelotão consegue atravessar os conchais pela segunda vez no inverno.
A vitória é tão retumbante que gaivotas gritam, lobos aplaudem com suas nadadeiras e o mar recua com a desculpa esfarrapada de que é a maré...
Livre dos conchais, avançamos vertiginosamente pela praia mais plana e firme.
Mais 44 min chego ao farol do Albardão. O trecho que me custou 10 dias, (incluindo os 7 parados) agora foi feito em seis horas....
O Sargento Franklin e Magno viram a vela avançando pela praia. Franklin veio ajudar a puxar o carro até o farol.
Depois eles ligam o gerador e tomo um banho quente, pois estou muito congelado. Valeu o sacrifício. Estou radiante e não acredito que fiz em apenas seis horas o que me custou 10 dias. Simplesmente fantástico!
Magno faz uma janta deliciosa e acrescida de um café quente, volto ao normal. Os dedos estavam enrugados e roxos.
Agora eu os considero mais que amigos, são meus “brodys”. Aquelas pessoas especiais onde a amizade e o respeito se tornam superiores ao tempo.

30-08-07 quinta-feira
Acordo cedo, o vento está fraco e parece contra. Chega Edmar e vamos tomar café juntos. Tiro uma foto com Franklin e Magno e depois seguimos, os três, para a praia.
Ali monto a vela (11 h), mas o vento, um través meio contra, está muito fraco e tenho que partir velejando no estilo patinete, em pé, de frente para a proa.
Amarrei o cabo na braçadeira e deixo o Imortal avançar para o norte. Gosto de andar assim, vejo melhor por onde vou passar. É perigoso se pegar velocidade, mas o vento está fraco.
Logo adiante vejo um dos porcos que Edmar cria soltos na beira da praia comendo um bagre morto... Ele sai correndo e logo adiante paro para fotografar o primeiro pingüim vivo que vejo nesta viagem. Ele está sujo de óleo e nem parece temer minha presença enquanto o fotografo.
Sigo em frente e mais adiante estou passando pelo Farol Verga onde dormi no interior.
O trecho de um dia fiz em 3 h com vento fraco....
O vento pára total e assim aproveito para almoçar.
Depois cruzo com um caminhão de Jaguaruna. Ali tem dez pescadores puxando uma rede de cerca de 300 braças, dois na caçamba ajeitando a rede que colocam ao lado de uma enorme canoa que deve ter sido utilizada para colocar a rede no mar. O motorista diz que são da barra do Camacho, perto de Laguna.
Mais adiante tem outro caminhão, este é frigorífico e mais três pescadores recolhem outro peixe.
Uma camionete se aproxima e faz sinais de luzes, é Candinho, da FURG, o mesmo que encontrei perto do Farol Bojuru. Que alegria, Candinho é muito legal e pede para um dos passageiros tirar uma foto de nós dois. Ele está levando o pessoal da FURG ao Chuí. Avisa para cuidar com as saídas de riacho e segue viagem.
O vento aumenta, mas permaneço ali em pé, mesmo com velocidade. Resultado: ao desviar de uma onda, pisei muito forte na guia da roda. O carro desvia rápido para a esquerda e meu corpo segue para a direita. Vou cair e ser atropelado pelo corno. Agarro-me no mastro com força e o demônio enfurecido inclina e capota sobre mim na areia dura.
- Tombo ridículo tenente.
- Paga dez!
- Sim senhor!
Menos mal que não tem ninguém olhando...
Volto a viajar ali, mas logo adiante o vento aumenta muito, o carro pega velocidade demais e sinto que vou me ralar, pois a vela está amarrada e ali na longarina, com velocidade, é o pior lugar para estar.
De repente uma das rodas traseiras está no ar e uma lufada mais forte o faz capotar de novo e bato forte com o ombro na areia dura.
Acho que deslocou algo na clavícula, mas o vexame de outro tombo ridículo e o vento forte me fazem voltar ao cockpit e velejar normal, sentado.
Adiante vejo outro filhote de baleia na praia, mas esse está novo e recém deve ter morrido.
Bato fotos do bichinho e sigo em frente até chegar ao farol Sarita. São 16:44 h, logo irá anoitecer. Animado com o vento mais forte de través meio contra, resolvo seguir em frente e ver o que faço mais adiante.
O tempo passa, está frio e escurece.
- Tenente, que fazemos... Está escuro!
- Sigam velejando!
- Mas poderemos passar sobre algum bagre e furar os pneus...
- Vamos arriscar!
E assim me vou, confiante que com este vento poderia fazer os 130 km do farol Albardão ao Cassino em um único dia; pena que saí só às 11 h e os dias no inverno são muito curtos.
Acontece que nunca velejei no escuro total e ainda com saídas perigosas de riachos...
A escuridão e a praia lisa não me deixam ter noção de velocidade. Às vezes, o carro parece ter parado, coloco os dedos no chão para saber se estamos andando.
- Senhor, fogo na roda dianteira!
- Como assim?
- Atrás da roda dianteira tem algo que parece fogo...
- Seu bugre. Isso aí é porque o mar está fosforescente. Isso é causado por um plâncton...
Vou seguindo, congelando e passando por riachos no escuro e sem ter onde dormir. Agora tenho que chegar ao Cassino e achar a varanda de uma casa.
Já vejo as luzes e o reflexo delas me orienta ao refletir na zona molhada da praia. Assim consigo desviar dos bagres mortos, gaivotas pousadas e alguns lobos que gritam assustados quando passo.
Devo estar a uns 30 km , mas percebo que as luzes e o mar não seguem uma mesma linha. A costa faz uma curva e adiante pegarei o vento frontalmente.
Estou com frio, o tempo passa. Estou com sono e um dos marujos grita:
- Navio fantasma à frente.
- Seremos atacados pelo “holandês voador”!
- Salve-se quem puder!
- Seus boiolas, aquilo lá é um navio fantasma sim, mas é o navio Altair que naufragou há 30 anos...
- E como vamos saber se não morreu alguém?
- Pode ter almas penadas...
- Vocês ouviriam o som gélido dos mortos chamando...
- Sigam em frente!
Confesso que é assustador ver os destroços ali no escuro contra as luzes do Cassino, mas o pelotão já esteve no mundo dos mortos e voltou. Aprendeu que tudo tem sua hora e por enquanto temos uma missão. Quando chegar a hora chegou.
Passo do navio, mas os joelhos tremem tanto de frio ao passar em riachos no escuro que tenho que apóia-los contra o mastro para acabar com a frescura.
Ando mais uma hora no contra vento e finalmente o Imortal pára. Não tem como bordejar no escuro, não fosse o reflexo das luzes na parte molhada, não veria nada.
Decido puxar a pé e vou assim por meia hora até chegar a um riacho.
Olho para o lado e parece haver um mato. As luzes parecem estar entre 10 a 15 km adiante.
Caminhando contra o vento, sem lenço nem documento eu vou... Ralar-me!
São mais de 20:30 h, estou molhado, velejando há oito horas e meia. Vento contra, frio e chovendo fino... Posso levar de duas a cinco horas até as luzes.
Resolvo investigar se ali ao lado há mesmo um mato e acampar.
Sheet! Eram dunas e atrás delas havia uma casinha de pescadores. Ilumino para lá e vejo uma luz fraca. Tem gente. Resolvo olhar em volta. Não têm mato, só dunas.
Um dos pescadores vem até mim com um forcado desses de feno.
Explico a situação, eles pensavam que eu estava roubando sua rede ali em frente...
É seu Oneide, um senhor forte, atarracado e muito gente boa.
Ele diz que eu posso dormir na parte de fora da casa onde tem um puxado. Assim fico livre da chuva, não preciso armar a barraca e posso sair mais cedo amanhã.
Vou olhar a casa, mas há barro e escorrego na lama. Tenho que me apoiar na perna direita onde houve uma grande fratura no acidente. A dor é insuportável e rolo na lama.
Merda! Três tombos no mesmo dia...
Já não bastava ter deslocado o ombro e agora uma dor do cão na perna “renga”.
Fico ali deitado, mas tenho que levantar, pois seu Oneide e Antônio ficaram preocupados.
Aos poucos a dor foi passando e voltei à praia para buscar o Imortal.
Estendi o plástico no chão, na parte detrás da casa, na rua, coloquei roupas secas, comi granola e fui dormir.
Ligo o GPS e descubro que velejei 120 km ... Dois dias para retornar o que levei 13 para ir (Rio Grande ao Chuí), com paradas e tudo.
A chuva aperta, mas estou bem abrigado e livre do vento gelado. Como eu sei que aqui tem muitas jararacas e elas vêm atrás de ratos fico numas tipo assim... Que bah!
- Te pára de frescura vivente!
- Esse bicho não se mexe com o frio, precisa de calor pra se movimentar...
- E se vier atrás de calor aqui no saco de dormir na rua?

31-08-07 sexta-feira
Amanhece com NE médio e com muita chuva fina e fria.
Depois dá uma estiada e vou ajudá-los a recolher a rede ali em frente depois de tomar um delicioso café quente acompanhado de filé de bagre que eles fritaram ontem a noite, uma delícia.
A rede vem com muitos bagres, algumas tainhas e papa-terra. Eles tiram os venenosos esporões com alicate e depois fazem filés. Antônio ajuda Oneide que é seu amigo e pescador.
Oneide explica que a tainha é o único peixe que não come outro peixe e é o único que tem moela.
Diz que a raia menstrua como o cromossomo XX...
- Tenente. Sabe o que um cromossomo disse para o outro?
-????????
- Cromossomos felizes!
- Seu apagadão irritante!
- Paga dez pela piadinha!

Seu Antônio conheceu Henri e seu pai, o Pierre.
O pai de Henri Tem uma estória incrível!
Ele morava no sul da França, próximo aos Pirineus, fronteira com a Espanha.
A Alemanha de Hitler invadia a França e certo dia Pierre saiu para esquiar pelas montanhas. Ele tinha o objetivo de chegar a Inglaterra e lutar contra os invasores, mas foi preso pelos soldados de Franco e foi parar em um campo de concentração.
Ali permaneceu por meses até ser trocado com os ingleses por armas.
Na Inglaterra queria lutar, mas como era aviador experiente, foi induzido a ensinar o pessoal da RAF. Ali permaneceu até o fim da guerra e depois, a trabalho, foi para o Marrocos, EUA, Canadá, Brasil (onde conheceu dona Gesine, mãe de Henri) e dali para o Chile, onde Henri e seu irmão nasceram.
Como seu Pierre não estivesse bem de saúde nas três vezes anteriores, perguntei que achava dele.
Antônio gostava muito dele e falou de Henri também.
Almoço com eles e eles decidem ir embora. Dizem que posso ficar se quiser.
A casa fica aberta, assim o pessoal usa e não depreda, se bem que sempre tem um boludo que estraga.
Eles se vão em uma rural com reboque e em uma moto igualmente com reboque.
Agora são 13:26, o tempo está feio, venta forte e contra, mas acho que me voy.
Tenho que deixar a casa fechada e amarrada com uma cordinha na frente.
Estou pensando em deixar o carrinho na sede da FURG e dali seguir para a casa do Henri, pois não avançarei muito assim.
- Senhor, vamos voltar ao Henri com aquelas meias “cobertores de zorrilho”?
- Não! Cheirem elas agora...
- Estão melhores, como conseguiu isto?
- Esfreguei-as em uma carcaça podre de leão marinho, na gordura em decomposição de um filhote de baleia e pisoteei sobre um bolo de peixes-porcos...
- Só isso?
- Claro que não!
- Depois deixei dois dias na água do mar e deixei-as penduradas sobre uma fogueira.
- Reparou na essência de peixe defumado?
- É verdade. Agora até dá de visitar o Henri novamente...

Arrumo tudo, fecho a casinha e sigo para a praia.
A chuva apertou, estou distraído arrumando os cabos e uma toyota chega quase a meu lado.
Que alegria! É o Henri e Maíra. Foi uma festa só. Ele está de folga e resolveu passear para o sul...
Tivesse eu demorado mais uns 10 min na casa e nenhum teria visto o outro. Ele revela que seu pai faleceu uma semana depois que eu parti (dia dos pais). Fiquei muito triste, pois eu o admirava muito por sua incrível estória e por saber que era muito boa gente como disse Antônio pouco antes.
Henri me seguiu um pouco e resolveu ir um pouco para o sul, pois meu avanço contra o forte NE não seria dos mais rápidos. Menos mal que aqui a praia é larga e firme, permitindo a orça.
Além da orça, tenho que desviar da praia repleta de bagres e seus esporões danosos a qualquer pneu, inclusive de carros.
Uma hora depois (16:30 h) estou passando pela estátua de Iemanjá e seguindo em frente para os molhes do Cassino. Quero encerrar esta etapa.
Fiz estes 10 km em uma hora, fosse a pé, levaria cerca de 3 h contra o vento.
Agora o vento ficou mais fraco e o avanço mais lento. Henri voltou e filma um pouco. Depois vai seguindo, subindo e descendo as dunas com a toyota. Quem deveria estar filmando era eu, não acredito como ele consegue e subir as altas dunas. A toyota chegou a “acavalar” em uma delas e ficou com as rodas dianteiras no ar, um espetáculo.
Faltando dois km o vento diminuiu e quase parou. Segui puxando e às 17:30 h “encilhei o Imortal nos molhes. Grande emoção!
Lavo ao carro e a mim mesmo no mar, pois estou com olhos e roupas entupidos de areia.
Chega um amigo de Henri, é Miguel, muito alegre e divertido. Ele trabalha na FURG como laboratorista, já fez muitas viagens no Comandante Varella, o barco da FURG.
Tiramos muitas fotos ali, nos trilhos dos moles e ao lado das vagonetas.
Depois decido seguir os 4 km até o grupamento naval do sul velejando pelo asfalto...
Eu tinha que tirar essa cisma!
Sou escoltado pela toyota de Henri e pelo carro do Miguel. Cerca de 30 min depois chegamos ao grupamento já no escuro e deixamos o carro ali e sigo com Henri e Maíra a sua casa.
Depois fomos jantar com Miguel e sua esposa, Genomar. Foi muito divertido, Miguel me presenteou com meias novas para substituir as “meias-zorrilho” que o pelotão utilizava. Ri muito, fiquei vermelho mas a brincadeira foi excelente. Adorei.
O Henri é cercado de ótimos amigos, como o Fred que fraturou a perna em acidente de trabalho e que visitei na vinda. Ele e sua família são gente finíssima e foi muito bom tê-lo conhecido.
O Willy é do Iatch é outro a quem Henri distribui os mails com as estórias do “pelotão”. É legal saber que o pessoal gosta e leva para o lado da brincadeira.

1º -09-07 Domingo
Hoje revi a dona Gesine, ela é dessas pessoas queridas que dá vontade de dar um abraço gostoso. Ela é muito querida e lembra minha mãe.
Ela conta de sua juventude e fala do curso que fez. Acreditem!
Ela não tem carteira de motorista, mas tem brevê de avião... Deve ter sido uma das primeiras mulheres gaúchas a terem brevê. Almoçamos no galeto Caxias, onde antes era o pátio de conserto das máquinas ferroviárias, lugar muito show.
Fomos ao Yatch, revi o simpaticíssimo Willy, o João e fomos passear no Talhamar. Fomos a I. dos Marinheiros, centro de R Grande, 5} Distrito Naval, Pescal (onde em frente morava a vó, na João Pessoa, o Regatas e o Porto Novo, onde estão montando a plataforma petrolífera P53
Depois fomos a festa de aniversário de 80 anos do pai de Julieta, seu Andalécio. Que pessoal mais simpático. Dona Florinda, Tadeu, a irmã de Julieta, Taís e amigos.
Chegamos perto de 23h e as 24 iniciei a escrever. São 6h da manhã e estou terminando. Daqui a pouco sigo viagem. Um grande abraço do amigo
André

Trecho R Grande - Chuy
É isso aí amigos, foi mais feio que peleia de foice no escuro, mas a custa de grande esforço e muita raiva o pelotáo chegou há pouco ao Uruguay, de onde agora vos escrevo. Desculpem a acentuaçáo, mas o teclado é em espanhol e aí complica o vosso "catador de milho".
Cheguei aqui completamente encharcado e com frio de rachar, mas o inimigo abriu o flanco e o pelotáo aproveitou a oportunidade e se jogou pro tudo ou nada e a vitória, antes tarde do que nunca, premiou todo o sofrimento que foram os últimos noventa quilômetros de uma viagem que já chega aos 800 km .
Pensei em desistir, mas o que eu me arrebentei nos tais de "conchais" me deu tanta raiva que agora vou dar marcha-a-ré no caminháo e passar por cima dele de novo, só de raiva!
A máe foi pro hospital, mas me informaram que ela recebe alta hoje e que está bem, por isto o pelotáo volta pra essa guerra sem fim.
Um grande abraço a todos e espero que viajem e se divirtam mais um pouco neste trecho que virou passado.

Rio Grande,13-08-07 Segunda
Eu fiquei táo desesperado para escrever antes de partir que acabei resumindo um pouco da acolhida maravilhosa que recebi de Henri, seus familiares e os de Julieta, sua esposa.
Foi um fim de semana ultra especial, assim como foram os dias que passei com eles durante a viagem do caiaque e da viagem para a Argentina de moto, ano passado.
Muito obrigado amigos!
O Henri ainda foi buscar a câmara de ar no borracheiro e me deixou na Av Atlântica, no centro do Cassino. Ali montei a bagagem e fui entre os eucaliptos até uma lan house mandar as fotos que náo tive tempo de mandar, pois escrevi até às cinco da matina e levantei às sete, pois o coitado do Henri tinha que trabalhar e se atrasou por minha causa.
Fiquei mandando fotos até às 12 h e depois fui para a praia. A lan house ficava exatamente na esquina da rua Porto Alegre, a mesma onde havia o "fantasminha", a casinha de madeira onde sempre passávamos as férias de veráo em nossa infância. Náo havia luz, o lampiáo era de querosene, o leiteiro trazia o leite em garrafas coloridas penduradas na sela... Coisas de High Lander!
Duas pessoas ali vêm me ajudar e tiram fotos.
Vejo a belíssima estátua de Yemanjá na chegada a praia.

- Tenente, o que está fazendo?
- Depositando flores para a santa...
- E desde quando o senhor é adepto de Yemanjá?
- Se ela é táo gostosa como essa estátua, sou adepto desde hijo...
- Pensávamos que como homem do mar o senhor preferisse as sereias...
- Tá louco? Só se eu fosse metade golfinho, fazer as coisas pela metade náo é comigo!
Venta frio e forte, penso em sair amanhá, dormir numa pousada...
- O quê? Já pra peleia!
- Basta um final de semana e já viraram uns molóides1
Parto perto de 13 h e quarenta minutos depois chego aos destroços do navio Altair que naufragou em 1976. Tiro umas fotos e a praia se revela o melhor trecho que passei até agora. Ampla, limpa, firme e melhor, vento favorável.
Mais adiante o vento foi diminuindo e tive que ir bordejando para pegar mais velocidade.
O carro e a estrutura parecem bem, estrala aqui e ali, mas acho que é normal.
No fim, estou no estilo patinete, pois ficou fraco demais.
- Senhor, o Imortal está depressivo!
- Ele náo sabe mais se é carro a vela, patinete, carro de máo, carroça ou cavalo...
- Deixem-no, ele é adolescente e está buscando sua própria identidade...
- Mais queixas...
-O que é agora?
- O soldado sarcófago (barraca) reclama que todos o chamam de "baixinho"!
- É o que sempre digo, quando o pelotáo náo está de peleia começam as picuinhas!

As horas passam, vários riachos sem importância e um ou dois que parei antes para náo me molhar.
Aquela roupa "china" para chuva chupa tudo, deveria ser utilizada para coisas mais úteis como absorventes, por ex.
Em um dos riachos conheço Ernani. Mora em uma casa ali nas dunas e diz que o farol Sarita está a 40 km e que eu posso chegar lá ainda hoje...
Todavia faltam só duas horas para findar o dia, vou tentar!
Depois outro homem se aproxima, pois a vela é visível de longe.
Ele gesticula grosseiramente, quase impondo que eu deveria seguir em sua direçao, mesmo quando eu sinalizo que vou em frente... Só me faltava um chifrudo querendo dar ordens ao pelotáo!
A praia fica mole, vai diminuindo e o vento também. Como já vejo o farol, sigo puxando no final e, já no escuro, chego em linha com o dito cujo, mas ele está muito para dentro, já nas dunas.
Deixo o carro na praia e sigo no escuro em direçáo de duas dunas altas que têm árvores de pinus.
Volto e arrasto o Imortal até a base delas e resolvo montar a barraca sem a lanterna, para aprender para uma situaçáo de emergência.
Náo é que deu certo? O sarcófago até que ficou bem montado.
Ô barraquinha baixinha! Náo dá nem de ficar sentado nela.

14-08-07 Terça
Andei 60 km ontem, mesmo saindo só às 13 h.
Agora sáo 8:18 h, escrevo sentado nas dunas tomando um sol para aquecer um pouco. Parto às 9:40 h com vento favorável e vou cruzando com lobos e gaivotas até que surge uma toyota da marinha. É Axel, pensa que sou o Lúcio, amigo do Nardi e do Henri. é Que Lúcio, além de professor de vela no Yacht de Rio Grande viaja em carros a vela do Nardi.
Paro pra almoçar perto de doze horas e tento alimentar um lobo magro, mas ele recusa o peixe.
Depois sigo puxando, porque o vento parou total. Como deixei a calça china pendurada para secar na retranca, só fui perceber que a dita cuja caiu sei lá onde.
Busco ou náo? Melhor buscar, por pior que seja. Há uma neblina no ar e bastou correr seis minutos para náo ver mais o Imortal. Que tempo esquisito...
Vejo para o fundo matos de pinus e dunas náo muio altas que náo daráo abrigo para o caso de vento ou chuva que estáo previstos para hoje.
Às 15:30 h, finalmente entra o NE e desisto de procurar local para me abrigar, pois vejo o farol Verga ao longe.
Chego rápido lá, recém sáo 16:44 h, mas é melhor me garantir.
Arrasto o Imortal sobre as dunas e o farol tem uma porta na parte de trás. Melhor, está aberto. É uma base de concreto piramidal e uma torre de metal na parte superior.
Está cheio de areia, mas é muito bom abrigo.
Deixo o carro e a vela na duna em frente e coloco o plástico sobre a areia. No meio o saco de dormir e dobro o plástico por cima para reter ar quente e suportar mais uma noite fria.
Agora sáo 18 h, estou sentado dentro do farol Verga enquanto sopra um NE feio lá fora. O carro ficou na moita e ninguém vê lá da praia.
O travesseiro inflável furou (como na viagem do caiaque) entáo vou usar uma garrafa de refri como travesseiro daqui pra frente. Forro com minha manta de lá e fica show!

15-08-07 terça (acho que 1 mês de viagem)
Está nublado e parece que vem chuva. Sáo 7:47 h e náo está táo frio, se bem que estou com o "kit" de dormir: duas meias, dois abrigos, camiseta, jaqueta de neoprene, dois blusóes de lá, japona grossa (que estragou o fecho) e japona fina do Grêmio. Fora luvas e touca de lá, básico!
Estou com erupçóes cutâneas no dorso da máo direita; devem ser por causa da raçáo de guerra, conservantes ou mofo, sei lá!
- Senhor. Estas erupçóes apareceram naqueles exploradores que tentavam achar uma passagem entre o Atlântico e o Pacífico, próximo ao pólo norte...
- O que aconteceu?
- Os que tiveram sorte morreram antes, intoxicados pelas toxinas em alimentos enlatados. O navio ficou aprisionado pelo gelo por três anos, pois os veróes foram muito rigorosos e náo houve degelo.
No fim o navio foi destruído pela pressáo do gelo e os que sobreviveram tentaram ir para o sul, rumo a uma estaçáo baleeira arrastando enormes botes sobre o gelo. A comida acabou, houve casos de antropofagia e náo sobrou ninguém para contar a estória, apenas evidências.
Parece que o nome do navio era Endurance...
- Tudo bem, náo te preocupes, pois os exploradores eram ingleses e o pelotáo foi forjado no Rio Grande e aguenta muito mais que isso!
- Êta índio bagual! Gaúcho barbaridade!
- Senhor, podemos utilizar como enfermeiras aquelas "mulheres da vida" que acompanham o pelotáo numa carroça velha (meu corpo)...
- Quem?
- As irmás Pedritas (pedras no rim) e as gêmeas, as Ernas (2 hérnias de disco).
- É verdade, todo pelotáo é seguido por "Chinas" e além da "especialidade" elas podem servir como enfermeiras...
-Vá chamá-las!
Ao puxar o imortal levei uns sustos, pois toda hora parecia que um carro se aproximava rápido, quase ao meu lado.
Depois é que percebi: era o eco da rebentaçáo batendo na vela.
Parto às 9:40 h, náo há vento e sigo puxando por uma hora. Paro para comer uma laranja e ao olhar para o horizonte fico de cara com as "peças" que essa imensidáo prega aos olhos.
Tu vês algo ao longe, parece uma pessoa, mas depois de avançar muito, percebes que náo passava de uma gaivota. Confundi uma estaca na duna com um farol. Vacas parecem casas, depois carros e finalmente...Vacas!
Sigo em frente e numa duna ao longe vejo vários cachorros descendo e vindo pela praia em minha direçáo. Como náo fico só olhando, deixo o facáo à máo!
Eles retornam para as dunas e vejo uma coisa esquisita ao longe, parece uma neblina branca, mas é um forte vento SW que chega de repente.
- Senhor, estamos sofrendo um ataque! Náo conseguiremos avançar!
- Negativo, aqui a praia é larga e firme, temos espaço para orçar!
- Impossível, senhor!
- Para o pelotáo isso náo existe, sempre teremos um punhal na bota (carta na manga)!
E assim seguimos em frente, bordejando e avançando graças a praia larga e firme.
- Senhor outro ataque de índios, parece que sáo da tribo canídea!
- Calamos as baionetas (facáo)?
- Negativo, acho que vi os chefes deles (pescadores) e náo quero arranjar mais encrencas que já temos.
- Que fazemos?
-Lutem a soco! Acho que estes índios nos confundiram com algum carroçáo de colonos, por causa da lona que cobre a bagagem.
Cara, que inferno. Cerca de quinze cachorros correm a meu ladoenquanto subo e desço a praia. Eles se aproximam dos dois lados e além de velejar tenho que me cuidar para náo ser mordido.
Quando o carro pega velocidade tento atropelá-los, mas os bichos sáo muito rápidos. Aquela zoeira nos meus ouvidos vai me perseguindo, irritando e despertando meu ódio assassino.
Quando o lider deles se aproximou mais perto, acertei um soco que derrubou o corno e este embolou com outro que vinha logo atrás.
- Grande tiro tenente!
O chifrudo voltou a carga e a estes se aliaram outros mais. Para meu azar a praia ficou mole, estreita e o carro atolava.
Aproveitava para jogar areia e conchas nos chifrudos, de preferência nos olhos.
O vento SW cada vez mais forte fez eu cometer um erro. O carro atolou antes de dar o bordo, os chifrudos vieram por cima e na ânsia de acertá-los, deixei a retranca subir e dar a volta com o cabo preso,.
Resultado: quebrou a tala mestra da vela. Logo o pedaço pequeno furou a bainha da tala e ameaçava rasgar a vela.
Fui em frente, os cornos ficaram para trás e como estava atolando direto além do risco de rasgar a vela, resolvi seguir puxando.
Deito o carro para remover a vela. Ela estremece no cháo como um possuído pelo "demo" em terreiro de umbanda.
Dois coices a la pelotáo e o bicho se acalma até que enrolo a corna.
Acontece que com forte vento contra, mar subindo e sem parte firme, seguir em frente era só pra me ferrar.Resolvo almoçar na entrada de um riacho ao abrigo de uma pequena duna e decidir o que fazer.
Para o sul o céu roxo e prenúncio de tempestade. Acampar ali era temerário, mas os pinus ficaram para trás e uma planície de areia e sem dunas era o que tinha para a frente. Apenas tufos de capim colono e salgado.
Que fazer?
Resolvo utilizar o GPS pela primeira vez. Olhando o mapa dele e o que eu tenho calculei que minha única saída seria o farol Albardáo, mas ele estava há cerca de 12 km , eu teria só três horas, arrastando contra o vento e a areia mole, afora o fato que a partir das 13 h o mar sobe cada vez mais.
Que que tu achas cara?
Se a gente aguentar arrastar sem parar chegaremos perto, mas se as forças acabarem vamos morrer na praia, pois se a tempestade nos alcança antes...
Resolvi tentar! Eu náo tenho escolha, é chegar ou chegar!
Começo a marcha desesperada, atolando, me irritando e xingando o vento, o carro e tudo mais que se atravesse no caminho.
Na beira da praia está mole, no meio também, entre as dunas pior. Começo a ficar agoniado e náo adianta simplesmente parar. Se o temporal me pega naquela parte estou ferrado. Sou obrigado a seguir mesmo sabendo que náo vou conseguir. A tempestade chega antes ou minhas forças acabam.
Depois de uma hora vejo o farol na bruma e o céu roxo por trás dele...
Se o vento mais forte e a chuva me alcançarem antes, morrerei na praia. Náo tenho mais forças!
- Pelotáo! Cantem o hino farroupilha...
- Até a pé nós iremos...
- Náo, esse náo
- Como a aurora precursora do farol da Divindade
- Foi o vinte de Setembro, o precursor da Liberdade....
- É isso aí bugrada. Náo desistam!
Pela primeira vez na viagem estou agoniado, pois se náo chegar a tempo vou me ferrar. Faço alongamentos, paro para respirar, estou nas últimas.
Já vejo o farol há duas horas, mas falta mais de hora e meia.
- Alguém jogue um laço e traga esse maldito farol mais pra perto!
No meio de tudo vejo um porco solitário na beira da praia. Pronto, além do extremo cansaço físico estou vendo coisas.
Além disto, vários barcos de pesca sobem a costa a favor do vento, a menos de 1 km da costa. Estáo fazendo arrastáo...
Lembro de Chico Preto, o amigo que ganhei na vila Quinta.
Depois de 3,5 h de caminhada desesperada chego em frente ao farol que está bem para dentro, lá no meio das dunas. Já passa de 18 h, escurece rápido. Deixo o carro e sigo a pé para o farol. Falo com Franklin e outro faroleiro.
Eles dizem que posso ficar, tenho que arrastar o Imortal sobre as dunas moles.
Vejo algo mais próximo da beira e pergunto o que é.
- É um container...
Se for bom, posso ficar lá?
- Como você quiser...
- Vou a pé. a porta está aberta e virada para NW, abriga do SW. Por dentro tem furos na parede SW, mas o vento mudou para SE e dá para encarar.
Arrasto o Imortal até ali, monto a lona e o saco de dormir ao fundo do container e a chuva chega com tudo...
Será que tem um santo me ajudando?
Antes que pense muito, desabo no cháo e durmo. Estou no meu limite físico, quase estafa. Amanhá conserto a tala que quebrou e reaperto uns parafusos.
que dia!
´Náo foi nada, mas andei 30 km contra o vento. Dos 220 km que faltavam de R Grande já fiz 130 km . No total já foram mais de 700 km .
Faltam só 90 km para o Chuí.
A tripulaçáo até já fez uma marchinha de carnaval:
- Hei Chuí, olha eu aqui, olha eu aqui...
Como algo e "apago"!

16-08-07 Quinta
Cara, que dureza! estou estafado.
Desperto cedo e há vento. Caso seja favorável sigo em frente. Todavia é S, bem contra e como choveu direto esta noite além de estar nublado, resolvo ficar e arrumar a tala quebrada além de apertar uns parafusos.
Como já estava previsto, o dia será de descanso da tropa.
Durmo o resto da manhá e a tarde toda foi de chuva. Estivesse nas dunas estaria mal.
Agora sáo 16:11h, o dia se foi, arrumei a tala com silver tape. Aqui no container tem uma espécie de barquinho de fibra com as iniciais FEG (Geologia).
Faltam cerca de 70 km para o Hermenegildo, mas o Henri falou que daqui para a frente há incríveis depósitos de conchas (Conchais) ao longo de 40 km e barrancos de riachos com altura superior a um metro.
Um carro destes ao bater num barranquinho de 20 cm já é uma tragédia a 70 km/h . Vejam o que aconteeu ao meu ao bater na água...
Antes de dormir preparo um kinojo cru com sopa.
- Senhor, está frio...
- Deixem de frescura, o pelotáo é superior ao tempo! Náo precisamos de comida quente!

17-08-07 Sexta
A exemplo de ontem amanhece perto de zero grau centígrados e com forte vento que passou de SE a SW. Arrastar o carro contra o vento e com atoleiro é caixáo. Levanto e congelo rápido. Volto para o saco de dormir.
Aqui no interior cinza deste container tudo o que vejo é um céu polar, meu carro na porta de entrada e o farol preto e branco do Albardáo ao fundo, na dunas.
Escuto o pio dos talhamares, gaivotas e o vento...
- Senhor, estamos entrincheirados aqui já quase pelo segundo dia. Nossas provisóes estáo diminuindo...
Lembrei de Sir Scott, que foi a pé até o pólo sul com mais seis homens. As provisóes foram findando, os mais forte morreram primeiro.
A um dia de chegar no depósito de comida que haviam deixado na ida, foram pegos por violenta tempestade e tiveram que montar acampamento.
A tempestade durou tempo demais e ali eles morreram. Relataram suas últimas horas e a tristeza de terem chegado ao pólo e saber que o Noruegues Amudsen havia estado lá um mes antes, pois ele foi com trenós puxados por cáes e os ingleses de esqui puxando trenós. Eles até levaram uma espécie de snow board, uma invençáo na época, mas que estragaram logo no início.
- Senhor, nós vamos morrer?
- Te pára de frescura! Vocês já enfrentaram coisas piores.
- Lembram da moto em Ushuaia com neve? E aquela outra ao relento nos geisers entre a Bolívia e o Chile com temperatura abaixo de 6 graus negativos.
Nem vou falar das noites de tempestades na Lagoa Mirim nas viagens de windsurf ou de caiaque.
E a pior de todas, naquela tempestade ao atravessarmos de caiaque a Lagoa dos Patos na parte mais larga... Lembram, foram 70 km de travessia, aguentamos a tempestade que iniciou às 23 h até virarmos às 3 h da manhá com ondas de 3 a 4 m . Quase perdemos o caiaque no escuro e só nos salvamos porque havia uma lanterna a prova d'água presa ao pulso e pudemos achar o caiaque que se ia nas ondas. Foram 3 dias sem dormir, tivemos visóes e 24 h depois chegamos do outro lado...
- Quando o inimigo fraqejar, atacaremos!
Tenho que diminuir a comida, pois em trinta dias (incluindo os 15 com o Luigi) gastei só duas das quatro garrafas de granola e só em 4 dias já gastei a metade da terceira.
Agora sáo 13 h, faz muito frio, estou dentro do saco de dormir e o vento contra aumentou, quem sabe amanhá?
O container está todo furado, mas achei uma parte onde náo tem goteiras. O chato é o sopro do vento o tempo todo e eu nem trouxe um radinho desta vez (por falta de espaço). Estou mais ou menos na metade do comprimento da lagoa Mangueira, é uma planície desolada, sem dunas e apenas tufos de capim pioneiro e capim salgado. O pior de tudo é que preciso destas frentes frias se quiser voltar.
Tenho que comprar outra roupa de chuva, pois ficar encharcado nete frio é muito duro.
Perto de 14 h, o Sargento Franklin MR e o cabo Magno MO vieram me buscar. Eles estavam no alto do farol e me viram. Pensaram que eu já tivesse ido.
Dizem para eu dormir em uma da casas do farol. Levo o básico e deixo o carro por ali mesmo.
Almoço com eles uma deliciosa massa e depois chega o vizinho deles, Edmar. Ele traz uma garrafa de cachaça de butiá que bebemos no ato. Aqui eles têm internet e gerador.
Tchê, que frio!
Há 4 casas com telhado em forma de pirâmides, sendo que duas estáo inoperantes.
O farol original foi inaugurado em 1909 e o atual em 1946, tem 44 m de altura (o mais alto da costa Gaúcha) e 42 milhas de alcance. Contando os faroletes, nossa costa tem 19 faróis, sendo que o farol da barra da Lagoa dos Patos foi o primeiro da costa brasileira (construído em 1820), mas este já caiu, (foi substituído pelo atual em 1949) como vários de nossa costa e da Lagoa.
A manutençáo é precária, parece que os governos acham que os faróis náo sáo mais necessários e o fim deles é caírem. O popa participou da recuperaçáo da base do Cristóváo Pereira, mas as coisas náo andam na velocidade necessária.
Inlusive o Franklin está na matéria sobre a recuperaçáo do Cristóváo.

18-08-07 Sábado
Acordo cedo, dou um pulo no container e depois subo no farol. A vista lá de cimav é lindíssima, vejo "meu" container e o carro perdidos nas dunas baixas desta planície desolada, a Lagoa Mangueira, campos e matos de pinos ao norte. Amanhece frio e com vento de SE de novo e náo dá de enfrentar os conchais com vento contra. Parece que iniciam a cerca de 20 km ao sul do farol.
Estou lendo o livro "Areias do Albardáo" de Ulrich Seelizer, Cézar Cardozo e Lauro Barcelos.
Ali explica a formaçáo dos Conchais:
- Há 4 mil anos, havia uma barra na Lagoa Mirim que fechou, formando o banhado do Taim e a Lagoa Mangueira. Hoje, a erosáo da costa próximo ao balneário de Hermenegildo está expondo os depósitos deste antigo canal como testemunho do passado geológico.
Um pouco mais ao norte, em trechos apropriadamente denominados de "concheiros", as ondas cavam grandes quantidades de conchas e moluscos fósseis da plataforma submersa e jogam-na na praia. Junto com pedaços de conchas, sáo depositados dentes fósseis de tubaróes, mamíferos terrestres que viveram há cerca de 15.000 anos, na planície costeira ( mamutes, tigres dente de sabre e preguiças gigantes).
No inverno, as ondas de alta energia e a declividade da praia formam barrancos de 1,20 m de altura na parte alta pouca mobilidade (atoleiros) devido à areia grosseira.
Ou seja, acho que para passar ali terei que arrastar. O Magno falou que a toyota quase capotou numa parte por causa da inclinaçáo e por causa das ondas que estouram ali em cima, agora no inverno.
Descobri que os lobos pesam no máximo 160 kg e que os leóes marinhos chegam aos 300 kg .
Aqueles "ovos" de galinha transparente que achei perto de Quintáo sáo, na verdade, cápsulas com embrióes de moluscos. Tem uns pretos que todos dizem ser de tubaráo, mas na verdade sáo de raias.
Aquele maçaricos pequenos que correm como doidos sáo batuíras, as gaivotas de cabeça preta e perna curta sáo chamadas de Trinta-réis e as chatas, de cabeça preta, gaivotas de capuz.
Estou aqui há 3 dias e pelo jeito vou ficar a quarta. Estou constrangido, náo quero abusar da hospitalidade, mas o pior é que a previsáo para amanhá é de forte chuva e ventos fortes.

19-08-07 Domingo
Tchê, entrou uma frente fria em cima de outra e amanheceu com chuva...
Fiz um discurso inflamado que iria para a peleia de qualquer jeito, mas assim é sacanagem!
Vim aqui na casa deles disposto a partir ou voltar ao container, mas o Franklin mandou eu sentar e "esfriar", pois seguir assim eu náo iria andar nem 10 km .
O pior é que nem roupa de chuva tenho. Ficar molhado com o frio que está fazendo...
O Magno falou que foram registradas ondas de 5 m na Lagoa dos Patos quando ele navegou por lá e o Franklin falou de experiência semelhante.
E eu achando que estava exagerando quando falei que as ondas naquela noite do temporal no caiaque estavam entre 3 a 4 m ... Talvez até tivessem mais!
Estes 90 km nem foram percorridos e já se tornaram o pior dos trechos. Estou entrincheirado há 4 dias e tenho que ficar mais um. O pior é que o vento forte está previsto para esta noite.
Agora sáo 21 h, lá fora sopra o maior pau de vento que assobia nos fios da cerca. A chuva chegou junto e forte.
Por isto o pelotáo continua aquartelado.

20-08-07 Segunda
Cara, amanheceu, a chuva parou. Vou partir...
Tchê, sopra um violento vento de SW que assobia nos fios e faz a areia correr como louca pela planície. O mar está de ressaca, alto e a crista das ondas é jogada para trás pela força do vento. Náo há condiçós de prosseguir.
Que merda! Estou aqui já faz cinco noites, náo tenho como sair náo quero abusar da hospitalidade e esse vento corno náo pára...
Saco, que situaçáo!
Vou até o container olhar o carro e caminho pela praia. A areia está mole, o mar lá em cima, náo há condiçóes sequer para arrastar...
- Senhor, isso aqui está parecendo praga de sogra!
- E das brabas!
Faço uma pesquisa rápida. Tive cerca de vinte sogras mais ou menos estáveis e apenas me extressei com duas... Uma delas já morreu!
Dizem que sogra ruim, quando morre vira bruxa... Eu náo acredito!
Mas esse tempo...
- Senhor, vamos morrer como os exploradores do pólo sul. Ficaram acampados na tempestade até as provisóes acabarem. As nossas já estáo no fim...
- Náo se preocupem demais, pois o nosso pelotáo foi reforçado pelo sargento Franklin e pelo cabo Magno. Náo fosse eles o pelotáo estaria virado num esqueleto como os do navio fantasma!
Eles estáo fortificados no farol Albardáo forneceram abrigo e alimento ao pelotáo.
Brody, os caras sáo legais demais, mas eu tenho até vergonha em dizer que náo posso prosseguir. Falo a mim mesmo qu náo vou mais almoçar com eles, que utilizarei a raçáo de guerra, mas eles náo querem nem saber, dizem que é assim mesmo e para eu náo esquentar.
Almoço com eles de novo, Franklin diz que passou um furacáo extra tropical próximo da costa, por isto este vendaval fortíssimo.
Acho que até já identifiquei a sogra, mas essa náo prcisa morrer para se transformar. Acho que ela exagerou!
Pô, furacáo extra tropical...
A bruxa é poderosa. Por isto que os furacóes têm nome de mulher!
- Só há uma coisa mais poderosa que praga de sogra...
- O que é tenente?
- Praga de "falecida"!
- É verdade tenente. Eu conheço um amigo que a "ex" riscou o carro por 3 vezes. Cada vez que ele repintava ela voltava e riscava.
- Ela tinha ciúmes do carro...Isso é normal?
- Claro, sáo coisas do cromossomo XX.
- Cada uma tem ciúmes de coisas náo vivas, como carro, poster de mulheres, do tempo que o marido passa com os amigos...
- Isso é que nem futebol. Vocês já viram jogador de futebol gostar de ser substituído?
- É tenente, mas é a lei da vida. Se náo estáo jogando direito têm que ir pro banco e aguardar uma nova chance!
- Homem náo é assim, ele sempre parte para outra, a natureza sempre se renova.
- Para as mulheres é mais difícil, o tempo de vida útil é menor...
- Isso está mudando. Agora tem botox, silicone, plástica, etc... Há cada coroa!
- Como diz o brody Rojas: Se Deus fez coisa melhor, guardou só para Ele!
- Chega! O que é que estávamos fazendo?
- Iríamos invadir a banda oriental (Uruguai).

21-08-07 Terça
Amanhece com vento contra, mas já decidi que vou partir. A previsáo é que entre vento favorável amanhá quero estar perto do conchal quando ele chegar.
Meus amigos vêm até o container comigo e parto às 12:15 h. Nem parece que fiquei parado por seis dias.
O pelotáo entra no espírito de guerra assim que chega ao local de combate.
Olho atrás e aceno aos amigos perdidos nas dunas.
Sigo arrastando o Imortal contra o vento. Pelo menos a praia está mais firme do que ontem.
Caminho 1 hora, descanso e sigo.
Almoço ao lado de um enorme tronco tomado de cracas.
Ao longe vejo algo. Parece uma casa, depois um carro e depois uma carroça. Só quando chega mais perto é que percebo que é um cavaleiro e dois cavalos. É seu Antônio, tio de Edmar. Aviso que ele foi para a cidade e Antonio resolve voltar.
Passo por muitas saídas de riachos, pequenos meros, toninhas e peixes voadores mortos... Depois vejo uma estranha rocha toda furada e em algumas partes parece haver ovos. Náo sei o que é.
Às 16:30 resolvo parar antes, pois subindo pelo leito de um riacho há uma mata nativa que abrigará em caso de vento norte ou sul.
- Onde acampar tenente?-
- Utilizem o "windcocômetro"!
- Como assim?
- Onde houver mais bosta de vaca é onde fica mais abrigado do vento!

22-08-07 Quarta
Sáo 8:30 h, faz frio está nublado, mas o vento é favorável.
Arrasto o caiaque por dentro do leito de riacho e depois pelas dunas até a praia.
Velejo por cerca de 7 km e chego aos conchais.
A praia fica inclinada, o mar sobe e passa da parte inclinada e forma lagoas mais para cima. Essa parte plana é fofa e atola.
Tenho que voltar a seguir pela zona de "varrido" (onde fica o vai e vem das ondas). O mar sobe com força e lava o pelotáo. Ainda por cima a areia é muito mole e atolamos direto. Parece praga, o carro atola e em seguida as ondas sobem e as rodas ficam até a metade na areia.
Virou um inferno. Depois de sete dias, quando finalmente tem vento a favor, o mar está de ressaca e chego nos conchais, um atoleiro sem fim.
Arrastar um metro é uma agonia. quando olho para o horizonte e vejo esse "mar" de conchas sem fim começo a ficar sem forças.
Tento seguir pelo meio das dunas. Náo dá. Tento a parte plana, atola igual.
Pela beira do mar, além de atolar o mar sobe com fúria e afunda as rodas.
Pensava que sobre as conchas seria mais irme, mas é um inferno.
Aparece um cara de moto e diz que o trecho de conchais tem 40 km , mas que a pior parte tem uns 15 km . Ele diz que depois de uma bóia o trecho melhora um pouco.
Se arrastar cada metro está me matando, como vou andar 15 km assim?
Bem mais distante, há um mato, o único abrigo que vejo. Ele diz que é o Capáo do Pouso, mas nem olho muito. Náo sei como avançar e só me resta seguir como dá.
Cara, é o pior trecho que já peguei. O pior é que justo com vento favorável e estou num imenso atoleiro. Vejo barrancos enormes na saída de riachos. Tem horas que o mar está batendo nestes barrancos e só tenho a opçáo de seguir por cima. Ando uns poucos metros, paro para descansar e volto a fazer força. Náo tenho opçóes e desanimo.
- soldados náo desistam!-
- Náo dá tenente, estamos "mortos". Teremos que acampar...
- Nem pensar. Se entrar vento sul aí sim é que náo sairemos daqui.
Chego a um barranco que tem a altura do meu peito. Seguindo pela parte plana, a pé, eu náo o vi. Só vi quando cheguei em cima. Um perigo para quem vem de carro.
Se bem que hoje náo passa carro normal por aqui, pois quando chega nos barrancos tem que descer para a praia, bem no depósito de conchas. Isto se as ondas estiverem na descida. Se o cara náo for rápido e passar antes da onda subir ou atolar ali, perde o carro. Talvez dê tempo de tirar a frente do som...
Eu náo posso me entregar. Tentei de tudo...
- Tenente, abra a vela. Talvez diminua a força que temos que fazer para arrastar na parte mole.
- Tem razáo!
Abro a vela e deixo o cabo amarrado. Realmente ajudou e assim fui em frente.
Ora descia para as ondas, ora pela parte plana e fofa, ora perto das dunas.
Às vezes deixava o carro e seguia a pé para verificar onde seria mais firme.
Passando por vários lobos marinhos, filhotes de mero e barrancos sem fim finalmente cheguei na tal bóia cilíndrica. Ela estava atirada na praia, deve ter uns 3m de altura e o mesmo de diâmetro.
Um pouco adiante dela tem um container azul, mas destroçado. Vejo muitas coisas esquisitas jogadas de navio como potes de comida com escritos em japonês, garrafas de uísque, caixas de frutas del Uruguay, etc...
Parece vir um temporal e resolvo parar mais cedo e me garantir de novo.
Subo outro riacho, mas o mato náo é táo bom como ontem. Armo a barraca ao lado de um tufo de junco e sobre juncos que cortei com o facáo.
Fiz um kinojo cru com sopa e ficou salgadérrimo. Resultado: bebi toda a água da garrafa que me serve de travesseiro.
Estou encharcado, pois uma onda me pegou de jeito e encheu as botas.

23-08-07 Quinta
É brincadeira. esperei sete dias e quando entra vento favorável estou no meio do pior lugar que poderia estar. Agora amanhece com uma baita cerraçáo e o vento está fraco e parece contra... Fiz 13 km no primeiro dia e 16 ontem... É soda!
Se entrar vento sul forte de novo, ficarei encalhado no conchal.
- Pelotáo, arrumem suas tralhas e partam.
Parto só às 10:50 h e sigo puxando de novo.
achei que iria melhorar, mas o mar continua alto, tudo mole e sem vento para ajudar...
Quando os depósitos ficam perto da praia, é certo que a praia fica inclinada e tudo fica mais difícil e longe.
O avanço é terrível, dá vontade de parar, mas se parar náo terei abrigo e ninguém me levará para a frente. Tenho que controlar meu desespero e seguir em frente.
Estou estafado, pois o carro atola direto por onde quer que eu vá. Se fosse só caminhar já seria difícil, mas arrastar o corno está acabando comigo.
Estou com tanta raiva que nem é bom ter nada por perto.
Para piorar o SE fica muito forte e resolvo desmontar a vela, pois é mais uma resistência que faz piorar o que já está ruim.
Na hora de desmontar as secçóes do mastro, uma parte "colou" e o corno náo desencaixa de jeito nenhum. Chego a entortar a guia da roda dianteira tentando desencaixar, mas nem mexe.
A única coisa que "desencaixa" sáo os parafusos que ainda me mantinham normal.
Cheguei a ficar rouco de tanto berrar toda sorte de palavróes contra tudo o que está acontecendo.
Isso aqui no veráo deve ser uma auto pista e com vento favorável...
Agora no inverno, seguindo para o sul com frente fria colada uma à outra. Frio, vento contra, riachos que náo existem no veráo e muitos temporais.
Fora isso é o mar que sobe e fica quase sem praia firme...
Agora entra outra frente fria depois de um miserável dia de vento a favor...
- Soldados! cuidado, o tenente Issi está uma fera. Vai sobrar para nós.
- Pelotáo! Esse vento e esse atoleiro sem fim nos levaram ao pior grau de resistência até aqui. O nível de mantimentos e água chegou ao ponto crítico..
- Que fazemos, desistimos?
- Pelo contrário! Agora virou questáo pessoal. Se nosssos inimigos pensam que acabaram conosco estáo muito enganados.
- Nem que a gente avance 5 ou 10 km por dia, mas iremos hastear nossa bandeira no Chuí.
se possível vamos invadir o Uruguay até La Coronilla , próximo da fortaleza de Santa Tereza.
- Senhor, estas sáo do tempo do Império. As fortalezas de Sáo Miguel e Santa Tereza além da Colônia do Sacramento passaram para eles pelos tratados entre Portugal e Espanha...
- Bueno, náo importa. Seguir até o Chuí virou questáo de honra.
- Nunca tivemos uma resistência táo feroz e náo viemos de táo longe para desistir a menos de 50 km do objetivo.
As palavras do tenente emocionaram o pelotáo que decidiu lutar até o fim das suas forças.
- Pelotáo! Calar baionetas. Esqueçam as regras, combatam corpo a corpo e náo tenham piedade do inimigo.
... E diante de tal circunstância o pelotáo seguiu os claríns farroupilhas.
Devorando coxilhas se transformou em distância...
- Soldados. que sirvam nossas façanhas de modelo à toda a terra!
Seguindo adiante econtro um jipe com imensas rodas, alto do cháo e um reboque.
Sáo três caras legais e vêm de Santa Vitória do Palmar. Conhecem meu amigo de muitos anos, o advogado Dilson Mespaque que tanto me ajudou nas três vezes que passei por Santa Vitória.
Essa parte náo tem nada, já estou conformado em passar a noite sem abrigo nas dunas, mas a praia melhorou, ficou plana.
Resolvo consultar o GPS e descubro que estou há 6 km de uma casa que marquei no GPS antes de vir. É que "viajei" antes pelo google earth e marquei os pontos que poderiam me ajudar. Talvez tenha valido a pena.
Resolvo encarar uma caminhada forte antes que escureça, pois parece vir chuva de novo.
Caminho como louco e respirando fundo sigo em frente. Vejo umas casa mais para dentro, mas estáo dentro de um banhado. Além disto o astral náo parece legal está cheio de ossos de baleia. Vi uma vértebra com mais de 5 m .
Volto e sigo caminhando. Escurece rápido. Vejo outra casa, mas náo gosto de me aproximar no escuro.
Procuro abrigo entre pequenos tufos nas dunas quando ouço trovoadas. Mudo de idéia, atravesso um banhado fundo e vou até a casa. Náo tem ninguém, está trancada, mas ali é melhor que as dunas.
Arrasto o carro até ali, armo a barraca na face norte e coloco roupa seca.

Fiz tudo no escuro, felizmente a tempestade chegou depois de tudo pronto.
Graças ao esforço final fiz 20 km hoje. Estou na altura do final da Lagoa Mangueira. Faltam cerca de 36 km até o Chuí.
Essa parte me fez pensar em desistir de fazer o caminho de volta, pois atravessar os conchais no inverno e esse atoleiro uma vez é desconhecimento.
Voltar é insano! Mas o pelotáo nunca foi normal...

24-08-07 Sexta
O exército de Thor (o chifrudo) atacou a noite toda. Raios, relâmpagos e trovoadas acompanhadas de vento, chuva e frio.
O pelotáo em sua trincheira (soldado sarcófago) aguentou bem o ataque.
A chuva forte permaneceu até às 10 h e aliada ao vento contra me fez desistir de seguir hoje. Ainda mais que náo tenho roupa de chuva.
Está muito gelado e a minha hora vai chegar. Ontem o mar estava simplesmente gélido, náo sei como os lobos aguentam aquela temperatura.
Passei o dia aqui ao lado da casa que tem um crânio de tartaruga do tamanho da cabeça de um homem.
Agora sáo 15 h, espero amanhá para poder continuar.
A barra tá pesada, mas agora virou questáo pessoal.
Ou eu chego ao Chuí ou náo me chamo Joáo Cardoso, hehhe

25-08-07 Sábado
Acordo com frio, o vento está batendo na barraca...
sonolento ainda me dou conta que estou protegido do sul. Entáo esse vento é leste.

Às armas cidadáos, formem seus batalhóes
O dia da glória chegou
Marchem, marchem!
Que o sangue impuro do inimigo regue os nossos campos.
Sigo cedo para a praia.
Às 9 horas o que resta do pelotáo está enfileirado para o derradeiro combate.
A bandeira farroupilha hasteada ao lado do imortal.
O inimigo lança um vento gélido como o hálito da morte, mas os homens estáo com uma raiva contida que nada irá deter. Velejamos pela beira do mar que encharca os homens já com as roupas em farrapos. Atolamos várias vezes nas partes com os últimos depósitos de conchas, mas a maior parte está firme e o pelotáo finalmente encontra campo firme para lancear o inimigo hasta la muerte!
- Senhor, riachos profundos!
- Ataquem, náo deixem concha sobre concha!
E mergulhando, corpos enregelados, máos quase com cáimbras e endurecidas pelo ardor do combate, seguindo pela zona de atuaçáo das ondas, em hora e meia estamos passando pelo Hermenegildo. Barrancos altos, mar quase tocando as dunas e detritos de construçóes derrubadas pelo mar.
Sem parar seguimos em frente. A vitória é só questáo de tempo, pois o pelotáo esteve no mais baixo degrau e teve forças para fazer seu próprio caminho.
Mais uma hora, depois de passar um enorme riacho a pé, o pelotáo derruba mais um baluarte e encilha os cavalos na Barra do Chuí.
Os soldados dáo hurras, 800 km no inverno e contra o vento...
Dois casais de uruguaios se aproximam e tiram fotos. Tenho que voltar uma parte para chegar às ruas e ir para o farol onde pretendo deixar o carro e seguir para o Chui e comprar mantimentos e uma roupa de chuva.
Consigo me lavar antes de seguir para o farol. Deixo o carro com Gama no Farol e vou pela estrada. Pego carona na caçamba de uma picape com outros uruguaios e sigo até o Chuí. Compro a roupa de chuva, mantimentos e vou me hospedar no mesmo hotel que parei quando passei de caiaque e bici. Fiz o mesmo ano passado quando vim de moto para agradecer a quem me ajudou naquela viagem.
Falei com Sandra e seu esposo (que ficaram com o reboque e a bici) e fui a uma lan house aqui no Uruguai. Fiquei 6 h escrevendo ontem e fui dormir já passando de meia noite. Hoje amanheceu com frio e chuva (normal) e a lan só abriu de tarde. Agora sáo 20:17 h do dia 26, domingo. Estou há mais de 5h e meia escrevendo.
Amanhá volto a barra e sigo para onde o vento me levar.
Muito obrigado pelos mails de apoio. Desculpem se náo respondo, mas estou podre. Queria dizer que sem eles eu náo teria força para fazer o que fiz. Nem falo dos que ajudaram pelo caminho, pois sem eles o pelotáo náo existiria.
Um grande abraço e até a próxima.
André
Pois é, mandei o relato depois de treze horas em dois dias no computador e sigo sob chuva e frio para o lado brasileiro.
Antes dou uma olhada na previsão meteorológica que revela que soprará um vento sul até sexta feira. Então ficou decidido meu destino. O pelotão volta suas armas para o norte, pois além de ser contra o vento, não tenho documentos do carro e a prefectura (que detonou minha viagem de caiaque no Uruguai) estará me esperando. Além disto, aquela vez eu sai do Uruguai na moita, minha pequena vingança. Ano passado fui a Argentina com minha xtz 125 para agradecer a quem me ajudou em parte do caminho. Dali passei ao Uruguai e tive problemas com um boludo na fronteira. O cara mandou eu voltar, eu recusei e ele disse que iria me prender. Assim mesmo não recuei e fiquei ali até às 3 h da manhã e ele foi embora. Os colegas dele resolveram me deixar passar e segui pelo Uruguai para agradecer a quem me ajudou no trecho em que fui de bicicleta rebocando caiaque e carga (mais de 100 kg ) por 650 km . Aproveitei e segui pela costa para saber onde poderia velejar mais ao sul caso decidisse viajar em windcar. Descobri que seria en La Coronilla , cerca de 25 km ao sul do Chui.
Aquela viagem de moto foi de 4500 km e na fronteira, a mesma onde tenho de passar agora, de raiva acelerei quando os caras da aduana saíram para ver quem se aproximava. Estou com aquela porcariada de papéis burocráticos deles jogados em uma gaveta.
Atravessei a ponte e adiós!
Então é melhor não mexer no vespeiro!
Vou dormir e um frio de rachar acompanhado de chuva se faz sentir.

27-08-07 Segunda
Tchê, cama com dois cobertores grossos e eu dormindo que nem no sarcófago. Cabeça tapada e encolhido sob as cobertas. A chuva é tão forte que dá de ouvir o barulho da água correndo nas calhas. Ligo a tv, faz 4ºC.
Tomo um banho quente e sigo meu destino.
Vou para a rodoviária e o ônibus parte só as 10:30 h. Aproveito para tomar um delicioso café com leite e volto para a rodoviária. Estou sentado lá no fim e duas pombas entram no prédio e vem caminhando até o lado do meu pé. Fico maravilhado com a calma e a tranquilidade do bichinho. Tiro uma foto da pomba e vou para o ônibus.
Que delícia! Ali dentro está quentinho e vou me deliciando com o calor enquanto vejo a paisagem. Tudo que é bom dura pouco!
Logo chegamos perto do farol. Desembarco no vento gelado e sigo para o farol. Pelo menos parou de chover.
Encontro o sub Gama e o sargento Pepolim, super legal e amigo de Magno e Franklin. Eles me oferecem ajuda e Pepolim chega a me oferecer dois óculos para proteger os olhos. Agradeço de coração, mas desde o acidente naquela saida de riacho-rio não uso mais óculos de proteção.
Arrumo as coisas, está tudo certo. Vento sul até sexta.
Agora chegou a minha hora.
Sigo a estradinha de terra até o asfalto. Ali é só dobrar à direita e seguir para a praia...
O pelotão está com o coração apertado. A sensação é de derrota, como se algo estivesse faltando oprime o peito cheio de cicatrizes de um pelotão que não sabe o que é paz!
- Soldado!
- Sim tenente!
- Aquele acordo ou tratado foi entre que países?
- Portugal e Espanha, senhor!
- A República do Rio Grande participou dele?
- Não, senhor!
- Então porque não vamos a La Coronilla ?
- Porque sopra vento sul, porque por várias vezes atravessamos a fronteira sem permissão, porque a prefectura...
- Não me fale destes boludos!
- Dizem que nem bicicleta pode descer para a praia...
- Com essa vela de mais de cinco metros de altura somos visíveis como um holofote em corredor escuro...
- Então você quer dizer que viajamos 800 km no pior inverno dos últimos 44 anos, contra o vento, com cicatrizes que não curaram ainda, atoleiros, acidentes, lutas sem fim... Para simplesmente virarem as costas e desistirem sem tentar?
Silêncio...
- Soldados, vocês deveriam se orgulhar, vocês foram forjados no ardor das batalhas, no orgulho de ser do sul, nos costumes e na tradição.
- Eu não acredito que ninguém aqui do pelotão esteja satisfeito consigo mesmo.
- Nós temos origem em um povo que sabe dizer não e aprende desde cedo a fazer seu próprio caminho, mesmo que pareça não ter fim ou mesmo que alguns tombem no campo de batalha.
- O que sobra disto tudo não é um ou outro soldado, mas o legado que deixamos para as outras gerações.
- Todos sabemos que um Gaúcho não se dobra em combate e que se ele cair outros cem tomarão seu lugar.
- Calar baionetas, nós vamos para o Uruguai ou onde quer que seja!
- O pelotão inteiro explode de alegria e os hurras são ouvidos até mesmo para os lados da banda oriental.
E assim o pelotão dobra para a esquerda e segue para a fronteira.
Já chegando na ponte, peço a um senhor tirar uma foto. Para minha agradável surpresa sua linda filha se aproxima para tirar a foto ao lado.
Nem entrei no Uruguai e já deram um jeito de machucar meu coração...
O primeiro prédio ao passar a ponte é o da Prefectura Naval Nacional, mas devido aos gritos de hurras do pelotão todos estão aquartelados e fingem não ver.
Resoluto, o pelotão se dirige para a aduana e fala com o simpático sr Gerardo!
Ele nem pede minha identidade...
- Puedo seguir por el pavimiento?
- Si!
- Si no vuelvo hoy, no hay problema?
- No!
- Puedo sacar una foto de ud.?
- Si!
Não é por nada, mas se os boludos me pararem adiante tenho a foto com quem me deixou passar.
Vou em frente, nem olho para trás!
Quando estou longe o suficiente dou um salto no ar.
Lembrei da cena final do filme Expresso da Meia noite, quando um cara ficou preso em uma prisão Turca por muitos anos. Quase ficou louco, mas um dia, sem querer, matou o guarda que mais lhe torturava.
Desesperado, colocou as roupas do Guarda e foi em direção ao portão de saída da prisão. As portas foram se abrindo até que ficou do lado de fora daquela terrível prisão. Quando estava longe o suficiente, ele deu um salto no ar.
O pelotão está radiante, não cabe em si de tanta alegria.
- Senhor, agora é só seguir contra o vento pelo asfalto e voltar de La Coronilla velejando...
- Negativo! Nós vamos pela praia!
- Mas senhor...
- Isto é uma ordem soldado!
Entro por ruas, mas o fim delas é nas dunas altas. Pergunto aos moradores se hay paso!
- Es mejor que te vayas cerca de la prefectura...
Dou um largo sorriso e vou para as dunas altas.
Com um pouco de dificuldade chego a praia e sigo para o sul.
Para minha surpresa o vento sul pega um pouco de través. Acho que dá de encarar na vela.
- Mas senhor! Vai estragar nosso disfarce, vamos ser vistos com esta vela montada...
- Eles que corram atrás!
Monto a vela, o peito parece pequeno para tanta felicidade. Eu tenho a chance de poder lutar para realizar o objetivo então vou entrar nessa com tudo.
Meus pés e o cabo de puxar estão sujos de óleo.
- Tenente, isso sim é que é jogo sujo!
São 13 h, não quero saber nem de comer nem de beber água até chegar a La Coronilla !
Vou partes a pano, partes no estilo "patinete" e partes puxando, pois o vento está diminuindo rapidamente.
IUUUUUUUUUUUHHHHHHHHHHHUUUUUUUUUUUUUU!
Como é bom jogar a vida ao destino e ter estes momentos máximos de alegria, de liberdade e poder ao mesmo tempo. São momentos que tu mesmo constrói e que nada consegue apagar depois. São tão intensos que ficam para sempre. Um destes foi quando entrei entre Paraguai e Argentina, depois de vir remando de Brasília por dois meses e seguir assim depois de tantos percalços.
São vitórias alcançadas através da ajuda de familiares, amigos e pessoas maravilhosas que vou conhecendo nas trilhas da vida.
A vocês eu dedico estas pequenas vitórias, pois elas não são apenas vitórias, são realizações dos sonhos de muitos que não tem a felicidade ou oportunidade de fazer o que estou fazendo e a alegria que sentem por mim é tão ou mais intensa do que a minha própria.
É por isto que nunca desisto, acho que ajudo a realizar pequenos sonhos dos outros além dos meus.
A costa aqui é de dunas altas cobertas de matos de acácias e se precisar é fácil de achar lugar ali no meio para passar a noite.
Vejo leões, lobos, papa-terras gigantes e até uma tartaruga marinha que não havia visto até então, todos mortos.
Há muitas gaivotas e quero-queros.
Depois se aproxima uma carroça com três garotos simpáticos (Franklim, Brian e Arturo). O mar começa a subir e a praia fica pequena. De moto eu passei aqui de noite e não vi muitas coisas que vejo agora.
Adiante eu vejo a construção onde desci com a moto para a praia, é La Coronilla , o destino perseguido arduamente contra o vento por mais de 800 km ...
Já não tem mais vento, mas as pernas estão no rítmo do coração e nem precisam de alongamentos.
Agora o pelotão é coração!
Adiante vejo um filhote de baleia. Está mais inteiro do que aquele que encontrei na barra, em São José do Norte.
Mais um pouco e chego na construção. O mar está quase batendo nos barrancos e a cor da argila ali é verde...
Algumas construções o mar derrubou e outras estão condenadas... Os caras constroem nas dunas, cercam a beira do mar e depois o mar retoma...
Às 17 h chego ali, naquela parte as ondas estão furiosas e tiro umas fotos no trapiche de concreto onde as ondas batem. Coloco o Imortal ali e tiro boas fotos.
- Senhor conseguimos...
- Negativo! Vamos em frente!
E assim seguimos em frente até que chegamos a saída de um rio. O sol aparece e tudo fica mais lindo. Do outro lado ainda tem uns dois km de praia que terminam em uns rochedos, mas para passar há uma ponte pênsil.
Ela não tem largura suficiente para o Imortal. Tiro fotos dali e dou por encerrada esta etapa da viagem.
- Senhor, este cerro logo depois é onde está localizada a fortaleza de Santa Tereza. Vamos retomá-la?
- Não. Como posso pelear com um povo tão amável e hospitaleiro?
- Vocês viram aqueles garotos?
- O Uruguay não é o que as autoridades representam. Eles são nossos amigos.
- Que fiquem as fortalezas e Colônia do Sacramento como um presente dos Riograndenses a esse povo amigo.
- Vamos para casa!
Encontro outro garoto de uns dez anos (Sebastian) que corre com seu cavalo pela beira do mar.
Assim como veio, o pelotão se volta para o norte e segue em frente.
- Onde vamos dormir?
- Onde escurecer, como sempre!
Por volta de 18 h subo uma estradinha pelo meio das dunas e enfio carro e barraca entre uma brecha no mato de acácias.
Arrumo tudo e como minha granola assistindo ao espetacular surgimento da lua cheia no mar.
Depois um espetacular reflexo nas águas do Atlântico servem como palco de fundo ao dia mais importante da jornada.

28-08-07 Terça
São 8:36 h, escrevo sentado ao lado da barraca e hay viento, sólo no sé de donde!
- Senhor, como se sente depois de tudo?
- Em paz comigo mesmo!
- A questão é: por quanto tempo?
Fez um frio do cão esta noite, mas já estamos acostumados.
Arrumo tudo e às 10 horas o pelotão está perfilado na praia.
O vento é terral e o avanço é a pano.
O que levei 4 h ontem fiz em hora e meia hoje. Passo do ponto onde saí na praia e sigo até os molhes, só que do lado uruguaio. Encilho o Imortal nas pedras e depois sigo para La Coronilla.
Desmonto a vela, atravesso as dunas e encontro a menina de ontem (suspiro profundo). Passo pela aduana e não resisto:
Tiro uma foto do Imortal bem na frente do prédio da prefectura, qui qui ri qui qui!
- Senhor qual é o placar?
- Pelotão (duas de bike, duas de moto e uma de windcar) 5 X 1 Prefectura
Passo pelo farol para agradecer. Iria seguir em frente, mas descubro que aqui na barra do Chuí tem net, mas só abre às 15 h. Resolvo ficar por aqui, pois o pelotão pertence ao cromossomo XY, ou seja, não pode ficar sozinho numa ilha deserta com um mulherão, ele tem que contar pros outros, hehehehheh

Amanhã de manhã eu sigo para o norte, mas acho que já fizemos história.
Um grand abraço
André

Chuí a Rio Grande

29-08-07 quarta-feira
Barra do Chuí
Amanheceu com um frio tremendo. Uma geladeira!
O vento é um SE quase E, vento de través. Despeço-me de Eduardo e deixo um abraço a Cris e Anderson e sigo puxando para a praia. Paro para montar a vela onde Darlan e Preta me ajudaram quando cheguei.
O plano é chegar até a parte ruim dos conchais e dali seguir no dia seguinte.
Parto só às 10:40 h e às 11 h, já estou passando pelo Hermenegildo. O riacho grande que cruzei na ida se transformou num riachinho de nada. Antes tive que descer do carrinho para cruzar o barranco e mais de trinta metros de largura. Agora... Nothing!
A velocidade é muito boa e uma hora depois do Hermenegildo estou passando pelo local onde fiquei dois dias, por causa da tempestade. Sei que logo adiante começarão os Concheiros, mas não esperava avançar com tal velocidade. Já estou encharcado, pois quando passo nas saídas de riacho a velocidade é tanta que a água sobe pelo espaço entre a calça impermeável e as botas de borracha..
Passam um jipe buzinando muito e uma toyota.
As mãos estão tão congeladas e a dor nas unhas é quase insuportável, quase que arranca umas lágrimas de “saudades do Rio Grande”.
Estou muito veloz, começam os conchais e mesmo com o forte vento o carro vai perdendo velocidade e mais adiante pára.
Não acredito! E eu nem cheguei à pior parte ainda. Achei que na parte menos fofa daria para passar.
- Tenente, que fazemos?
- Arrastem, isso já fazia parte do nosso plano!
Sigo em frente puxando pelos areais, pelo menos descongelo um pouco e penso melhor no que fazer.
Tento seguir pela parte plana, revejo as marcas por onde passei na vinda. Algumas partes ali ficam firmes e avanço no estilo “patinete”, em pé, na longarina do eixo dianteiro.
- Tenente. Isso aqui vai nos matar no cansaço de novo...
- Negativo! Lembram que na parte inclinada, uns dois passos para dentro havia piso firme?
- Sim, só que fica dentro d´água. Como vamos seguir assim?
- Este vento está quase de través, é muito forte e o mar está um pouco mais baixo que na vinda. Acho que podemos tentar.
Como não tinha nada a perder, resolvi seguir pela parte inclinada, um pouco para baixo. O mar, percebendo a manobra ousada dos tauras, avançou enfurecido.
Tomei um banho que passou por cima dos joelhos e lavou o carrinho e a carga.
Na volta da água, as rodas atolavam na areia e eu tinha que pular e desatolar rápido, pois as ondas atacavam sem dó.
Muitas vezes, antes que conseguisse desatolar o carro já estava submerso de novo e, no desespero, começava a praguejar contra o inimigo e xingava o carro junto.
-Senhor, temos que subir.
- Morreremos afogados e congelados, não sei o que vem primeiro...
- Negativo, mantenham suas posições.
- Eles nos detonaram antes porque não conhecíamos o inimigo. Agora essa peleia será decisiva para o futuro do pelotão e só avançaremos se combatermos o inimigo dentro do mar.
- Calar baionetas será luta corpo a corpo!
Apesar de sermos fustigados pelas malditas, percebi que o carro avançava com a força do vento, mesmo atingidos com forças pelas ondas. Se subisse um passo para cima atolava, então só restava manter a posição de combate, pois lá em cima era muito pior.
Finalmente cheguei à bóia encalhada na praia e que demarcava onde iniciava o pior trecho. Ali perto dela foi onde passei a 2ª noite na vinda. Em poucas horas já estava “matando” 3 dias da viagem de ida.
- Preparem-se homens, agora é que vem o pior!
- O que esse cara tá pensando que somos?
- Alguém aqui é 4X4 ou tem guincho?
- Calem-se e concentrem-se no inimigo!
Agora eu sei por que os lobos estão arrepiando. A água do mar simplesmente congela.
O vento forte judia da tripulação e os dedos da mão já não servem para muito, tenho que firmar o cabo da retranca enroscando na mão. Subo na longarina e quando sinto que o carro vai parar devido à força das ondas, desço rápido e empurro com a ajuda da vela para que não encalhe. Apesar da fúria das ondas, estou perdendo o medo do inimigo e combatendo melhor no terreno delas.
- É só isso que tu consegue? Tu não és tudo o que pensas e agora vais sentir a força do pelotão.
E o pelotão canta:
Mas não basta pra ser livre
Ser forte aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude acaba por ser escravo
Mostremos valor constância nesta ímpia e justa guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda a terra....

E vou avançando a pano no trecho onde achei que levaria um dia inteiro para passar.
- Senhor, o inimigo está perdendo as forças e parece que vamos vencer essa batalha decisiva...
- É verdade. Não esmoreçam e cantem de novo.
Por mais terras que eu percorra, não permitas Deus que eu morra
Sem que leve por divisa este “V” que simboliza a vitória que virá...
E assim, cerca de 16 h, o pelotão consegue atravessar os conchais pela segunda vez no inverno.
A vitória é tão retumbante que gaivotas gritam, lobos aplaudem com suas nadadeiras e o mar recua com a desculpa esfarrapada de que é a maré...
Livre dos conchais, avançamos vertiginosamente pela praia mais plana e firme.
Mais 44 min chego ao farol do Albardão. O trecho que me custou 10 dias, (incluindo os 7 parados) agora foi feito em seis horas....
O Sargento Franklin e Magno viram a vela avançando pela praia. Franklin veio ajudar a puxar o carro até o farol.
Depois eles ligam o gerador e tomo um banho quente, pois estou muito congelado. Valeu o sacrifício. Estou radiante e não acredito que fiz em apenas seis horas o que me custou 10 dias. Simplesmente fantástico!
Magno faz uma janta deliciosa e acrescida de um café quente, volto ao normal. Os dedos estavam enrugados e roxos.
Agora eu os considero mais que amigos, são meus “brodys”. Aquelas pessoas especiais onde a amizade e o respeito se tornam superiores ao tempo.

30-08-07 quinta-feira
Acordo cedo, o vento está fraco e parece contra. Chega Edmar e vamos tomar café juntos. Tiro uma foto com Franklin e Magno e depois seguimos, os três, para a praia.
Ali monto a vela (11 h), mas o vento, um través meio contra, está muito fraco e tenho que partir velejando no estilo patinete, em pé, de frente para a proa.
Amarrei o cabo na braçadeira e deixo o Imortal avançar para o norte. Gosto de andar assim, vejo melhor por onde vou passar. É perigoso se pegar velocidade, mas o vento está fraco.
Logo adiante vejo um dos porcos que Edmar cria soltos na beira da praia comendo um bagre morto... Ele sai correndo e logo adiante paro para fotografar o primeiro pingüim vivo que vejo nesta viagem. Ele está sujo de óleo e nem parece temer minha presença enquanto o fotografo.
Sigo em frente e mais adiante estou passando pelo Farol Verga onde dormi no interior.
O trecho de um dia fiz em 3 h com vento fraco....
O vento pára total e assim aproveito para almoçar.
Depois cruzo com um caminhão de Jaguaruna. Ali tem dez pescadores puxando uma rede de cerca de 300 braças, dois na caçamba ajeitando a rede que colocam ao lado de uma enorme canoa que deve ter sido utilizada para colocar a rede no mar. O motorista diz que são da barra do Camacho, perto de Laguna.
Mais adiante tem outro caminhão, este é frigorífico e mais três pescadores recolhem outro peixe.
Uma camionete se aproxima e faz sinais de luzes, é Candinho, da FURG, o mesmo que encontrei perto do Farol Bojuru. Que alegria, Candinho é muito legal e pede para um dos passageiros tirar uma foto de nós dois. Ele está levando o pessoal da FURG ao Chuí. Avisa para cuidar com as saídas de riacho e segue viagem.
O vento aumenta, mas permaneço ali em pé, mesmo com velocidade. Resultado: ao desviar de uma onda, pisei muito forte na guia da roda. O carro desvia rápido para a esquerda e meu corpo segue para a direita. Vou cair e ser atropelado pelo corno. Agarro-me no mastro com força e o demônio enfurecido inclina e capota sobre mim na areia dura.
- Tombo ridículo tenente.
- Paga dez!
- Sim senhor!
Menos mal que não tem ninguém olhando...
Volto a viajar ali, mas logo adiante o vento aumenta muito, o carro pega velocidade demais e sinto que vou me ralar, pois a vela está amarrada e ali na longarina, com velocidade, é o pior lugar para estar.
De repente uma das rodas traseiras está no ar e uma lufada mais forte o faz capotar de novo e bato forte com o ombro na areia dura.
Acho que deslocou algo na clavícula, mas o vexame de outro tombo ridículo e o vento forte me fazem voltar ao cockpit e velejar normal, sentado.
Adiante vejo outro filhote de baleia na praia, mas esse está novo e recém deve ter morrido.
Bato fotos do bichinho e sigo em frente até chegar ao farol Sarita. São 16:44 h, logo irá anoitecer. Animado com o vento mais forte de través meio contra, resolvo seguir em frente e ver o que faço mais adiante.
O tempo passa, está frio e escurece.
- Tenente, que fazemos... Está escuro!
- Sigam velejando!
- Mas poderemos passar sobre algum bagre e furar os pneus...
- Vamos arriscar!
E assim me vou, confiante que com este vento poderia fazer os 130 km do farol Albardão ao Cassino em um único dia; pena que saí só às 11 h e os dias no inverno são muito curtos.
Acontece que nunca velejei no escuro total e ainda com saídas perigosas de riachos...
A escuridão e a praia lisa não me deixam ter noção de velocidade. Às vezes, o carro parece ter parado, coloco os dedos no chão para saber se estamos andando.
- Senhor, fogo na roda dianteira!
- Como assim?
- Atrás da roda dianteira tem algo que parece fogo...
- Seu bugre. Isso aí é porque o mar está fosforescente. Isso é causado por um plâncton...
Vou seguindo, congelando e passando por riachos no escuro e sem ter onde dormir. Agora tenho que chegar ao Cassino e achar a varanda de uma casa.
Já vejo as luzes e o reflexo delas me orienta ao refletir na zona molhada da praia. Assim consigo desviar dos bagres mortos, gaivotas pousadas e alguns lobos que gritam assustados quando passo.
Devo estar a uns 30 km , mas percebo que as luzes e o mar não seguem uma mesma linha. A costa faz uma curva e adiante pegarei o vento frontalmente.
Estou com frio, o tempo passa. Estou com sono e um dos marujos grita:
- Navio fantasma à frente.
- Seremos atacados pelo “holandês voador”!
- Salve-se quem puder!
- Seus boiolas, aquilo lá é um navio fantasma sim, mas é o navio Altair que naufragou há 30 anos...
- E como vamos saber se não morreu alguém?
- Pode ter almas penadas...
- Vocês ouviriam o som gélido dos mortos chamando...
- Sigam em frente!
Confesso que é assustador ver os destroços ali no escuro contra as luzes do Cassino, mas o pelotão já esteve no mundo dos mortos e voltou. Aprendeu que tudo tem sua hora e por enquanto temos uma missão. Quando chegar a hora chegou.
Passo do navio, mas os joelhos tremem tanto de frio ao passar em riachos no escuro que tenho que apóia-los contra o mastro para acabar com a frescura.
Ando mais uma hora no contra vento e finalmente o Imortal pára. Não tem como bordejar no escuro, não fosse o reflexo das luzes na parte molhada, não veria nada.
Decido puxar a pé e vou assim por meia hora até chegar a um riacho.
Olho para o lado e parece haver um mato. As luzes parecem estar entre 10 a 15 km adiante.
Caminhando contra o vento, sem lenço nem documento eu vou... Ralar-me!
São mais de 20:30 h, estou molhado, velejando há oito horas e meia. Vento contra, frio e chovendo fino... Posso levar de duas a cinco horas até as luzes.
Resolvo investigar se ali ao lado há mesmo um mato e acampar.
Sheet! Eram dunas e atrás delas havia uma casinha de pescadores. Ilumino para lá e vejo uma luz fraca. Tem gente. Resolvo olhar em volta. Não têm mato, só dunas.
Um dos pescadores vem até mim com um forcado desses de feno.
Explico a situação, eles pensavam que eu estava roubando sua rede ali em frente...
É seu Oneide, um senhor forte, atarracado e muito gente boa.
Ele diz que eu posso dormir na parte de fora da casa onde tem um puxado. Assim fico livre da chuva, não preciso armar a barraca e posso sair mais cedo amanhã.
Vou olhar a casa, mas há barro e escorrego na lama. Tenho que me apoiar na perna direita onde houve uma grande fratura no acidente. A dor é insuportável e rolo na lama.
Merda! Três tombos no mesmo dia...
Já não bastava ter deslocado o ombro e agora uma dor do cão na perna “renga”.
Fico ali deitado, mas tenho que levantar, pois seu Oneide e Antônio ficaram preocupados.
Aos poucos a dor foi passando e voltei à praia para buscar o Imortal.
Estendi o plástico no chão, na parte detrás da casa, na rua, coloquei roupas secas, comi granola e fui dormir.
Ligo o GPS e descubro que velejei 120 km ... Dois dias para retornar o que levei 13 para ir (Rio Grande ao Chuí), com paradas e tudo.
A chuva aperta, mas estou bem abrigado e livre do vento gelado. Como eu sei que aqui tem muitas jararacas e elas vêm atrás de ratos fico numas tipo assim... Que bah!
- Te pára de frescura vivente!
- Esse bicho não se mexe com o frio, precisa de calor pra se movimentar...
- E se vier atrás de calor aqui no saco de dormir na rua?

31-08-07 sexta-feira
Amanhece com NE médio e com muita chuva fina e fria.
Depois dá uma estiada e vou ajudá-los a recolher a rede ali em frente depois de tomar um delicioso café quente acompanhado de filé de bagre que eles fritaram ontem a noite, uma delícia.
A rede vem com muitos bagres, algumas tainhas e papa-terra. Eles tiram os venenosos esporões com alicate e depois fazem filés. Antônio ajuda Oneide que é seu amigo e pescador.
Oneide explica que a tainha é o único peixe que não come outro peixe e é o único que tem moela.
Diz que a raia menstrua como o cromossomo XX...
- Tenente. Sabe o que um cromossomo disse para o outro?
-????????
- Cromossomos felizes!
- Seu apagadão irritante!
- Paga dez pela piadinha!

Seu Antônio conheceu Henri e seu pai, o Pierre.
O pai de Henri Tem uma estória incrível!
Ele morava no sul da França, próximo aos Pirineus, fronteira com a Espanha.
A Alemanha de Hitler invadia a França e certo dia Pierre saiu para esquiar pelas montanhas. Ele tinha o objetivo de chegar a Inglaterra e lutar contra os invasores, mas foi preso pelos soldados de Franco e foi parar em um campo de concentração.
Ali permaneceu por meses até ser trocado com os ingleses por armas.
Na Inglaterra queria lutar, mas como era aviador experiente, foi induzido a ensinar o pessoal da RAF. Ali permaneceu até o fim da guerra e depois, a trabalho, foi para o Marrocos, EUA, Canadá, Brasil (onde conheceu dona Gesine, mãe de Henri) e dali para o Chile, onde Henri e seu irmão nasceram.
Como seu Pierre não estivesse bem de saúde nas três vezes anteriores, perguntei que achava dele.
Antônio gostava muito dele e falou de Henri também.
Almoço com eles e eles decidem ir embora. Dizem que posso ficar se quiser.
A casa fica aberta, assim o pessoal usa e não depreda, se bem que sempre tem um boludo que estraga.
Eles se vão em uma rural com reboque e em uma moto igualmente com reboque.
Agora são 13:26, o tempo está feio, venta forte e contra, mas acho que me voy.
Tenho que deixar a casa fechada e amarrada com uma cordinha na frente.
Estou pensando em deixar o carrinho na sede da FURG e dali seguir para a casa do Henri, pois não avançarei muito assim.
- Senhor, vamos voltar ao Henri com aquelas meias “cobertores de zorrilho”?
- Não! Cheirem elas agora...
- Estão melhores, como conseguiu isto?
- Esfreguei-as em uma carcaça podre de leão marinho, na gordura em decomposição de um filhote de baleia e pisoteei sobre um bolo de peixes-porcos...
- Só isso?
- Claro que não!
- Depois deixei dois dias na água do mar e deixei-as penduradas sobre uma fogueira.
- Reparou na essência de peixe defumado?
- É verdade. Agora até dá de visitar o Henri novamente...

Arrumo tudo, fecho a casinha e sigo para a praia.
A chuva apertou, estou distraído arrumando os cabos e uma toyota chega quase a meu lado.
Que alegria! É o Henri e Maíra. Foi uma festa só. Ele está de folga e resolveu passear para o sul...
Tivesse eu demorado mais uns 10 min na casa e nenhum teria visto o outro. Ele revela que seu pai faleceu uma semana depois que eu parti (dia dos pais). Fiquei muito triste, pois eu o admirava muito por sua incrível estória e por saber que era muito boa gente como disse Antônio pouco antes.
Henri me seguiu um pouco e resolveu ir um pouco para o sul, pois meu avanço contra o forte NE não seria dos mais rápidos. Menos mal que aqui a praia é larga e firme, permitindo a orça.
Além da orça, tenho que desviar da praia repleta de bagres e seus esporões danosos a qualquer pneu, inclusive de carros.
Uma hora depois (16:30 h) estou passando pela estátua de Iemanjá e seguindo em frente para os molhes do Cassino. Quero encerrar esta etapa.
Fiz estes 10 km em uma hora, fosse a pé, levaria cerca de 3 h contra o vento.
Agora o vento ficou mais fraco e o avanço mais lento. Henri voltou e filma um pouco. Depois vai seguindo, subindo e descendo as dunas com a toyota. Quem deveria estar filmando era eu, não acredito como ele consegue e subir as altas dunas. A toyota chegou a “acavalar” em uma delas e ficou com as rodas dianteiras no ar, um espetáculo.
Faltando dois km o vento diminuiu e quase parou. Segui puxando e às 17:30 h “encilhei o Imortal nos molhes. Grande emoção!
Lavo ao carro e a mim mesmo no mar, pois estou com olhos e roupas entupidos de areia.
Chega um amigo de Henri, é Miguel, muito alegre e divertido. Ele trabalha na FURG como laboratorista, já fez muitas viagens no Comandante Varella, o barco da FURG.
Tiramos muitas fotos ali, nos trilhos dos moles e ao lado das vagonetas.
Depois decido seguir os 4 km até o grupamento naval do sul velejando pelo asfalto...
Eu tinha que tirar essa cisma!
Sou escoltado pela toyota de Henri e pelo carro do Miguel. Cerca de 30 min depois chegamos ao grupamento já no escuro e deixamos o carro ali e sigo com Henri e Maíra a sua casa.
Depois fomos jantar com Miguel e sua esposa, Genomar. Foi muito divertido, Miguel me presenteou com meias novas para substituir as “meias-zorrilho” que o pelotão utilizava. Ri muito, fiquei vermelho, mas a brincadeira foi excelente. Adorei.
O Henri é cercado de ótimos amigos, como o Fred que fraturou a perna em acidente de trabalho e que visitei na vinda. Ele e sua família são gente finíssima e foi muito bom tê-lo conhecido.
O Willy é do Iatch é outro a quem Henri distribui os mails com as estórias do “pelotão”. É legal saber que o pessoal gosta e leva para o lado da brincadeira.

1º -09-07 Domingo
Hoje revi a dona Gesine, ela é dessas pessoas queridas que dá vontade de dar um abraço gostoso. Ela é muito querida e lembra minha mãe.
Ela conta de sua juventude e fala do curso que fez. Acreditem!
Ela não tem carteira de motorista, mas tem brevê de avião... Deve ter sido uma das primeiras mulheres gaúchas a terem brevê. Almoçamos no galeto Caxias, onde antes era o pátio de conserto das máquinas ferroviárias, lugar muito show.
Fomos ao Yatch, revi o simpaticíssimo Willy, o João e fomos passear no Talhamar. Fomos a I. dos Marinheiros, centro de R Grande, 5} Distrito Naval, Pescal (onde em frente morava a vó, na João Pessoa, o Regatas e o Porto Novo, onde estão montando a plataforma petrolífera P53
Depois fomos a festa de aniversário de 80 anos do pai de Julieta, seu Andalécio. Que pessoal mais simpático. Dona Florinda, Tadeu, a irmã de Julieta, Taís e amigos.
Chegamos perto de 23h e as 24 iniciei a escrever. São 6h da manhã e estou terminando. Daqui a pouco sigo viagem. Um grande abraço do amigo
André
Trecho R Grande - Chuy
É isso aí amigos, foi mais feio que peleia de foice no escuro, mas a custa de grande esforço e muita raiva o pelotáo chegou há pouco ao Uruguay, de onde agora vos escrevo. Desculpem a acentuaçáo, mas o teclado é em espanhol e aí complica o vosso "catador de milho".
Cheguei aqui completamente encharcado e com frio de rachar, mas o inimigo abriu o flanco e o pelotáo aproveitou a oportunidade e se jogou pro tudo ou nada e a vitória, antes tarde do que nunca, premiou todo o sofrimento que foram os últimos noventa quilômetros de uma viagem que já chega aos 800 km.
Pensei em desistir, mas o que eu me arrebentei nos tais de "conchais" me deu tanta raiva que agora vou dar marcha-a-ré no caminháo e passar por cima dele de novo, só de raiva!
A máe foi pro hospital, mas me informaram que ela recebe alta hoje e que está bem, por isto o pelotáo volta pra essa guerra sem fim.
Um grande abraço a todos e espero que viajem e se divirtam mais um pouco neste trecho que virou passado.

Rio Grande,13-08-07 Segunda
Eu fiquei táo desesperado para escrever antes de partir que acabei resumindo um pouco da acolhida maravilhosa que recebi de Henri, seus familiares e os de Julieta, sua esposa.
Foi um fim de semana ultra especial, assim como foram os dias que passei com eles durante a viagem do caiaque e da viagem para a Argentina de moto, ano passado.
Muito obrigado amigos!
O Henri ainda foi buscar a câmara de ar no borracheiro e me deixou na Av Atlântica, no centro do Cassino. Ali montei a bagagem e fui entre os eucaliptos até uma lan house mandar as fotos que náo tive tempo de mandar, pois escrevi até às cinco da matina e levantei às sete, pois o coitado do Henri tinha que trabalhar e se atrasou por minha causa.
Fiquei mandando fotos até às 12 h e depois fui para a praia. A lan house ficava exatamente na esquina da rua Porto Alegre, a mesma onde havia o "fantasminha", a casinha de madeira onde sempre passávamos as férias de veráo em nossa infância. Náo havia luz, o lampiáo era de querosene, o leiteiro trazia o leite em garrafas coloridas penduradas na sela... Coisas de High Lander!
Duas pessoas ali vêm me ajudar e tiram fotos.
Vejo a belíssima estátua de Yemanjá na chegada a praia.

- Tenente, o que está fazendo?
- Depositando flores para a santa...
- E desde quando o senhor é adepto de Yemanjá?
- Se ela é táo gostosa como essa estátua, sou adepto desde hijo...
- Pensávamos que como homem do mar o senhor preferisse as sereias...
- Tá louco? Só se eu fosse metade golfinho, fazer as coisas pela metade náo é comigo!
Venta frio e forte, penso em sair amanhá, dormir numa pousada...
- O quê? Já pra peleia!
- Basta um final de semana e já viraram uns molóides1
Parto perto de 13 h e quarenta minutos depois chego aos destroços do navio Altair que naufragou em 1976. Tiro umas fotos e a praia se revela o melhor trecho que passei até agora. Ampla, limpa, firme e melhor, vento favorável.
Mais adiante o vento foi diminuindo e tive que ir bordejando para pegar mais velocidade.
O carro e a estrutura parecem bem, estrala aqui e ali, mas acho que é normal.
No fim, estou no estilo patinete, pois ficou fraco demais.
- Senhor, o Imortal está depressivo!
- Ele náo sabe mais se é carro a vela, patinete, carro de máo, carroça ou cavalo...
- Deixem-no, ele é adolescente e está buscando sua própria identidade...
- Mais queixas...
-O que é agora?
- O soldado sarcófago (barraca) reclama que todos o chamam de "baixinho"!
- É o que sempre digo, quando o pelotáo náo está de peleia começam as picuinhas!

As horas passam, vários riachos sem importância e um ou dois que parei antes para náo me molhar.
Aquela roupa "china" para chuva chupa tudo, deveria ser utilizada para coisas mais úteis como absorventes, por ex.
Em um dos riachos conheço Ernani. Mora em uma casa ali nas dunas e diz que o farol Sarita está a 40 km e que eu posso chegar lá ainda hoje...
Todavia faltam só duas horas para findar o dia, vou tentar!
Depois outro homem se aproxima, pois a vela é visível de longe.
Ele gesticula grosseiramente, quase impondo que eu deveria seguir em sua direçao, mesmo quando eu sinalizo que vou em frente... Só me faltava um chifrudo querendo dar ordens ao pelotáo!
A praia fica mole, vai diminuindo e o vento também. Como já vejo o farol, sigo puxando no final e, já no escuro, chego em linha com o dito cujo, mas ele está muito para dentro, já nas dunas.
Deixo o carro na praia e sigo no escuro em direçáo de duas dunas altas que têm árvores de pinus.
Volto e arrasto o Imortal até a base delas e resolvo montar a barraca sem a lanterna, para aprender para uma situaçáo de emergência.
Náo é que deu certo? O sarcófago até que ficou bem montado.
Ô barraquinha baixinha! Náo dá nem de ficar sentado nela.

14-08-07 Terça
Andei 60 km ontem, mesmo saindo só às 13 h.
Agora sáo 8:18 h, escrevo sentado nas dunas tomando um sol para aquecer um pouco. Parto às 9:40 h com vento favorável e vou cruzando com lobos e gaivotas até que surge uma toyota da marinha. É Axel, pensa que sou o Lúcio, amigo do Nardi e do Henri. é Que Lúcio, além de professor de vela no Yacht de Rio Grande viaja em carros a vela do Nardi.
Paro pra almoçar perto de doze horas e tento alimentar um lobo magro, mas ele recusa o peixe.
Depois sigo puxando, porque o vento parou total. Como deixei a calça china pendurada para secar na retranca, só fui perceber que a dita cuja caiu sei lá onde.
Busco ou náo? Melhor buscar, por pior que seja. Há uma neblina no ar e bastou correr seis minutos para náo ver mais o Imortal. Que tempo esquisito...
Vejo para o fundo matos de pinus e dunas náo muio altas que náo daráo abrigo para o caso de vento ou chuva que estáo previstos para hoje.
Às 15:30 h, finalmente entra o NE e desisto de procurar local para me abrigar, pois vejo o farol Verga ao longe.
Chego rápido lá, recém sáo 16:44 h, mas é melhor me garantir.
Arrasto o Imortal sobre as dunas e o farol tem uma porta na parte de trás. Melhor, está aberto. É uma base de concreto piramidal e uma torre de metal na parte superior.
Está cheio de areia, mas é muito bom abrigo.
Deixo o carro e a vela na duna em frente e coloco o plástico sobre a areia. No meio o saco de dormir e dobro o plástico por cima para reter ar quente e suportar mais uma noite fria.
Agora sáo 18 h, estou sentado dentro do farol Verga enquanto sopra um NE feio lá fora. O carro ficou na moita e ninguém vê lá da praia.
O travesseiro inflável furou (como na viagem do caiaque) entáo vou usar uma garrafa de refri como travesseiro daqui pra frente. Forro com minha manta de lá e fica show!

15-08-07 terça (acho que 1 mês de viagem)
Está nublado e parece que vem chuva. Sáo 7:47 h e náo está táo frio, se bem que estou com o "kit" de dormir: duas meias, dois abrigos, camiseta, jaqueta de neoprene, dois blusóes de lá, japona grossa (que estragou o fecho) e japona fina do Grêmio. Fora luvas e touca de lá, básico!
Estou com erupçóes cutâneas no dorso da máo direita; devem ser por causa da raçáo de guerra, conservantes ou mofo, sei lá!
- Senhor. Estas erupçóes apareceram naqueles exploradores que tentavam achar uma passagem entre o Atlântico e o Pacífico, próximo ao pólo norte...
- O que aconteceu?
- Os que tiveram sorte morreram antes, intoxicados pelas toxinas em alimentos enlatados. O navio ficou aprisionado pelo gelo por três anos, pois os veróes foram muito rigorosos e náo houve degelo.
No fim o navio foi destruído pela pressáo do gelo e os que sobreviveram tentaram ir para o sul, rumo a uma estaçáo baleeira arrastando enormes botes sobre o gelo. A comida acabou, houve casos de antropofagia e náo sobrou ninguém para contar a estória, apenas evidências.
Parece que o nome do navio era Endurance...
- Tudo bem, náo te preocupes, pois os exploradores eram ingleses e o pelotáo foi forjado no Rio Grande e aguenta muito mais que isso!
- Êta índio bagual! Gaúcho barbaridade!
- Senhor, podemos utilizar como enfermeiras aquelas "mulheres da vida" que acompanham o pelotáo numa carroça velha (meu corpo)...
- Quem?
- As irmás Pedritas (pedras no rim) e as gêmeas, as Ernas (2 hérnias de disco).
- É verdade, todo pelotáo é seguido por "Chinas" e além da "especialidade" elas podem servir como enfermeiras...
-Vá chamá-las!
Ao puxar o imortal levei uns sustos, pois toda hora parecia que um carro se aproximava rápido, quase ao meu lado.
Depois é que percebi: era o eco da rebentaçáo batendo na vela.
Parto às 9:40 h, náo há vento e sigo puxando por uma hora. Paro para comer uma laranja e ao olhar para o horizonte fico de cara com as "peças" que essa imensidáo prega aos olhos.
Tu vês algo ao longe, parece uma pessoa, mas depois de avançar muito, percebes que náo passava de uma gaivota. Confundi uma estaca na duna com um farol. Vacas parecem casas, depois carros e finalmente...Vacas!
Sigo em frente e numa duna ao longe vejo vários cachorros descendo e vindo pela praia em minha direçáo. Como náo fico só olhando, deixo o facáo à máo!
Eles retornam para as dunas e vejo uma coisa esquisita ao longe, parece uma neblina branca, mas é um forte vento SW que chega de repente.
- Senhor, estamos sofrendo um ataque! Náo conseguiremos avançar!
- Negativo, aqui a praia é larga e firme, temos espaço para orçar!
- Impossível, senhor!
- Para o pelotáo isso náo existe, sempre teremos um punhal na bota (carta na manga)!
E assim seguimos em frente, bordejando e avançando graças a praia larga e firme.
- Senhor outro ataque de índios, parece que sáo da tribo canídea!
- Calamos as baionetas (facáo)?
- Negativo, acho que vi os chefes deles (pescadores) e náo quero arranjar mais encrencas que já temos.
- Que fazemos?
-Lutem a soco! Acho que estes índios nos confundiram com algum carroçáo de colonos, por causa da lona que cobre a bagagem.
Cara, que inferno. Cerca de quinze cachorros correm a meu ladoenquanto subo e desço a praia. Eles se aproximam dos dois lados e além de velejar tenho que me cuidar para náo ser mordido.
Quando o carro pega velocidade tento atropelá-los, mas os bichos sáo muito rápidos. Aquela zoeira nos meus ouvidos vai me perseguindo, irritando e despertando meu ódio assassino.
Quando o lider deles se aproximou mais perto, acertei um soco que derrubou o corno e este embolou com outro que vinha logo atrás.
- Grande tiro tenente!
O chifrudo voltou a carga e a estes se aliaram outros mais. Para meu azar a praia ficou mole, estreita e o carro atolava.
Aproveitava para jogar areia e conchas nos chifrudos, de preferência nos olhos.
O vento SW cada vez mais forte fez eu cometer um erro. O carro atolou antes de dar o bordo, os chifrudos vieram por cima e na ânsia de acertá-los, deixei a retranca subir e dar a volta com o cabo preso,.
Resultado: quebrou a tala mestra da vela. Logo o pedaço pequeno furou a bainha da tala e ameaçava rasgar a vela.
Fui em frente, os cornos ficaram para trás e como estava atolando direto além do risco de rasgar a vela, resolvi seguir puxando.
Deito o carro para remover a vela. Ela estremece no cháo como um possuído pelo "demo" em terreiro de umbanda.
Dois coices a la pelotáo e o bicho se acalma até que enrolo a corna.
Acontece que com forte vento contra, mar subindo e sem parte firme, seguir em frente era só pra me ferrar.Resolvo almoçar na entrada de um riacho ao abrigo de uma pequena duna e decidir o que fazer.
Para o sul o céu roxo e prenúncio de tempestade. Acampar ali era temerário, mas os pinus ficaram para trás e uma planície de areia e sem dunas era o que tinha para a frente. Apenas tufos de capim colono e salgado.
Que fazer?
Resolvo utilizar o GPS pela primeira vez. Olhando o mapa dele e o que eu tenho calculei que minha única saída seria o farol Albardáo, mas ele estava há cerca de 12 km, eu teria só três horas, arrastando contra o vento e a areia mole, afora o fato que a partir das 13 h o mar sobe cada vez mais.
Que que tu achas cara?
Se a gente aguentar arrastar sem parar chegaremos perto, mas se as forças acabarem vamos morrer na praia, pois se a tempestade nos alcança antes...
Resolvi tentar! Eu náo tenho escolha, é chegar ou chegar!
Começo a marcha desesperada, atolando, me irritando e xingando o vento, o carro e tudo mais que se atravesse no caminho.
Na beira da praia está mole, no meio também, entre as dunas pior. Começo a ficar agoniado e náo adianta simplesmente parar. Se o temporal me pega naquela parte estou ferrado. Sou obrigado a seguir mesmo sabendo que náo vou conseguir. A tempestade chega antes ou minhas forças acabam.
Depois de uma hora vejo o farol na bruma e o céu roxo por trás dele...
Se o vento mais forte e a chuva me alcançarem antes, morrerei na praia. Náo tenho mais forças!
- Pelotáo! Cantem o hino farroupilha...
- Até a pé nós iremos...
- Náo, esse náo
- Como a aurora precursora do farol da Divindade
- Foi o vinte de Setembro, o precursor da Liberdade....
- É isso aí bugrada. Náo desistam!
Pela primeira vez na viagem estou agoniado, pois se náo chegar a tempo vou me ferrar. Faço alongamentos, paro para respirar, estou nas últimas.
Já vejo o farol há duas horas, mas falta mais de hora e meia.
- Alguém jogue um laço e traga esse maldito farol mais pra perto!
No meio de tudo vejo um porco solitário na beira da praia. Pronto, além do extremo cansaço físico estou vendo coisas.
Além disto, vários barcos de pesca sobem a costa a favor do vento, a menos de 1 km da costa. Estáo fazendo arrastáo...
Lembro de Chico Preto, o amigo que ganhei na vila Quinta.
Depois de 3,5 h de caminhada desesperada chego em frente ao farol que está bem para dentro, lá no meio das dunas. Já passa de 18 h, escurece rápido. Deixo o carro e sigo a pé para o farol. Falo com Franklin e outro faroleiro.
Eles dizem que posso ficar, tenho que arrastar o Imortal sobre as dunas moles.
Vejo algo mais próximo da beira e pergunto o que é.
- É um container...
Se for bom, posso ficar lá?
- Como você quiser...
- Vou a pé. a porta está aberta e virada para NW, abriga do SW. Por dentro tem furos na parede SW, mas o vento mudou para SE e dá para encarar.
Arrasto o Imortal até ali, monto a lona e o saco de dormir ao fundo do container e a chuva chega com tudo...
Será que tem um santo me ajudando?
Antes que pense muito, desabo no cháo e durmo. Estou no meu limite físico, quase estafa. Amanhá conserto a tala que quebrou e reaperto uns parafusos.
que dia!
´Náo foi nada, mas andei 30 km contra o vento. Dos 220 km que faltavam de R Grande já fiz 130 km. No total já foram mais de 700 km.
Faltam só 90 km para o Chuí.
A tripulaçáo até já fez uma marchinha de carnaval:
- Hei Chuí, olha eu aqui, olha eu aqui...
Como algo e "apago"!

16-08-07 Quinta
Cara, que dureza! estou estafado.
Desperto cedo e há vento. Caso seja favorável sigo em frente. Todavia é S, bem contra e como choveu direto esta noite além de estar nublado, resolvo ficar e arrumar a tala quebrada além de apertar uns parafusos.
Como já estava previsto, o dia será de descanso da tropa.
Durmo o resto da manhá e a tarde toda foi de chuva. Estivesse nas dunas estaria mal.
Agora sáo 16:11h, o dia se foi, arrumei a tala com silver tape. Aqui no container tem uma espécie de barquinho de fibra com as iniciais FEG (Geologia).
Faltam cerca de 70 km para o Hermenegildo, mas o Henri falou que daqui para a frente há incríveis depósitos de conchas (Conchais) ao longo de 40 km e barrancos de riachos com altura superior a um metro.
Um carro destes ao bater num barranquinho de 20 cm já é uma tragédia a 70 km/h. Vejam o que aconteeu ao meu ao bater na água...
Antes de dormir preparo um kinojo cru com sopa.
- Senhor, está frio...
- Deixem de frescura, o pelotáo é superior ao tempo! Náo precisamos de comida quente!

17-08-07 Sexta
A exemplo de ontem amanhece perto de zero grau centígrados e com forte vento que passou de SE a SW. Arrastar o carro contra o vento e com atoleiro é caixáo. Levanto e congelo rápido. Volto para o saco de dormir.
Aqui no interior cinza deste container tudo o que vejo é um céu polar, meu carro na porta de entrada e o farol preto e branco do Albardáo ao fundo, na dunas.
Escuto o pio dos talhamares, gaivotas e o vento...
- Senhor, estamos entrincheirados aqui já quase pelo segundo dia. Nossas provisóes estáo diminuindo...
Lembrei de Sir Scott, que foi a pé até o pólo sul com mais seis homens. As provisóes foram findando, os mais forte morreram primeiro.
A um dia de chegar no depósito de comida que haviam deixado na ida, foram pegos por violenta tempestade e tiveram que montar acampamento.
A tempestade durou tempo demais e ali eles morreram. Relataram suas últimas horas e a tristeza de terem chegado ao pólo e saber que o Noruegues Amudsen havia estado lá um mes antes, pois ele foi com trenós puxados por cáes e os ingleses de esqui puxando trenós. Eles até levaram uma espécie de snow board, uma invençáo na época, mas que estragaram logo no início.
- Senhor, nós vamos morrer?
- Te pára de frescura! Vocês já enfrentaram coisas piores.
- Lembram da moto em Ushuaia com neve? E aquela outra ao relento nos geisers entre a Bolívia e o Chile com temperatura abaixo de 6 graus negativos.
Nem vou falar das noites de tempestades na Lagoa Mirim nas viagens de windsurf ou de caiaque.
E a pior de todas, naquela tempestade ao atravessarmos de caiaque a Lagoa dos Patos na parte mais larga... Lembram, foram 70 km de travessia, aguentamos a tempestade que iniciou às 23 h até virarmos às 3 h da manhá com ondas de 3 a 4 m. Quase perdemos o caiaque no escuro e só nos salvamos porque havia uma lanterna a prova d'água presa ao pulso e pudemos achar o caiaque que se ia nas ondas. Foram 3 dias sem dormir, tivemos visóes e 24 h depois chegamos do outro lado...
- Quando o inimigo fraqejar, atacaremos!
Tenho que diminuir a comida, pois em trinta dias (incluindo os 15 com o Luigi) gastei só duas das quatro garrafas de granola e só em 4 dias já gastei a metade da terceira.
Agora sáo 13 h, faz muito frio, estou dentro do saco de dormir e o vento contra aumentou, quem sabe amanhá?
O container está todo furado, mas achei uma parte onde náo tem goteiras. O chato é o sopro do vento o tempo todo e eu nem trouxe um radinho desta vez (por falta de espaço). Estou mais ou menos na metade do comprimento da lagoa Mangueira, é uma planície desolada, sem dunas e apenas tufos de capim pioneiro e capim salgado. O pior de tudo é que preciso destas frentes frias se quiser voltar.
Tenho que comprar outra roupa de chuva, pois ficar encharcado nete frio é muito duro.
Perto de 14 h, o Sargento Franklin MR e o cabo Magno MO vieram me buscar. Eles estavam no alto do farol e me viram. Pensaram que eu já tivesse ido.
Dizem para eu dormir em uma da casas do farol. Levo o básico e deixo o carro por ali mesmo.
Almoço com eles uma deliciosa massa e depois chega o vizinho deles, Edmar. Ele traz uma garrafa de cachaça de butiá que bebemos no ato. Aqui eles têm internet e gerador.
Tchê, que frio!
Há 4 casas com telhado em forma de pirâmides, sendo que duas estáo inoperantes.
O farol original foi inaugurado em 1909 e o atual em 1946, tem 44 m de altura (o mais alto da costa Gaúcha) e 42 milhas de alcance. Contando os faroletes, nossa costa tem 19 faróis, sendo que o farol da barra da Lagoa dos Patos foi o primeiro da costa brasileira (construído em 1820), mas este já caiu, (foi substituído pelo atual em 1949) como vários de nossa costa e da Lagoa.
A manutençáo é precária, parece que os governos acham que os faróis náo sáo mais necessários e o fim deles é caírem. O popa participou da recuperaçáo da base do Cristóváo Pereira, mas as coisas náo andam na velocidade necessária.
Inlusive o Franklin está na matéria sobre a recuperaçáo do Cristóváo.

18-08-07 Sábado
Acordo cedo, dou um pulo no container e depois subo no farol. A vista lá de cimav é lindíssima, vejo "meu" container e o carro perdidos nas dunas baixas desta planície desolada, a Lagoa Mangueira, campos e matos de pinos ao norte. Amanhece frio e com vento de SE de novo e náo dá de enfrentar os conchais com vento contra. Parece que iniciam a cerca de 20 km ao sul do farol.
Estou lendo o livro "Areias do Albardáo" de Ulrich Seelizer, Cézar Cardozo e Lauro Barcelos.
Ali explica a formaçáo dos Conchais:
- Há 4 mil anos, havia uma barra na Lagoa Mirim que fechou, formando o banhado do Taim e a Lagoa Mangueira. Hoje, a erosáo da costa próximo ao balneário de Hermenegildo está expondo os depósitos deste antigo canal como testemunho do passado geológico.
Um pouco mais ao norte, em trechos apropriadamente denominados de "concheiros", as ondas cavam grandes quantidades de conchas e moluscos fósseis da plataforma submersa e jogam-na na praia. Junto com pedaços de conchas, sáo depositados dentes fósseis de tubaróes, mamíferos terrestres que viveram há cerca de 15.000 anos, na planície costeira ( mamutes, tigres dente de sabre e preguiças gigantes).
No inverno, as ondas de alta energia e a declividade da praia formam barrancos de 1,20 m de altura na parte alta pouca mobilidade (atoleiros) devido à areia grosseira.
Ou seja, acho que para passar ali terei que arrastar. O Magno falou que a toyota quase capotou numa parte por causa da inclinaçáo e por causa das ondas que estouram ali em cima, agora no inverno.
Descobri que os lobos pesam no máximo 160 kg e que os leóes marinhos chegam aos 300 kg.
Aqueles "ovos" de galinha transparente que achei perto de Quintáo sáo, na verdade, cápsulas com embrióes de moluscos. Tem uns pretos que todos dizem ser de tubaráo, mas na verdade sáo de raias.
Aquele maçaricos pequenos que correm como doidos sáo batuíras, as gaivotas de cabeça preta e perna curta sáo chamadas de Trinta-réis e as chatas, de cabeça preta, gaivotas de capuz.
Estou aqui há 3 dias e pelo jeito vou ficar a quarta. Estou constrangido, náo quero abusar da hospitalidade, mas o pior é que a previsáo para amanhá é de forte chuva e ventos fortes.

19-08-07 Domingo
Tchê, entrou uma frente fria em cima de outra e amanheceu com chuva...
Fiz um discurso inflamado que iria para a peleia de qualquer jeito, mas assim é sacanagem!
Vim aqui na casa deles disposto a partir ou voltar ao container, mas o Franklin mandou eu sentar e "esfriar", pois seguir assim eu náo iria andar nem 10 km.
O pior é que nem roupa de chuva tenho. Ficar molhado com o frio que está fazendo...
O Magno falou que foram registradas ondas de 5 m na Lagoa dos Patos quando ele navegou por lá e o Franklin falou de experiência semelhante.
E eu achando que estava exagerando quando falei que as ondas naquela noite do temporal no caiaque estavam entre 3 a 4 m... Talvez até tivessem mais!
Estes 90 km nem foram percorridos e já se tornaram o pior dos trechos. Estou entrincheirado há 4 dias e tenho que ficar mais um. O pior é que o vento forte está previsto para esta noite.
Agora sáo 21 h, lá fora sopra o maior pau de vento que assobia nos fios da cerca. A chuva chegou junto e forte.
Por isto o pelotáo continua aquartelado.

20-08-07 Segunda
Cara, amanheceu, a chuva parou. Vou partir...
Tchê, sopra um violento vento de SW que assobia nos fios e faz a areia correr como louca pela planície. O mar está de ressaca, alto e a crista das ondas é jogada para trás pela força do vento. Náo há condiçós de prosseguir.
Que merda! Estou aqui já faz cinco noites, náo tenho como sair náo quero abusar da hospitalidade e esse vento corno náo pára...
Saco, que situaçáo!
Vou até o container olhar o carro e caminho pela praia. A areia está mole, o mar lá em cima, náo há condiçóes sequer para arrastar...
- Senhor, isso aqui está parecendo praga de sogra!
- E das brabas!
Faço uma pesquisa rápida. Tive cerca de vinte sogras mais ou menos estáveis e apenas me extressei com duas... Uma delas já morreu!
Dizem que sogra ruim, quando morre vira bruxa... Eu náo acredito!
Mas esse tempo...
- Senhor, vamos morrer como os exploradores do pólo sul. Ficaram acampados na tempestade até as provisóes acabarem. As nossas já estáo no fim...
- Náo se preocupem demais, pois o nosso pelotáo foi reforçado pelo sargento Franklin e pelo cabo Magno. Náo fosse eles o pelotáo estaria virado num esqueleto como os do navio fantasma!
Eles estáo fortificados no farol Albardáo forneceram abrigo e alimento ao pelotáo.
Brody, os caras sáo legais demais, mas eu tenho até vergonha em dizer que náo posso prosseguir. Falo a mim mesmo qu náo vou mais almoçar com eles, que utilizarei a raçáo de guerra, mas eles náo querem nem saber, dizem que é assim mesmo e para eu náo esquentar.
Almoço com eles de novo, Franklin diz que passou um furacáo extra tropical próximo da costa, por isto este vendaval fortíssimo.
Acho que até já identifiquei a sogra, mas essa náo prcisa morrer para se transformar. Acho que ela exagerou!
Pô, furacáo extra tropical...
A bruxa é poderosa. Por isto que os furacóes têm nome de mulher!
- Só há uma coisa mais poderosa que praga de sogra...
- O que é tenente?
- Praga de "falecida"!
- É verdade tenente. Eu conheço um amigo que a "ex" riscou o carro por 3 vezes. Cada vez que ele repintava ela voltava e riscava.
- Ela tinha ciúmes do carro...Isso é normal?
- Claro, sáo coisas do cromossomo XX.
- Cada uma tem ciúmes de coisas náo vivas, como carro, poster de mulheres, do tempo que o marido passa com os amigos...
- Isso é que nem futebol. Vocês já viram jogador de futebol gostar de ser substituído?
- É tenente, mas é a lei da vida. Se náo estáo jogando direito têm que ir pro banco e aguardar uma nova chance!
- Homem náo é assim, ele sempre parte para outra, a natureza sempre se renova.
- Para as mulheres é mais difícil, o tempo de vida útil é menor...
- Isso está mudando. Agora tem botox, silicone, plástica, etc... Há cada coroa!
- Como diz o brody Rojas: Se Deus fez coisa melhor, guardou só para Ele!
- Chega! O que é que estávamos fazendo?
- Iríamos invadir a banda oriental (Uruguai).

21-08-07 Terça
Amanhece com vento contra, mas já decidi que vou partir. A previsáo é que entre vento favorável amanhá quero estar perto do conchal quando ele chegar.
Meus amigos vêm até o container comigo e parto às 12:15 h. Nem parece que fiquei parado por seis dias.
O pelotáo entra no espírito de guerra assim que chega ao local de combate.
Olho atrás e aceno aos amigos perdidos nas dunas.
Sigo arrastando o Imortal contra o vento. Pelo menos a praia está mais firme do que ontem.
Caminho 1 hora, descanso e sigo.
Almoço ao lado de um enorme tronco tomado de cracas.
Ao longe vejo algo. Parece uma casa, depois um carro e depois uma carroça. Só quando chega mais perto é que percebo que é um cavaleiro e dois cavalos. É seu Antônio, tio de Edmar. Aviso que ele foi para a cidade e Antonio resolve voltar.
Passo por muitas saídas de riachos, pequenos meros, toninhas e peixes voadores mortos... Depois vejo uma estranha rocha toda furada e em algumas partes parece haver ovos. Náo sei o que é.
Às 16:30 resolvo parar antes, pois subindo pelo leito de um riacho há uma mata nativa que abrigará em caso de vento norte ou sul.
- Onde acampar tenente?-
- Utilizem o "windcocômetro"!
- Como assim?
- Onde houver mais bosta de vaca é onde fica mais abrigado do vento!

22-08-07 Quarta
Sáo 8:30 h, faz frio está nublado, mas o vento é favorável.
Arrasto o caiaque por dentro do leito de riacho e depois pelas dunas até a praia.
Velejo por cerca de 7 km e chego aos conchais.
A praia fica inclinada, o mar sobe e passa da parte inclinada e forma lagoas mais para cima. Essa parte plana é fofa e atola.
Tenho que voltar a seguir pela zona de "varrido" (onde fica o vai e vem das ondas). O mar sobe com força e lava o pelotáo. Ainda por cima a areia é muito mole e atolamos direto. Parece praga, o carro atola e em seguida as ondas sobem e as rodas ficam até a metade na areia.
Virou um inferno. Depois de sete dias, quando finalmente tem vento a favor, o mar está de ressaca e chego nos conchais, um atoleiro sem fim.
Arrastar um metro é uma agonia. quando olho para o horizonte e vejo esse "mar" de conchas sem fim começo a ficar sem forças.
Tento seguir pelo meio das dunas. Náo dá. Tento a parte plana, atola igual.
Pela beira do mar, além de atolar o mar sobe com fúria e afunda as rodas.
Pensava que sobre as conchas seria mais irme, mas é um inferno.
Aparece um cara de moto e diz que o trecho de conchais tem 40 km, mas que a pior parte tem uns 15 km. Ele diz que depois de uma bóia o trecho melhora um pouco.
Se arrastar cada metro está me matando, como vou andar 15 km assim?
Bem mais distante, há um mato, o único abrigo que vejo. Ele diz que é o Capáo do Pouso, mas nem olho muito. Náo sei como avançar e só me resta seguir como dá.
Cara, é o pior trecho que já peguei. O pior é que justo com vento favorável e estou num imenso atoleiro. Vejo barrancos enormes na saída de riachos. Tem horas que o mar está batendo nestes barrancos e só tenho a opçáo de seguir por cima. Ando uns poucos metros, paro para descansar e volto a fazer força. Náo tenho opçóes e desanimo.
- soldados náo desistam!-
- Náo dá tenente, estamos "mortos". Teremos que acampar...
- Nem pensar. Se entrar vento sul aí sim é que náo sairemos daqui.
Chego a um barranco que tem a altura do meu peito. Seguindo pela parte plana, a pé, eu náo o vi. Só vi quando cheguei em cima. Um perigo para quem vem de carro.
Se bem que hoje náo passa carro normal por aqui, pois quando chega nos barrancos tem que descer para a praia, bem no depósito de conchas. Isto se as ondas estiverem na descida. Se o cara náo for rápido e passar antes da onda subir ou atolar ali, perde o carro. Talvez dê tempo de tirar a frente do som...
Eu náo posso me entregar. Tentei de tudo...
- Tenente, abra a vela. Talvez diminua a força que temos que fazer para arrastar na parte mole.
- Tem razáo!
Abro a vela e deixo o cabo amarrado. Realmente ajudou e assim fui em frente.
Ora descia para as ondas, ora pela parte plana e fofa, ora perto das dunas.
Às vezes deixava o carro e seguia a pé para verificar onde seria mais firme.
Passando por vários lobos marinhos, filhotes de mero e barrancos sem fim finalmente cheguei na tal bóia cilíndrica. Ela estava atirada na praia, deve ter uns 3m de altura e o mesmo de diâmetro.
Um pouco adiante dela tem um container azul, mas destroçado. Vejo muitas coisas esquisitas jogadas de navio como potes de comida com escritos em japonês, garrafas de uísque, caixas de frutas del Uruguay, etc...
Parece vir um temporal e resolvo parar mais cedo e me garantir de novo.
Subo outro riacho, mas o mato náo é táo bom como ontem. Armo a barraca ao lado de um tufo de junco e sobre juncos que cortei com o facáo.
Fiz um kinojo cru com sopa e ficou salgadérrimo. Resultado: bebi toda a água da garrafa que me serve de travesseiro.
Estou encharcado, pois uma onda me pegou de jeito e encheu as botas.

23-08-07 Quinta
É brincadeira. esperei sete dias e quando entra vento favorável estou no meio do pior lugar que poderia estar. Agora amanhece com uma baita cerraçáo e o vento está fraco e parece contra... Fiz 13 km no primeiro dia e 16 ontem... É soda!
Se entrar vento sul forte de novo, ficarei encalhado no conchal.
- Pelotáo, arrumem suas tralhas e partam.
Parto só às 10:50 h e sigo puxando de novo.
achei que iria melhorar, mas o mar continua alto, tudo mole e sem vento para ajudar...
Quando os depósitos ficam perto da praia, é certo que a praia fica inclinada e tudo fica mais difícil e longe.
O avanço é terrível, dá vontade de parar, mas se parar náo terei abrigo e ninguém me levará para a frente. Tenho que controlar meu desespero e seguir em frente.
Estou estafado, pois o carro atola direto por onde quer que eu vá. Se fosse só caminhar já seria difícil, mas arrastar o corno está acabando comigo.
Estou com tanta raiva que nem é bom ter nada por perto.
Para piorar o SE fica muito forte e resolvo desmontar a vela, pois é mais uma resistência que faz piorar o que já está ruim.
Na hora de desmontar as secçóes do mastro, uma parte "colou" e o corno náo desencaixa de jeito nenhum. Chego a entortar a guia da roda dianteira tentando desencaixar, mas nem mexe.
A única coisa que "desencaixa" sáo os parafusos que ainda me mantinham normal.
Cheguei a ficar rouco de tanto berrar toda sorte de palavróes contra tudo o que está acontecendo.
Isso aqui no veráo deve ser uma auto pista e com vento favorável...
Agora no inverno, seguindo para o sul com frente fria colada uma à outra. Frio, vento contra, riachos que náo existem no veráo e muitos temporais.
Fora isso é o mar que sobe e fica quase sem praia firme...
Agora entra outra frente fria depois de um miserável dia de vento a favor...
- Soldados! cuidado, o tenente Issi está uma fera. Vai sobrar para nós.
- Pelotáo! Esse vento e esse atoleiro sem fim nos levaram ao pior grau de resistência até aqui. O nível de mantimentos e água chegou ao ponto crítico..
- Que fazemos, desistimos?
- Pelo contrário! Agora virou questáo pessoal. Se nosssos inimigos pensam que acabaram conosco estáo muito enganados.
- Nem que a gente avance 5 ou 10 km por dia, mas iremos hastear nossa bandeira no Chuí.
se possível vamos invadir o Uruguay até La Coronilla, próximo da fortaleza de Santa Tereza.
- Senhor, estas sáo do tempo do Império. As fortalezas de Sáo Miguel e Santa Tereza além da Colônia do Sacramento passaram para eles pelos tratados entre Portugal e Espanha...
- Bueno, náo importa. Seguir até o Chuí virou questáo de honra.
- Nunca tivemos uma resistência táo feroz e náo viemos de táo longe para desistir a menos de 50 km do objetivo.
As palavras do tenente emocionaram o pelotáo que decidiu lutar até o fim das suas forças.
- Pelotáo! Calar baionetas. Esqueçam as regras, combatam corpo a corpo e náo tenham piedade do inimigo.
... E diante de tal circunstância o pelotáo seguiu os claríns farroupilhas.
Devorando coxilhas se transformou em distância...
- Soldados. que sirvam nossas façanhas de modelo à toda a terra!
Seguindo adiante econtro um jipe com imensas rodas, alto do cháo e um reboque.
Sáo três caras legais e vêm de Santa Vitória do Palmar. Conhecem meu amigo de muitos anos, o advogado Dilson Mespaque que tanto me ajudou nas três vezes que passei por Santa Vitória.
Essa parte náo tem nada, já estou conformado em passar a noite sem abrigo nas dunas, mas a praia melhorou, ficou plana.
Resolvo consultar o GPS e descubro que estou há 6 km de uma casa que marquei no GPS antes de vir. É que "viajei" antes pelo google earth e marquei os pontos que poderiam me ajudar. Talvez tenha valido a pena.
Resolvo encarar uma caminhada forte antes que escureça, pois parece vir chuva de novo.
Caminho como louco e respirando fundo sigo em frente. Vejo umas casa mais para dentro, mas estáo dentro de um banhado. Além disto o astral náo parece legal está cheio de ossos de baleia. Vi uma vértebra com mais de 5 m.
Volto e sigo caminhando. Escurece rápido. Vejo outra casa, mas náo gosto de me aproximar no escuro.
Procuro abrigo entre pequenos tufos nas dunas quando ouço trovoadas. Mudo de idéia, atravesso um banhado fundo e vou até a casa. Náo tem ninguém, está trancada, mas ali é melhor que as dunas.
Arrasto o carro até ali, armo a barraca na face norte e coloco roupa seca.

Fiz tudo no escuro, felizmente a tempestade chegou depois de tudo pronto.
Graças ao esforço final fiz 20 km hoje. Estou na altura do final da Lagoa Mangueira. Faltam cerca de 36 km até o Chuí.
Essa parte me fez pensar em desistir de fazer o caminho de volta, pois atravessar os conchais no inverno e esse atoleiro uma vez é desconhecimento.
Voltar é insano! Mas o pelotáo nunca foi normal...

24-08-07 Sexta
O exército de Thor (o chifrudo) atacou a noite toda. Raios, relâmpagos e trovoadas acompanhadas de vento, chuva e frio.
O pelotáo em sua trincheira (soldado sarcófago) aguentou bem o ataque.
A chuva forte permaneceu até às 10 h e aliada ao vento contra me fez desistir de seguir hoje. Ainda mais que náo tenho roupa de chuva.
Está muito gelado e a minha hora vai chegar. Ontem o mar estava simplesmente gélido, náo sei como os lobos aguentam aquela temperatura.
Passei o dia aqui ao lado da casa que tem um crânio de tartaruga do tamanho da cabeça de um homem.
Agora sáo 15 h, espero amanhá para poder continuar.
A barra tá pesada, mas agora virou questáo pessoal.
Ou eu chego ao Chuí ou náo me chamo Joáo Cardoso, hehhe

25-08-07 Sábado
Acordo com frio, o vento está batendo na barraca...
sonolento ainda me dou conta que estou protegido do sul. Entáo esse vento é leste.

Às armas cidadáos, formem seus batalhóes
O dia da glória chegou
Marchem, marchem!
Que o sangue impuro do inimigo regue os nossos campos.
Sigo cedo para a praia.
Às 9 horas o que resta do pelotáo está enfileirado para o derradeiro combate.
A bandeira farroupilha hasteada ao lado do imortal.
O inimigo lança um vento gélido como o hálito da morte, mas os homens estáo com uma raiva contida que nada irá deter. Velejamos pela beira do mar que encharca os homens já com as roupas em farrapos. Atolamos várias vezes nas partes com os últimos depósitos de conchas, mas a maior parte está firme e o pelotáo finalmente encontra campo firme para lancear o inimigo hasta la muerte!
- Senhor, riachos profundos!
- Ataquem, náo deixem concha sobre concha!
E mergulhando, corpos enregelados, máos quase com cáimbras e endurecidas pelo ardor do combate, seguindo pela zona de atuaçáo das ondas, em hora e meia estamos passando pelo Hermenegildo. Barrancos altos, mar quase tocando as dunas e detritos de construçóes derrubadas pelo mar.
Sem parar seguimos em frente. A vitória é só questáo de tempo, pois o pelotáo esteve no mais baixo degrau e teve forças para fazer seu próprio caminho.
Mais uma hora, depois de passar um enorme riacho a pé, o pelotáo derruba mais um baluarte e encilha os cavalos na Barra do Chuí.
Os soldados dáo hurras, 800 km no inverno e contra o vento...
Dois casais de uruguaios se aproximam e tiram fotos. Tenho que voltar uma parte para chegar às ruas e ir para o farol onde pretendo deixar o carro e seguir para o Chui e comprar mantimentos e uma roupa de chuva.
Consigo me lavar antes de seguir para o farol. Deixo o carro com Gama no Farol e vou pela estrada. Pego carona na caçamba de uma picape com outros uruguaios e sigo até o Chuí. Compro a roupa de chuva, mantimentos e vou me hospedar no mesmo hotel que parei quando passei de caiaque e bici. Fiz o mesmo ano passado quando vim de moto para agradecer a quem me ajudou naquela viagem.
Falei com Sandra e seu esposo (que ficaram com o reboque e a bici) e fui a uma lan house aqui no Uruguai. Fiquei 6 h escrevendo ontem e fui dormir já passando de meia noite. Hoje amanheceu com frio e chuva (normal) e a lan só abriu de tarde. Agora sáo 20:17 h do dia 26, domingo. Estou há mais de 5h e meia escrevendo.
Amanhá volto a barra e sigo para onde o vento me levar.
Muito obrigado pelos mails de apoio. Desculpem se náo respondo, mas estou podre. Queria dizer que sem eles eu náo teria força para fazer o que fiz. Nem falo dos que ajudaram pelo caminho, pois sem eles o pelotáo náo existiria.
Um grande abraço e até a próxima.
André
Pois é, mandei o relato depois de treze horas em dois dias no computador e sigo sob chuva e frio para o lado brasileiro.
Antes dou uma olhada na previsão meteorológica que revela que soprará um vento sul até sexta feira. Então ficou decidido meu destino. O pelotão volta suas armas para o norte, pois além de ser contra o vento, não tenho documentos do carro e a prefectura (que detonou minha viagem de caiaque no Uruguai) estará me esperando. Além disto, aquela vez eu sai do Uruguai na moita, minha pequena vingança. Ano passado fui a Argentina com minha xtz 125 para agradecer a quem me ajudou em parte do caminho. Dali passei ao Uruguai e tive problemas com um boludo na fronteira. O cara mandou eu voltar, eu recusei e ele disse que iria me prender. Assim mesmo não recuei e fiquei ali até às 3 h da manhã e ele foi embora. Os colegas dele resolveram me deixar passar e segui pelo Uruguai para agradecer a quem me ajudou no trecho em que fui de bicicleta rebocando caiaque e carga (mais de 100 kg) por 650 km. Aproveitei e segui pela costa para saber onde poderia velejar mais ao sul caso decidisse viajar em windcar. Descobri que seria en La Coronilla, cerca de 25 km ao sul do Chui.
Aquela viagem de moto foi de 4500 km e na fronteira, a mesma onde tenho de passar agora, de raiva acelerei quando os caras da aduana saíram para ver quem se aproximava. Estou com aquela porcariada de papéis burocráticos deles jogados em uma gaveta.
Atravessei a ponte e adiós!
Então é melhor não mexer no vespeiro!
Vou dormir e um frio de rachar acompanhado de chuva se faz sentir.

27-08-07 Segunda
Tchê, cama com dois cobertores grossos e eu dormindo que nem no sarcófago. Cabeça tapada e encolhido sob as cobertas. A chuva é tão forte que dá de ouvir o barulho da água correndo nas calhas. Ligo a tv, faz 4ºC.
Tomo um banho quente e sigo meu destino.
Vou para a rodoviária e o ônibus parte só as 10:30 h. Aproveito para tomar um delicioso café com leite e volto para a rodoviária. Estou sentado lá no fim e duas pombas entram no prédio e vem caminhando até o lado do meu pé. Fico maravilhado com a calma e a tranquilidade do bichinho. Tiro uma foto da pomba e vou para o ônibus.
Que delícia! Ali dentro está quentinho e vou me deliciando com o calor enquanto vejo a paisagem. Tudo que é bom dura pouco!
Logo chegamos perto do farol. Desembarco no vento gelado e sigo para o farol. Pelo menos parou de chover.
Encontro o sub Gama e o sargento Pepolim, super legal e amigo de Magno e Franklin. Eles me oferecem ajuda e Pepolim chega a me oferecer dois óculos para proteger os olhos. Agradeço de coração, mas desde o acidente naquela saida de riacho-rio não uso mais óculos de proteção.
Arrumo as coisas, está tudo certo. Vento sul até sexta.
Agora chegou a minha hora.
Sigo a estradinha de terra até o asfalto. Ali é só dobrar à direita e seguir para a praia...
O pelotão está com o coração apertado. A sensação é de derrota, como se algo estivesse faltando oprime o peito cheio de cicatrizes de um pelotão que não sabe o que é paz!
- Soldado!
- Sim tenente!
- Aquele acordo ou tratado foi entre que países?
- Portugal e Espanha, senhor!
- A República do Rio Grande participou dele?
- Não, senhor!
- Então porque não vamos a La Coronilla?
- Porque sopra vento sul, porque por várias vezes atravessamos a fronteira sem permissão, porque a prefectura...
- Não me fale destes boludos!
- Dizem que nem bicicleta pode descer para a praia...
- Com essa vela de mais de cinco metros de altura somos visíveis como um holofote em corredor escuro...
- Então você quer dizer que viajamos 800 km no pior inverno dos últimos 44 anos, contra o vento, com cicatrizes que não curaram ainda, atoleiros, acidentes, lutas sem fim... Para simplesmente virarem as costas e desistirem sem tentar?
Silêncio...
- Soldados, vocês deveriam se orgulhar, vocês foram forjados no ardor das batalhas, no orgulho de ser do sul, nos costumes e na tradição.
- Eu não acredito que ninguém aqui do pelotão esteja satisfeito consigo mesmo.
- Nós temos origem em um povo que sabe dizer não e aprende desde cedo a fazer seu próprio caminho, mesmo que pareça não ter fim ou mesmo que alguns tombem no campo de batalha.
- O que sobra disto tudo não é um ou outro soldado, mas o legado que deixamos para as outras gerações.
- Todos sabemos que um Gaúcho não se dobra em combate e que se ele cair outros cem tomarão seu lugar.
- Calar baionetas, nós vamos para o Uruguai ou onde quer que seja!
- O pelotão inteiro explode de alegria e os hurras são ouvidos até mesmo para os lados da banda oriental.
E assim o pelotão dobra para a esquerda e segue para a fronteira.
Já chegando na ponte, peço a um senhor tirar uma foto. Para minha agradável surpresa sua linda filha se aproxima para tirar a foto ao lado.
Nem entrei no Uruguai e já deram um jeito de machucar meu coração...
O primeiro prédio ao passar a ponte é o da Prefectura Naval Nacional, mas devido aos gritos de hurras do pelotão todos estão aquartelados e fingem não ver.
Resoluto, o pelotão se dirige para a aduana e fala com o simpático sr Gerardo!
Ele nem pede minha identidade...
- Puedo seguir por el pavimiento?
- Si!
- Si no vuelvo hoy, no hay problema?
- No!
- Puedo sacar una foto de ud.?
- Si!
Não é por nada, mas se os boludos me pararem adiante tenho a foto com quem me deixou passar.
Vou em frente, nem olho para trás!
Quando estou longe o suficiente dou um salto no ar.
Lembrei da cena final do filme Expresso da Meia noite, quando um cara ficou preso em uma prisão Turca por muitos anos. Quase ficou louco, mas um dia, sem querer, matou o guarda que mais lhe torturava.
Desesperado, colocou as roupas do Guarda e foi em direção ao portão de saída da prisão. As portas foram se abrindo até que ficou do lado de fora daquela terrível prisão. Quando estava longe o suficiente, ele deu um salto no ar.
O pelotão está radiante, não cabe em si de tanta alegria.
- Senhor, agora é só seguir contra o vento pelo asfalto e voltar de La Coronilla velejando...
- Negativo! Nós vamos pela praia!
- Mas senhor...
- Isto é uma ordem soldado!
Entro por ruas, mas o fim delas é nas dunas altas. Pergunto aos moradores se hay paso!
- Es mejor que te vayas cerca de la prefectura...
Dou um largo sorriso e vou para as dunas altas.
Com um pouco de dificuldade chego a praia e sigo para o sul.
Para minha surpresa o vento sul pega um pouco de través. Acho que dá de encarar na vela.
- Mas senhor! Vai estragar nosso disfarce, vamos ser vistos com esta vela montada...
- Eles que corram atrás!
Monto a vela, o peito parece pequeno para tanta felicidade. Eu tenho a chance de poder lutar para realizar o objetivo então vou entrar nessa com tudo.
Meus pés e o cabo de puxar estão sujos de óleo.
- Tenente, isso sim é que é jogo sujo!
São 13 h, não quero saber nem de comer nem de beber água até chegar a La Coronilla!
Vou partes a pano, partes no estilo "patinete" e partes puxando, pois o vento está diminuindo rapidamente.
IUUUUUUUUUUUHHHHHHHHHHHUUUUUUUUUUUUUU!
Como é bom jogar a vida ao destino e ter estes momentos máximos de alegria, de liberdade e poder ao mesmo tempo. São momentos que tu mesmo constrói e que nada consegue apagar depois. São tão intensos que ficam para sempre. Um destes foi quando entrei entre Paraguai e Argentina, depois de vir remando de Brasília por dois meses e seguir assim depois de tantos percalços.
São vitórias alcançadas através da ajuda de familiares, amigos e pessoas maravilhosas que vou conhecendo nas trilhas da vida.
A vocês eu dedico estas pequenas vitórias, pois elas não são apenas vitórias, são realizações dos sonhos de muitos que não tem a felicidade ou oportunidade de fazer o que estou fazendo e a alegria que sentem por mim é tão ou mais intensa do que a minha própria.
É por isto que nunca desisto, acho que ajudo a realizar pequenos sonhos dos outros além dos meus.
A costa aqui é de dunas altas cobertas de matos de acácias e se precisar é fácil de achar lugar ali no meio para passar a noite.
Vejo leões, lobos, papa-terras gigantes e até uma tartaruga marinha que não havia visto até então, todos mortos.
Há muitas gaivotas e quero-queros.
Depois se aproxima uma carroça com três garotos simpáticos (Franklim, Brian e Arturo). O mar começa a subir e a praia fica pequena. De moto eu passei aqui de noite e não vi muitas coisas que vejo agora.
Adiante eu vejo a construção onde desci com a moto para a praia, é La Coronilla, o destino perseguido arduamente contra o vento por mais de 800 km...
Já não tem mais vento, mas as pernas estão no rítmo do coração e nem precisam de alongamentos.
Agora o pelotão é coração!
Adiante vejo um filhote de baleia. Está mais inteiro do que aquele que encontrei na barra, em São José do Norte.
Mais um pouco e chego na construção. O mar está quase batendo nos barrancos e a cor da argila ali é verde...
Algumas construções o mar derrubou e outras estão condenadas... Os caras constroem nas dunas, cercam a beira do mar e depois o mar retoma...
Às 17 h chego ali, naquela parte as ondas estão furiosas e tiro umas fotos no trapiche de concreto onde as ondas batem. Coloco o Imortal ali e tiro boas fotos.
- Senhor conseguimos...
- Negativo! Vamos em frente!
E assim seguimos em frente até que chegamos a saída de um rio. O sol aparece e tudo fica mais lindo. Do outro lado ainda tem uns dois km de praia que terminam em uns rochedos, mas para passar há uma ponte pênsil.
Ela não tem largura suficiente para o Imortal. Tiro fotos dali e dou por encerrada esta etapa da viagem.
- Senhor, este cerro logo depois é onde está localizada a fortaleza de Santa Tereza. Vamos retomá-la?
- Não. Como posso pelear com um povo tão amável e hospitaleiro?
- Vocês viram aqueles garotos?
- O Uruguay não é o que as autoridades representam. Eles são nossos amigos.
- Que fiquem as fortalezas e Colônia do Sacramento como um presente dos Riograndenses a esse povo amigo.
- Vamos para casa!
Encontro outro garoto de uns dez anos (Sebastian) que corre com seu cavalo pela beira do mar.
Assim como veio, o pelotão se volta para o norte e segue em frente.
- Onde vamos dormir?
- Onde escurecer, como sempre!
Por volta de 18 h subo uma estradinha pelo meio das dunas e enfio carro e barraca entre uma brecha no mato de acácias.
Arrumo tudo e como minha granola assistindo ao espetacular surgimento da lua cheia no mar.
Depois um espetacular reflexo nas águas do Atlântico servem como palco de fundo ao dia mais importante da jornada.

28-08-07 Terça
São 8:36 h, escrevo sentado ao lado da barraca e hay viento, sólo no sé de donde!
- Senhor, como se sente depois de tudo?
- Em paz comigo mesmo!
- A questão é: por quanto tempo?
Fez um frio do cão esta noite, mas já estamos acostumados.
Arrumo tudo e às 10 horas o pelotão está perfilado na praia.
O vento é terral e o avanço é a pano.
O que levei 4 h ontem fiz em hora e meia hoje. Passo do ponto onde saí na praia e sigo até os molhes, só que do lado uruguaio. Encilho o Imortal nas pedras e depois sigo para La Coronilla.
Desmonto a vela, atravesso as dunas e encontro a menina de ontem (suspiro profundo). Passo pela aduana e não resisto:
Tiro uma foto do Imortal bem na frente do prédio da prefectura, qui qui ri qui qui!
- Senhor qual é o placar?
- Pelotão (duas de bike, duas de moto e uma de windcar) 5 X 1 Prefectura
Passo pelo farol para agradecer. Iria seguir em frente, mas descubro que aqui na barra do Chuí tem net, mas só abre às 15 h. Resolvo ficar por aqui, pois o pelotão pertence ao cromossomo XY, ou seja, não pode ficar sozinho numa ilha deserta com um mulherão, ele tem que contar pros outros, hehehehheh

Amanhã de manhã eu sigo para o norte, mas acho que já fizemos história.
Um grande abraço

André

Chuí a Rio Grande

29-08-07 quarta-feira
Barra do Chuí
Amanheceu com um frio tremendo. Uma geladeira!
O vento é um SE quase E, vento de través. Despeço-me de Eduardo e deixo um abraço a Cris e Anderson e sigo puxando para a praia. Paro para montar a vela onde Darlan e Preta me ajudaram quando cheguei.
O plano é chegar até a parte ruim dos conchais e dali seguir no dia seguinte.
Parto só às 10:40 h e às 11 h, já estou passando pelo Hermenegildo. O riacho grande que cruzei na ida se transformou num riachinho de nada. Antes tive que descer do carrinho para cruzar o barranco e mais de trinta metros de largura. Agora... Nothing!
A velocidade é muito boa e uma hora depois do Hermenegildo estou passando pelo local onde fiquei dois dias, por causa da tempestade. Sei que logo adiante começarão os Concheiros, mas não esperava avançar com tal velocidade. Já estou encharcado, pois quando passo nas saídas de riacho a velocidade é tanta que a água sobe pelo espaço entre a calça impermeável e as botas de borracha..
Passam um jipe buzinando muito e uma toyota.
As mãos estão tão congeladas e a dor nas unhas é quase insuportável, quase que arranca umas lágrimas de “saudades do Rio Grande”.
Estou muito veloz, começam os conchais e mesmo com o forte vento o carro vai perdendo velocidade e mais adiante pára.
Não acredito! E eu nem cheguei à pior parte ainda. Achei que na parte menos fofa daria para passar.
- Tenente, que fazemos?
- Arrastem, isso já fazia parte do nosso plano!
Sigo em frente puxando pelos areais, pelo menos descongelo um pouco e penso melhor no que fazer.
Tento seguir pela parte plana, revejo as marcas por onde passei na vinda. Algumas partes ali ficam firmes e avanço no estilo “patinete”, em pé, na longarina do eixo dianteiro.
- Tenente. Isso aqui vai nos matar no cansaço de novo...
- Negativo! Lembram que na parte inclinada, uns dois passos para dentro havia piso firme?
- Sim, só que fica dentro d´água. Como vamos seguir assim?
- Este vento está quase de través, é muito forte e o mar está um pouco mais baixo que na vinda. Acho que podemos tentar.
Como não tinha nada a perder, resolvi seguir pela parte inclinada, um pouco para baixo. O mar, percebendo a manobra ousada dos tauras, avançou enfurecido.
Tomei um banho que passou por cima dos joelhos e lavou o carrinho e a carga.
Na volta da água, as rodas atolavam na areia e eu tinha que pular e desatolar rápido, pois as ondas atacavam sem dó.
Muitas vezes, antes que conseguisse desatolar o carro já estava submerso de novo e, no desespero, começava a praguejar contra o inimigo e xingava o carro junto.
-Senhor, temos que subir.
- Morreremos afogados e congelados, não sei o que vem primeiro...
- Negativo, mantenham suas posições.
- Eles nos detonaram antes porque não conhecíamos o inimigo. Agora essa peleia será decisiva para o futuro do pelotão e só avançaremos se combatermos o inimigo dentro do mar.
- Calar baionetas será luta corpo a corpo!
Apesar de sermos fustigados pelas malditas, percebi que o carro avançava com a força do vento, mesmo atingidos com forças pelas ondas. Se subisse um passo para cima atolava, então só restava manter a posição de combate, pois lá em cima era muito pior.
Finalmente cheguei à bóia encalhada na praia e que demarcava onde iniciava o pior trecho. Ali perto dela foi onde passei a 2ª noite na vinda. Em poucas horas já estava “matando” 3 dias da viagem de ida.
- Preparem-se homens, agora é que vem o pior!
- O que esse cara tá pensando que somos?
- Alguém aqui é 4X4 ou tem guincho?
- Calem-se e concentrem-se no inimigo!
Agora eu sei por que os lobos estão arrepiando. A água do mar simplesmente congela.
O vento forte judia da tripulação e os dedos da mão já não servem para muito, tenho que firmar o cabo da retranca enroscando na mão. Subo na longarina e quando sinto que o carro vai parar devido à força das ondas, desço rápido e empurro com a ajuda da vela para que não encalhe. Apesar da fúria das ondas, estou perdendo o medo do inimigo e combatendo melhor no terreno delas.
- É só isso que tu consegue? Tu não és tudo o que pensas e agora vais sentir a força do pelotão.
E o pelotão canta:
Mas não basta pra ser livre
Ser forte aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude acaba por ser escravo
Mostremos valor constância nesta ímpia e justa guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda a terra....

E vou avançando a pano no trecho onde achei que levaria um dia inteiro para passar.
- Senhor, o inimigo está perdendo as forças e parece que vamos vencer essa batalha decisiva...
- É verdade. Não esmoreçam e cantem de novo.
Por mais terras que eu percorra, não permitas Deus que eu morra
Sem que leve por divisa este “V” que simboliza a vitória que virá...
E assim, cerca de 16 h, o pelotão consegue atravessar os conchais pela segunda vez no inverno.
A vitória é tão retumbante que gaivotas gritam, lobos aplaudem com suas nadadeiras e o mar recua com a desculpa esfarrapada de que é a maré...
Livre dos conchais, avançamos vertiginosamente pela praia mais plana e firme.
Mais 44 min chego ao farol do Albardão. O trecho que me custou 10 dias, (incluindo os 7 parados) agora foi feito em seis horas....
O Sargento Franklin e Magno viram a vela avançando pela praia. Franklin veio ajudar a puxar o carro até o farol.
Depois eles ligam o gerador e tomo um banho quente, pois estou muito congelado. Valeu o sacrifício. Estou radiante e não acredito que fiz em apenas seis horas o que me custou 10 dias. Simplesmente fantástico!
Magno faz uma janta deliciosa e acrescida de um café quente, volto ao normal. Os dedos estavam enrugados e roxos.
Agora eu os considero mais que amigos, são meus “brodys”. Aquelas pessoas especiais onde a amizade e o respeito se tornam superiores ao tempo.

30-08-07 quinta-feira
Acordo cedo, o vento está fraco e parece contra. Chega Edmar e vamos tomar café juntos. Tiro uma foto com Franklin e Magno e depois seguimos, os três, para a praia.
Ali monto a vela (11 h), mas o vento, um través meio contra, está muito fraco e tenho que partir velejando no estilo patinete, em pé, de frente para a proa.
Amarrei o cabo na braçadeira e deixo o Imortal avançar para o norte. Gosto de andar assim, vejo melhor por onde vou passar. É perigoso se pegar velocidade, mas o vento está fraco.
Logo adiante vejo um dos porcos que Edmar cria soltos na beira da praia comendo um bagre morto... Ele sai correndo e logo adiante paro para fotografar o primeiro pingüim vivo que vejo nesta viagem. Ele está sujo de óleo e nem parece temer minha presença enquanto o fotografo.
Sigo em frente e mais adiante estou passando pelo Farol Verga onde dormi no interior.
O trecho de um dia fiz em 3 h com vento fraco....
O vento pára total e assim aproveito para almoçar.
Depois cruzo com um caminhão de Jaguaruna. Ali tem dez pescadores puxando uma rede de cerca de 300 braças, dois na caçamba ajeitando a rede que colocam ao lado de uma enorme canoa que deve ter sido utilizada para colocar a rede no mar. O motorista diz que são da barra do Camacho, perto de Laguna.
Mais adiante tem outro caminhão, este é frigorífico e mais três pescadores recolhem outro peixe.
Uma camionete se aproxima e faz sinais de luzes, é Candinho, da FURG, o mesmo que encontrei perto do Farol Bojuru. Que alegria, Candinho é muito legal e pede para um dos passageiros tirar uma foto de nós dois. Ele está levando o pessoal da FURG ao Chuí. Avisa para cuidar com as saídas de riacho e segue viagem.
O vento aumenta, mas permaneço ali em pé, mesmo com velocidade. Resultado: ao desviar de uma onda, pisei muito forte na guia da roda. O carro desvia rápido para a esquerda e meu corpo segue para a direita. Vou cair e ser atropelado pelo corno. Agarro-me no mastro com força e o demônio enfurecido inclina e capota sobre mim na areia dura.
- Tombo ridículo tenente.
- Paga dez!
- Sim senhor!
Menos mal que não tem ninguém olhando...
Volto a viajar ali, mas logo adiante o vento aumenta muito, o carro pega velocidade demais e sinto que vou me ralar, pois a vela está amarrada e ali na longarina, com velocidade, é o pior lugar para estar.
De repente uma das rodas traseiras está no ar e uma lufada mais forte o faz capotar de novo e bato forte com o ombro na areia dura.
Acho que deslocou algo na clavícula, mas o vexame de outro tombo ridículo e o vento forte me fazem voltar ao cockpit e velejar normal, sentado.
Adiante vejo outro filhote de baleia na praia, mas esse está novo e recém deve ter morrido.
Bato fotos do bichinho e sigo em frente até chegar ao farol Sarita. São 16:44 h, logo irá anoitecer. Animado com o vento mais forte de través meio contra, resolvo seguir em frente e ver o que faço mais adiante.
O tempo passa, está frio e escurece.
- Tenente, que fazemos... Está escuro!
- Sigam velejando!
- Mas poderemos passar sobre algum bagre e furar os pneus...
- Vamos arriscar!
E assim me vou, confiante que com este vento poderia fazer os 130 km do farol Albardão ao Cassino em um único dia; pena que saí só às 11 h e os dias no inverno são muito curtos.
Acontece que nunca velejei no escuro total e ainda com saídas perigosas de riachos...
A escuridão e a praia lisa não me deixam ter noção de velocidade. Às vezes, o carro parece ter parado, coloco os dedos no chão para saber se estamos andando.
- Senhor, fogo na roda dianteira!
- Como assim?
- Atrás da roda dianteira tem algo que parece fogo...
- Seu bugre. Isso aí é porque o mar está fosforescente. Isso é causado por um plâncton...
Vou seguindo, congelando e passando por riachos no escuro e sem ter onde dormir. Agora tenho que chegar ao Cassino e achar a varanda de uma casa.
Já vejo as luzes e o reflexo delas me orienta ao refletir na zona molhada da praia. Assim consigo desviar dos bagres mortos, gaivotas pousadas e alguns lobos que gritam assustados quando passo.
Devo estar a uns 30 km, mas percebo que as luzes e o mar não seguem uma mesma linha. A costa faz uma curva e adiante pegarei o vento frontalmente.
Estou com frio, o tempo passa. Estou com sono e um dos marujos grita:
- Navio fantasma à frente.
- Seremos atacados pelo “holandês voador”!
- Salve-se quem puder!
- Seus boiolas, aquilo lá é um navio fantasma sim, mas é o navio Altair que naufragou há 30 anos...
- E como vamos saber se não morreu alguém?
- Pode ter almas penadas...
- Vocês ouviriam o som gélido dos mortos chamando...
- Sigam em frente!
Confesso que é assustador ver os destroços ali no escuro contra as luzes do Cassino, mas o pelotão já esteve no mundo dos mortos e voltou. Aprendeu que tudo tem sua hora e por enquanto temos uma missão. Quando chegar a hora chegou.
Passo do navio, mas os joelhos tremem tanto de frio ao passar em riachos no escuro que tenho que apóia-los contra o mastro para acabar com a frescura.
Ando mais uma hora no contra vento e finalmente o Imortal pára. Não tem como bordejar no escuro, não fosse o reflexo das luzes na parte molhada, não veria nada.
Decido puxar a pé e vou assim por meia hora até chegar a um riacho.
Olho para o lado e parece haver um mato. As luzes parecem estar entre 10 a 15 km adiante.
Caminhando contra o vento, sem lenço nem documento eu vou... Ralar-me!
São mais de 20:30 h, estou molhado, velejando há oito horas e meia. Vento contra, frio e chovendo fino... Posso levar de duas a cinco horas até as luzes.
Resolvo investigar se ali ao lado há mesmo um mato e acampar.
Sheet! Eram dunas e atrás delas havia uma casinha de pescadores. Ilumino para lá e vejo uma luz fraca. Tem gente. Resolvo olhar em volta. Não têm mato, só dunas.
Um dos pescadores vem até mim com um forcado desses de feno.
Explico a situação, eles pensavam que eu estava roubando sua rede ali em frente...
É seu Oneide, um senhor forte, atarracado e muito gente boa.
Ele diz que eu posso dormir na parte de fora da casa onde tem um puxado. Assim fico livre da chuva, não preciso armar a barraca e posso sair mais cedo amanhã.
Vou olhar a casa, mas há barro e escorrego na lama. Tenho que me apoiar na perna direita onde houve uma grande fratura no acidente. A dor é insuportável e rolo na lama.
Merda! Três tombos no mesmo dia...
Já não bastava ter deslocado o ombro e agora uma dor do cão na perna “renga”.
Fico ali deitado, mas tenho que levantar, pois seu Oneide e Antônio ficaram preocupados.
Aos poucos a dor foi passando e voltei à praia para buscar o Imortal.
Estendi o plástico no chão, na parte detrás da casa, na rua, coloquei roupas secas, comi granola e fui dormir.
Ligo o GPS e descubro que velejei 120 km... Dois dias para retornar o que levei 13 para ir (Rio Grande ao Chuí), com paradas e tudo.
A chuva aperta, mas estou bem abrigado e livre do vento gelado. Como eu sei que aqui tem muitas jararacas e elas vêm atrás de ratos fico numas tipo assim... Que bah!
- Te pára de frescura vivente!
- Esse bicho não se mexe com o frio, precisa de calor pra se movimentar...
- E se vier atrás de calor aqui no saco de dormir na rua?

31-08-07 sexta-feira
Amanhece com NE médio e com muita chuva fina e fria.
Depois dá uma estiada e vou ajudá-los a recolher a rede ali em frente depois de tomar um delicioso café quente acompanhado de filé de bagre que eles fritaram ontem a noite, uma delícia.
A rede vem com muitos bagres, algumas tainhas e papa-terra. Eles tiram os venenosos esporões com alicate e depois fazem filés. Antônio ajuda Oneide que é seu amigo e pescador.
Oneide explica que a tainha é o único peixe que não come outro peixe e é o único que tem moela.
Diz que a raia menstrua como o cromossomo XX...
- Tenente. Sabe o que um cromossomo disse para o outro?
-????????
- Cromossomos felizes!
- Seu apagadão irritante!
- Paga dez pela piadinha!

Seu Antônio conheceu Henri e seu pai, o Pierre.
O pai de Henri Tem uma estória incrível!
Ele morava no sul da França, próximo aos Pirineus, fronteira com a Espanha.
A Alemanha de Hitler invadia a França e certo dia Pierre saiu para esquiar pelas montanhas. Ele tinha o objetivo de chegar a Inglaterra e lutar contra os invasores, mas foi preso pelos soldados de Franco e foi parar em um campo de concentração.
Ali permaneceu por meses até ser trocado com os ingleses por armas.
Na Inglaterra queria lutar, mas como era aviador experiente, foi induzido a ensinar o pessoal da RAF. Ali permaneceu até o fim da guerra e depois, a trabalho, foi para o Marrocos, EUA, Canadá, Brasil (onde conheceu dona Gesine, mãe de Henri) e dali para o Chile, onde Henri e seu irmão nasceram.
Como seu Pierre não estivesse bem de saúde nas três vezes anteriores, perguntei que achava dele.
Antônio gostava muito dele e falou de Henri também.
Almoço com eles e eles decidem ir embora. Dizem que posso ficar se quiser.
A casa fica aberta, assim o pessoal usa e não depreda, se bem que sempre tem um boludo que estraga.
Eles se vão em uma rural com reboque e em uma moto igualmente com reboque.
Agora são 13:26, o tempo está feio, venta forte e contra, mas acho que me voy.
Tenho que deixar a casa fechada e amarrada com uma cordinha na frente.
Estou pensando em deixar o carrinho na sede da FURG e dali seguir para a casa do Henri, pois não avançarei muito assim.
- Senhor, vamos voltar ao Henri com aquelas meias “cobertores de zorrilho”?
- Não! Cheirem elas agora...
- Estão melhores, como conseguiu isto?
- Esfreguei-as em uma carcaça podre de leão marinho, na gordura em decomposição de um filhote de baleia e pisoteei sobre um bolo de peixes-porcos...
- Só isso?
- Claro que não!
- Depois deixei dois dias na água do mar e deixei-as penduradas sobre uma fogueira.
- Reparou na essência de peixe defumado?
- É verdade. Agora até dá de visitar o Henri novamente...

Arrumo tudo, fecho a casinha e sigo para a praia.
A chuva apertou, estou distraído arrumando os cabos e uma toyota chega quase a meu lado.
Que alegria! É o Henri e Maíra. Foi uma festa só. Ele está de folga e resolveu passear para o sul...
Tivesse eu demorado mais uns 10 min na casa e nenhum teria visto o outro. Ele revela que seu pai faleceu uma semana depois que eu parti (dia dos pais). Fiquei muito triste, pois eu o admirava muito por sua incrível estória e por saber que era muito boa gente como disse Antônio pouco antes.
Henri me seguiu um pouco e resolveu ir um pouco para o sul, pois meu avanço contra o forte NE não seria dos mais rápidos. Menos mal que aqui a praia é larga e firme, permitindo a orça.
Além da orça, tenho que desviar da praia repleta de bagres e seus esporões danosos a qualquer pneu, inclusive de carros.
Uma hora depois (16:30 h) estou passando pela estátua de Iemanjá e seguindo em frente para os molhes do Cassino. Quero encerrar esta etapa.
Fiz estes 10 km em uma hora, fosse a pé, levaria cerca de 3 h contra o vento.
Agora o vento ficou mais fraco e o avanço mais lento. Henri voltou e filma um pouco. Depois vai seguindo, subindo e descendo as dunas com a toyota. Quem deveria estar filmando era eu, não acredito como ele consegue e subir as altas dunas. A toyota chegou a “acavalar” em uma delas e ficou com as rodas dianteiras no ar, um espetáculo.
Faltando dois km o vento diminuiu e quase parou. Segui puxando e às 17:30 h “encilhei o Imortal nos molhes. Grande emoção!
Lavo ao carro e a mim mesmo no mar, pois estou com olhos e roupas entupidos de areia.
Chega um amigo de Henri, é Miguel, muito alegre e divertido. Ele trabalha na FURG como laboratorista, já fez muitas viagens no Comandante Varella, o barco da FURG.
Tiramos muitas fotos ali, nos trilhos dos moles e ao lado das vagonetas.
Depois decido seguir os 4 km até o grupamento naval do sul velejando pelo asfalto...
Eu tinha que tirar essa cisma!
Sou escoltado pela toyota de Henri e pelo carro do Miguel. Cerca de 30 min depois chegamos ao grupamento já no escuro e deixamos o carro ali e sigo com Henri e Maíra a sua casa.
Depois fomos jantar com Miguel e sua esposa, Genomar. Foi muito divertido, Miguel me presenteou com meias novas para substituir as “meias-zorrilho” que o pelotão utilizava. Ri muito, fiquei vermelho mas a brincadeira foi excelente. Adorei.
O Henri é cercado de ótimos amigos, como o Fred que fraturou a perna em acidente de trabalho e que visitei na vinda. Ele e sua família são gente finíssima e foi muito bom tê-lo conhecido.
O Willy é do Iatch é outro a quem Henri distribui os mails com as estórias do “pelotão”. É legal saber que o pessoal gosta e leva para o lado da brincadeira.

1º -09-07 Domingo
Hoje revi a dona Gesine, ela é dessas pessoas queridas que dá vontade de dar um abraço gostoso. Ela é muito querida e lembra minha mãe.
Ela conta de sua juventude e fala do curso que fez. Acreditem!
Ela não tem carteira de motorista, mas tem brevê de avião... Deve ter sido uma das primeiras mulheres gaúchas a terem brevê. Almoçamos no galeto Caxias, onde antes era o pátio de conserto das máquinas ferroviárias, lugar muito show.
Fomos ao Yatch, revi o simpaticíssimo Willy, o João e fomos passear no Talhamar. Fomos a I. dos Marinheiros, centro de R Grande, 5} Distrito Naval, Pescal (onde em frente morava a vó, na João Pessoa, o Regatas e o Porto Novo, onde estão montando a plataforma petrolífera P53
Depois fomos a festa de aniversário de 80 anos do pai de Julieta, seu Andalécio. Que pessoal mais simpático. Dona Florinda, Tadeu, a irmã de Julieta, Taís e amigos.
Chegamos perto de 23h e as 24 iniciei a escrever. São 6h da manhã e estou terminando. Daqui a pouco sigo viagem. Um grande abraço do amigo
André
Amigos...Como diz meu irmão o Paulo, "exercitei a tolerância" contra esse corno de vento até onde pude, mas o chifrudo descobriu que comecei a voltar e soprou do norte por mais de dez dias.
Tive crises histéricas galopantes até minhas forças se esvaírem e me acalmar. Fiquei mais de três dias com fortes dores no ombro esquerdo por causa de um tombo antes de chegar em Rio Grande. Azar da dor, pois agora vou até o fim. Certamente algo ruim aconteceu, mas agora é que não vou parar.
Cerrações intensas, tempestades, travessias de riachos obrigaram a desmontar as bagagens e atravessar diversas vezes a barra de um rio. Outro tive que atravessar a nado e buscar alguém para conseguir um caíque. Afora tempestades e muita sugeira o pelotão terminou uma etapa dificílima e chegou a Quintão. Dos 1630 km previstos, 1300 km já se foram.
Pensei que seria um passeio, mas me enganei duplamente, tanto na ida quanto na volta.
Estou louco para acabar com isto, mas agora que me lambuzei vou lamber o prato.
Aí vai a parte desde R Grande até Quintão, espero que gostem.

Rio Grande 2-09-07
Como fiquei transcrevendo o diário até às 6 h da manhã, acordei só às 10:30 h e um amigo do Henri ligou dizendo que viria assar umas cavalinhas que ganhou. Paulo e Marília são muito simpáticos e o peixe assado ficou delicioso.
Pelas 17 h vamos ao Grupamento para eu seguir minha viagem. Fiquei lisonjeado com o desejo de D Gesine querer ir junto, pois já estava meio frio e uma cerração ia tomando forma.
Retiro o carro do Grupamento Naval do Sul e vamos até a casa do Sr Sadi, amigo do Lúcio. O problema é que a cerração ficou forte e ele achou melhor deixar para o dia seguinte.
Deixamos o carro na casa dele ali perto do canal e retornamos a casa do Henri.

3-09-07 segunda
Cedo o Henri me leva e ajuda a embarcar o Imortal no "Cigano do amor", barco do sr Sadi.
Que grande amigo que é o Henri, espero ter a oportunidade de um dia retribuir um pouco do muito que ele e sua família fizeram por mim.
Obrigado amigos.
No meio do caminho cruzamos com o barco de meu amigo Chico Preto, ele estava levando muitas pessoas em seu barco para R Grande e acena enquanto eu tiro uma foto.
Desembarcamos no multicolorido trapiche da vila Quinta seção da Barra e ali fico conhecendo o seu Lírio que me convida a tomar um café na sua casa.
Encontro dona Ana, esposa de seu Chico e não sabe quando ele volta.
Tomo o café e resolvo seguir para os molhes. que pessoa gentil foi seu Lírio.
Tchê, se na vinda a praia estava repleta de peixes-porcos e papaterras (jogados fora por um barco pesqueiro porque não tinham tamanho comercial), agora estava pior, pois a praia estava tomada de bagres de todos os tamanhos.
Pior, eles têm esporõesque ficam abertos e funcionam como "miguelitos", triângulos de pregos que são jogados nas estradas para furar pneus, seja para assaltos, seja pela polícia para deter suspeitos.
É impressionante, não há a mínima possibilidade de velejar nesse campo minado e sou obrigado a passar puxando e cuidar para nem eu ou o Imortal sermos furados por tão inusitada experiência.
Puxo por mais de duas horas e o nº parece diminuir. Então resolvo velejar contra o vento, subindo e descendo a praia numa orça perigosa entre os bichos.
O resultado é que furaram os pneus por três vezes em menos de 40 km e antes, em mais de 1060 km apenas havia furado duas vezes, uma delas justo neste trecho. É que os pescadores antes de entrar na barra da lagoa se desfazem dos peixes não comerciais ou protegidos pelo defenso, como o bagre nesta época.
Tiro fotos ao lado de um pesqueiro naufragado
O pior de tudo é que entrou uma forte cerração perto de 17 h e fiquei completamente perdido, pois sequer as dunas eu enxergava. Ainda por cima tive que desmontar a vela e seguir puxando, pois se fura mais um pneu eu não tenho estepe e se fura o carro não sai de onde está.
Pelo GPS sabia que estava perto de um povoado, mas onde?
Te vira cara, dá um jeito!
Vi uma coisa na escuridão, eram traves de um campo de futebol. Subo mais e vejo outro vulto mais para cima. É uma casinha sem teto, mas as paredes vão me proteger do vento pelo menos. Armo o sarcófago ali no meio no escuro mesmo.
Mesmo no sufoco escuto trovoadas, só faltava...
Desaba violento temporal com raios, trovoadas e todo o resto do show de horror.
Abrigado do pior do vento, o soldado sarcófago defendeu muito bem o pelotão e ganhou o respeito de todos. Êta baixinho macanudo, tchê!
Pior que a tempestade foi a dor forte no ombro esquerdo com pontadas agudas até que achei uma posição dobrada, como se o braço estivesse numa tipóia.
Certamente foi aquele tombo antes de chegar em R Grande, quando estava andando de "patinete" e caí forte sobre o ombro. Estranho que só foi doer agora. Bueno, cerca de 41 a 48 km se foram.

04-09-07 terça
Agora que se foi a cerração foi que descobri que estou há menos de 1 km do farol-torre do Estreito.
Como sopra nordeste de novo, resolvi antes consertar as câmaras furadas, pois borracheiro agora... sólo yo!
Fiz uma linha de montagem e conserto dentro do que sobrou da casinha.
Acabo partindo só depois das 11 h. Logo depois de passar pelo farol vejo uma casinha familiar: uma casa onde meus hermanos de Rosário foram alojados por um pescador humilde que deu o que tinha e o que não tinha de mantimentos para hospedar tão ilustres hóspedes (afinal eles foram de caiaque desde Rosário- Argentina até o Rio de janeiro pelo mar e remando contra o nordeste). A casinha estava abandonada, mas pelas coordenadas que Daniel Ross me deu e pela foto que vi na página deles era aquela casa mesmo.
Tinha dois andares, uma escadinha por trás e as dunas ao lado.
Vejo algo escrito e tenho a confirmação: Seldo 2007.
Eles passaram por aqui no verão de 2004.
Saio dali alegre e triste, pois meus hermanos talvez não gostem de saber que a casinha está caindo aos pedaços...
O temporal desta noite aprontou mais uma: um riacho grande que cruzei na vinda agora virou um rio forte com água acima dos joelhos. Estava fechado para carros e caminhões, mas a marcha do pelotão é inexorável. Tentei vários pontos e elegi um menos pior.
Dois caras de moto se aproximam e faço sinais para que parem. São de Minas Gerais (BH) e vêm com duas shadows lindas, não sei o que estão fazendo aqui, pois são motos estradeiras.
São Sérgio e Bento e rumam para Montevidéo... Conversamos, tiramos fotos. A moto de Sergio cai na areia e quebra a bolha do párabrisa. Eles resolvem subir seguindo a trilha dos carros dunas acima e eu começo desmontando o carrinho. Cruzo mais de sete vezes de um lado a outro carregando vela, bagageiros, carrinho e coisas. Descobri que sem nada em cima ele flutua...
Remonto tudo do outro lado e descubro que o cano do bagageiro está se rompendo... Soldar onde?
A solução é seguir em frente. Encontro um bagre gigante e retiro seus esporões como recuerdo.
Estou exausto de esforço da travessia, só agora vi o quanto pesam todas as traquitandas que carrego. Por isto que o vento tem de ser forte para deslocar a mim e ao carrinho.
Como o vento enfraquece sigo puxando, mas estou muito exausto do esforço da travessia. A cerração começa e resolvo parar antes ao avistar uma casa no campo ao fundo, pois não sei o que tem pela frente e é melhor me garantir pois pode vir outra tempestade.
Arrasto pelos campos e lagos e chego na casa que está fechada. Armo a barraca na face sul da casa, assisto ao por de sol e vou dormir ao som de uns pássaros de cabeça preta, peito amarelo e dorso marrom, muito lindos e que disputam as poucas acácias dali para fazer ninho e dormir.
A noite foi de trovoadas, mas choveu pouco desta vez. Andei muito pouco, pois na travessia e na casa do Seldo gastei mais de 3 h.
Para conseguir dormir um pouco tomei uns remédios, pois a dor no ombro tá forte. O remédio foi bom até o efeito passar. Depois não consegui mais dormir. O estranho é que quando levanto a dor diminui muito.
05-09-07 quarta
A chuva desta noite foi fraquinha e amanhece com NW a NE de novo...
Brody, estou extremamente irritado, pois o sul não deu folga na vinda e agora é só vento do norte...
O vento ronda de um lado a outro, partes velejo, partes vou no patinete. Depois puxo um pouco, seguindo só de calção pois está quente, até estranho esse calor depois de tanto frio.
Em um dos riachos encontro um enorme osso de baleia que tem a mesma área do carrinho.
Ás 15 h chego ao farol da conceição, uma torre de metal ao lado do antigo que caiu e é lavado pelo mar.
O tempo etá super estranho e, para me prevenir, paro em umas casas na saída de um riacho a uns 4 km ao norte do farol. Tenho medo da cerração não me deixar ver um possível abrigo no escuro e na cerração forte que tem feito sempre ao final de tarde. Mesmo parando antes das 16 h consegui avançar 23 km. 77 km já se foram. A casinha tem teto de concreto, uma cama com estrado e até uma porta. Chovendo estarei abrigado. A previsão é de NE para toda a semana e minha tática é seguir avançando mesmo assim, melhor que ficar parado.

06-09-07 quinta
Algumas trovoadas durante a noite, mas sem chuva.
Um dos pneus está no chão. Saco!
Encontro um esporão de bagre no pneu e tento remover com o punhal. O corno escapa duas vezes e me fura a mão.

- Senhor, está querendo se matar?
- Apenas curiosidade para saber se meu sangue é vermelho. Não está vendo que o punhal escapou?

Conserto a câmara furada e sigo entre blocos de argila negros que há nesta parte. A praia parece ter pó de café derramado por tudo. O mar está cor de chocolate. Esta coloração se deve ao tipo de plâncton que há por aqui.
antes eu pensava que fosse barro!
Sigo puxando e andando no estilo patinete quando aumentam as rajadas.
Perto de 12 h encontro Tazinho, o mesmo que me ajudou no povoado fantasma depois da barra da lagoa do Peixe. Ele me dá bergamotas e uma garrafinha de água. A que eu tenho etá no fim, ainda é aquela que peguei no banhado em Santa Vitória do Palmar. Mesmo assim está no fim e tenho que pegar mais.
Sigo em frente e logo vejo outro corno de bagre grudado na roda por seu esporão. Não deu outra: pneu furado!
Passo o povoado de Bojuru e mais tarde, já com o céu nublado e sem saber onde dormir, resolvo ir pelo certo e dormir em uma casa grande onde dormi na vinda.

07-09-07 Faltam 13 dias para a Revolução Farroupilha!
Amanhece com intensa cerração e vento norte...PQP!
O pior é que dá de andar contra o vento, pois (teoricamente) a praia baixa quando sopra o nordeste. Acontece que a praia é mole e o mar sempre sobe a tarde.
Além disto, para orçar tem de ser vento forte, caso contrário não dá de avançar.
O pior é que a praia está crivada de bagres mortos. andei 1060 km e só furou pneu duas vezes (uma das vezes foi neste trecho). Agora, em menos de 100 km já furou cinco vezes.
É que nesta época os pescadores não podem vender nem comem os bagres e daí jogam fora. É só aproximar de onde há cabos de redes que ali está infestado de peixe morto por tudo. A areia esconde alguns e na orça tenho que subir e descer na região onde o mar deposita os peixes.
Resultado: apesar de cuidar muito, os pneus furam a cada instante. Menos mal que trouxe um kit de reparo. Não é dos melhores, mas está me tirando desse buraco que me meti.
Fico com raiva, mas ao mesmo tempo entendo que os caras têm que viver...Faz parte!
A água que peguei no riacho ao lado da casinha é bem amarelada e com um pouco de terra. Fecho os olhos na hora de beber.
Assim o kinojo cru fica mais "cremoso". Tri bom!
Bactérias verdes vão dissolvendo os peixes porcos na areia, pois deles as gaivotas comem apenas os olhos. Fica aquela meleca na praia super fedorenta e que as rodas do imortal fazem o favor de me jogar pela cara e nas roupas.
Estou com "cheiro de mar".
Os cabelos viraram caldo de cultura de bactérias de peixe porco e plâncton:

- Senhor, até parece o filme dos piratas do Caribe, seus cabelos estão cheios de vermes se movendo...
- É o vento seu palhaço. Além disto não são vermes.
- Isso são "dreads", dá uma aparência de quem passou sabão no cabelo e deixou secar.
- E como vamos "ganhar" as gatas?
- Você viu alguma por aqui?
- Eu só encontrei baleias mais fedorentas que nós.
- Senhor e qual é o sabor do plâncton e das bactérias verdes?
- Olha, é salgado, mas assim mesmo é melhor que o kinojo!
Agora são 9 h, estou há 40 km da barra da Lagoa do Peixe e mais oito do povoado fantasma. Tazinho disse que a barra continua profunda e que terei que atravessar de caíque de novo.
Parto só às 10:30 h com cerração muito densa e vejo muitos carros que aproveitam o feriado para pescar.
Um pessoal oferece peixe e carona. além do Tazinho mais três ofereceram carona, mas se fosse para fazer isto, a carona que eu pegasse seria direto para casa, pois não faria sentido.
O vento quase zero e eu puxando na esperança de que aumente. No meio do nada surgem carros de repente e até me assusto.
Encontro Claudio que me ajudou na vinda. Ele vem revisar as redes. Adiante passo por um povoado com uma bóia na entrada (Divinéia). A cerração é tão forte que o dia passa e ela não some, pelo contrário, aumenta!
90% dos lobos que vi estão mortos e em decomposição. a maioria estava viva quando passei há um mês.
Há um cheiro forte de decomposição no ar.
Ao caminhar, a cerração era tão intensa que meus supercílios, a barba e a vela coletavam a umidade do ar que acumulava e pingava.
Justo onde começa o parque nacional da Lagoa do Peixe há umas casinhas superbem conservadas onde me abrigo já às 17 h.
No interior há duas camas e espumas que posso utilizar nos estrados. É só colocar a lona plástica por cima e dormir um pouco mais confortável. Só não posso dormir para o lado do ombro esquerdo. Consegui tirar o casaco de neoprene. É só levantar o braço e o ombro estrala como nunca. algo ali deslocou e só me resta agüentar e avançar.
Há prateleiras e alguns utensílios de cozinha.
Pego mais água amarelada ali no riacho ao lado só que coloco na garrafa azul para não ver mais a cor.
Há uma imensa lâmpada de farol pendurada no teto.

08-09-07 sábado
Aqui neste ponto passei há exatamente um mês. Foram mais de 710 km, sendo que 13 dias estive parado por diversos motivos.
Amanheceu com forte cerração de novo e um fraco vento de nordeste que não tem força sequer para deslocar meu carro e a carga; tenho que seguir puxando.
Ontem andei cerca de 22 km e faltam 18 para chegar a barra da Lagoa do Peixe.
- senhor, hoje é sábado, dia de banho...
- Algum voluntário?
- Silêncio...
- Alguém quer usar desodorante?
- Tá louco? Esse troço é gelado!
- Homens, o pelotão está adotando uma tática ninja de cheirar igual ao ambiente. Se nosso cheiro for diferente de peixe podre o inimigo saberá onde estamos. Melhor seguir incógnitos utilizando nossa "camuflagem"!
- Alguns homens estão reclamando dos travesseiros. a barraca é alta demais e a garrafa de água estrala e deixa todo mundo surdo...
- Eu já disse para colocarem a manta de lã por cima, assim abafa os estralos.
Agora são 9 h e a previsão é de que mude o vento só para segunda ou sei lá quando. Por isto tenho que atravessar a barra antes.
Os ventos, fracos ou fortes sopram do quadrante norte há oito dias seguidos. Antes eu rezava por esse maldito, mas ele só aparece quando o pelotão marcha para o norte.
É por essas e outras que eu odeio esse chifrudo com todas minhas forças.

- Senhor, o nosso inimigo só faz se fortalecer, estamos fracos e combalidos de tantas batalhas e parece que os reforços vindos do sul não conseguirão nos ajudar!
- Eu nunca esperei nada diferente disto. Que sirva de lição a vocês, lutem e não esperem ajuda nunca.
- O pelotão terá que sair dessa batalha sem ajuda de ninguém. Quanto a estes chifrudos do nordeste não é a primeira vez que eles se atravessam em nosso caminho e eles não aprenderam que o resultado da batalha entre nossas tropas sempre teve a vitória ao lado do pelotão.
- Vamos vencê-los sempre e tanto, que mesmo em face do maior desencanto o pelotão será lembrado com mais espanto.
É isso aí soldados, não esperem reforços e façam vocês mesmos a nossa estória.
Seremos lembrados como aqueles que foram mais longe combatendo o inimigo e sempre lutando contra as forças do vento.
Aos chifrudos de todos os quadrantes lancem o brado de guerra para eles nunca esquecerem que antes de morrer combateram contra o pelotão farroupilha.
Parto às 10:10 h em meio a neblina e percebo grande quantidade de mariscos de casca branca enormes, os mesmos que comíamos na praia do Cassino. Hoje está proibido coletar estes mariscos em Rio Grande. Parece que estão sumindo...
À medida que avanço, bandos cada vez maiores de Batuíras (maçarico pequeno que corre muito) que sobem e descem correndo de acordo com as ondas para comer tatuíras e outros bichinhos.
Perto de 12 h encontro um grupo que pesca ali na praia. Estão a cavalo e são de Novo Hamburgo (minha cidade natal) e Dois Irmãos. São muito legais e logo sigo em frente.
A quantidade de lobos marinhos mortos impressiona. Certamente a maioria estava viva quando passei rumo ao sul.
Por volta de 14 h finalmente a neblina permite que eu veja um pouco além das dunas.
Para meu espanto, às 15 h finalmente chego a barra da lagoa do Peixe.
Caminho até o povoado que havia no lado sul, mas ali não tem ninguém. Tenho que atravessar, mas ali é largo, profundo e com correnteza. Tenho medo que depois de andar tanto possa ter câimbras ao atravessar a nado na água gelada.
Lá do outro lado tem o povoado onde mora Joel, o que me atravessou na vinda em seu caíque.
- Senhor, esse local é profundo e com correnteza...
- Precisamos atravessar e conseguir um barco para cruzar o Imortal. Ele não pode atravessar todo o pelotão.
- Mas quem irá arriscar a pele?
- Não se preocupem, para as missões arriscadas e difíceis só um de nós conseguirá fazer isto...
- Quem senhor?
- O super tenente Issi!
É verdade, só me resta atravessar nadando para o outro lado nessa água gelada. Como sou macaco velho, levarei por dentro da jaqueta uma garrafa de refrigerante vazia. A possibilidade de dar câimbras é grande, pois caminhei o dia inteiro arrastando o carro na areia mole.
- Tenente Issi. Que frescura é essa?
- Uma bóia, senhor!
- No pelotão isso é coisa de maricón!
- Melhor que morra afogado, mas sem bóias ou similares!
Entro no rio e nem dois passos depois já não dá pé. a correnteza é forte.
- Tenente, que estilo de m... é esse?
- É o estilo cachorrinho para não molhar os cabelos na água gelada...
- Mas será possível?
- Tudo que é "inho" ou "inha" é boiola, fruta, maricón e similares.
- Daqui a pouco o pelotão estará nadando no estilo "borboleta"!
- Me poupe!
- Que faço então, senhor?
- Nade em um estilo macho como o "Krau"!
- Não seria crown, senhor?
- Não, porque se alguém vacilar o pelotão krau!
Demoro para atravessar, mas felizmente tudo deu certo, se bem que lá no meio me arrependi de não ter levado a garrafa vazia.
Começo a caminhar na direção do povoado e nisso vêm três caras na direção de um caique encalhado na lama.
São "J" , Adão e Chico. Peço ajuda para que atravessem o resto do pelotão.
Eles são muito divertidos e concordam em atravessar.
Ajudo a desencalhar o caíque e vamos em direção ao carro. No caminho muitas tainhas estão pulando e eles tarrafeiam na tentativa de capturá-las.O barco vai com dificuldade contra o vento, mas volta rápido, porque colocamos o carro com vela e tudo e foi só caçá-la pro caíque "voar".
Despeço-me dos novos amigos e sigo meu caminho. Às 16:30 h já estou de volta a praia e retomo minha marcha para chegar ainda hoje ao povoado fantasma.
Tive sorte em encontrar os pescadores, pois nem seu Nilton, nem seu Joel estavam no povoado.
Como a praia ficou cheia de atoleiros, só cheguei ao povoado às 18 h. não havia ninguém. que pena!
Vou dormir na mesma casa da outra vez.

09-09-07 domingo
Achei que o pessoal havia saído para recolher redes, mas hoje também não havia ninguém. Devem ter ido para a cidade.
Já comi o kinojo cru com sopa de ervilha (ARGH) e vou deixar uma barra de chocolate aos amigos que tão bem me receberam da outra vez.
Sigo para a praia e logo depois um carro pára. São Jorge e Gabriela. Ele sabe da viagem pelas páginas do POPA. Tiramos fotos e eles seguem seu passeio.
O vento contra aumenta e sigo orçando até chegar ao farol de Mostardas. Ali deixo o carro virar e termina de romper o cano do bagageiro que já estava rachado. SHEET!
Velejo até onde está um senhor na beira da praia e pergunto se ele conhece alguém que tenha solda ali no povoado.
É seu Adão e por incrível coincidência o vizinho dele tem aparelho de solda.
O cara saiu, mas seu Adão me leva de rural até a casa de outro amigo dele que também tem aparelho de solda.
Encontramos seu Paulinho e voltamos com ele e seu aparelho até a casa de Adão.
Seu Paulinho está de boina e bombacha. Tem bigode e acho engraçado de ver ele soldando o Imortal ali no gramado. Parece um gaudério colocando creolina nas bicheiras de uma ovelha deitada no pasto.
Tento mandar notícias pelo telefone público dali, mas está mudo...
Pago seu Paulinho e deixo um pouco de arroz e feijão para a senhora do mercadinho entregar a ele quando eu partir. Sei que seu Adão não aceitaria.
A senhora pergunta se eu quero levar pão...
- O senhor quer "cacetinho"?
- Olha, no meu tempo a gente pedia pão assim:
- Me dá um pão de meio (Kg), um pão de quarto ou tantas cervejinhas.
- As coisas por aqui mudaram, devem ser as correntes migratórias do norte, hehehe
Só falta alguém perguntar:
- De que tamanho?
Às 14 h já estou na peleia de novo e sigo na orça com vento cada vez mais forte. O problema é que a praia ficou cheia de atoleiros mais para cima e o carro atola direto.
O meu astral vai abaixo de zero, tudo fica longe.
Depois de passar outro povoado um senhor avisa que 6 km adiante há umas dessas casinhas abandonadas que os viajantes utilizam como refúgio. Fica escuro e o pneu fura... Merda!
Tenho um ataque de fúria histérica galopante. Estou cansado, não acharei nada no escuro e com cerração. ainda tenho que trocar a câmara e me virar. Só falta vir um temporal.
Depois de muito tempo gritando como louco ali no escuro me acalmo o suficiente para trocar a câmara e seguir puxando, pois orçar no escuro pode fazer furar o pneu de novo, pois não enxergo os bagres para desviar.
concentro minhas forças em puxar rápido e assim chego na casa. Mais adiante tem outra que parece maior, mas não gosto de me aproximar no escuro. Essa que vi está trancada, mas tem uma área fora onde posso armar a barraca ao abrigo do vento. Deixo o carro e sigo a pé até a outra. Parece que tem roupas penduradas, deve ter gente. Começo a retornar quando quatro grandes cachorros surgem nas dunas e vêm com tudo na minha direção.
Merda, estou sem o punhal!
Só tenho tempo de me abaixar e jogar areia nos olhos do primeiro corno que chegou mais perto.
Estou cheio de ódio e os cornos sentiram o perigo e ficam rosnando, mas não vieram mais para cima.
Saio logo dali, pois só falta aparecer o dono achando que eu iria roubar algo.
Volto no escuro e encontro o Imortal. Arrasto ele pelas dunas até a primeira casa que vi e armo a barraca no escuro. Foi bom treinar armar sem a lanterna, assim fica fácil quando preciso.
Como a granola e vou dormir. Mesmo assim velejei por mais 30 km.

10-09-07 segunda
Amanhece com vento norte mais forte que ontem.
- Senhor! E os reforços que viriam do sul?
- Esqueçam, teremos que lutar sozinhos! o inimigo (NE) está cada vez mais forte e acho que os reforços não virão mais.
- Vocês acharam que seria fácil para retornar, mas será tão ou mais difícil que a ida.
- Senhor. O Imortal está com o pé ferido de novo.
- O inimigo pensa que ele é o soldado Aquiles e estão tentando acertar em seu calcanhar...
O pneu dianteiro que troquei ontem a noite está no chão de novo. Desmonto e percebo que tem outro ferrão de bagre por dentro.
Tenho mais duas câmaras para consertar antes de partir.
Acabo seguindo em frente só às 11:30 h com NE forte.
Acho que vento sul nunca mais, então não conto com vento nenhum. É melhor lutar assim do que esperar algo que não vem.Para seguir sou mais o pelotão.
Acontece que a praia está mole e mais para cima cheio de areia solta. ali o carro atola mesmo que tenha vento forte.
Então a faixa de manobra se reduz a menos de 5m onde tenho que fazer os jaibs muito rápido antes que as ondas nos atinjam.
Para piorar o mar está completamente cor de chocolate causado pelo plâncton em abundância. aquilo se deposita na areia em grossas camadas e se gruda nos pneus. Daí os pneus fazem o "favor" de me jogar aquela meleca na cara aliado ao suco de peixe podre mais para cima. O campo de batalha virou merda!
- Senhor, isso aqui está parecendo guerra de bugios (mono carajá). Eles cagam nas mãos e jogam nos outros...
Tchê, que nojo! que porcaria é essa?
- Pelotão, agora esse é o palco de batalha. O inimigo está usando munição diferente e armas não convencionais.
Cada um por si!
E assim o pelotão teve que adaptar-se novamente e lutar contra as forças do mal.
Minha cara ficou cor de chocolate e o cheiro...
Bueno, aqui não tem ninguém mesmo e não vou me deter por mais esta artimanha do inimigo.
O plâncton na areia lembra pó de café.
É uma luta para não deixar o carro capotar no contravento, assando as mãos ao manusear o cabo cheio de terra e meleca e tentar evitar areia solta, tanto dentro da água como mais para cima.
E ele vai atolando, atolando, atolando...
PQP, http://br.f381.mail.yahoo.com/ym/Compose?To=m....!@@#$%%¨%&&&**((((
Pronto, crises histéricas uma depois da outra, berrando e gesticulando contra o vento e praguejando sem parar ali sozinho na beira do mar.
Mando vento, melecas podres, esporões de bagre, redes de pesca e areia solta pra casa do chapéu até dar um branco total.
Paro tudo, fico dentro do carro atolado por minutos até voltar a razão e a capacidade de pensar.
Cara, que ódio, que vontade de meter o punhal em qualquer coisa, mas meu inimigo é covarde demais para se aproximar o suficiente. Inferno!
O cara fica com uma sensação de impotência diante dos elementos, mas a minha vingança é seguir em frente, matando o inimigo aos poucos e avançando sempre, até o desgraçado se arrastar e pedir perdão.
Tenho que puxar e andar quando dá.
As horas passam e paro para conversar com uns pescadores que riem da minha cara barbuda cheia de meleca planctônica, para não dizer "merdônica"..
Eles oferecem carona. Recuso!
- Isso não me serve. Tá louco!
- Se fosse fácil qualquer um faria. Retruco!
Mesmo assim vou avançando, mesmo diante do pior do inimigo. Não é muito mas a vitória está sendo conquistada casa a casa, quarteirão a quarteirão.
Passo pela praia Pai João, São Simão e sigo sem parar nem para beber.
Às 17 h encontro uma casa entre as dunas. não tem ninguém, ótimo!
Ao lado tem um riacho rasinho. Cavo um buraco para coletar água e lavar o carro e a mim daquela meleca nojenta. fico quase meia hora nesse processo, mas o cheiro fica.
Ainda bem que tenho outras roupas para dormir.Sinto um grande alívio ao me ver livre da meleca. A casa é excelente, tem dois quartos com beliches, uma cozinha e sala, afora varandas com sofá na frente e outra menor, nos fundos.
Os caras fizeram uma calha que coleta água da chuva que vai para uma pequena caixa d´água e dali para outro camburão com torneira que deságua na pia, muito engenhoso.
Mesmo assim tomo da minha água amarelada e com areia.
- Senhor, essa água tem até pedrinhas...
- A mulherada não vive chamando o pelotão de "galinha"?
- É, mas o certo é "galo". Não sei porque elas mudaram as coisas. É o galo que fica com várias galinhas...
- É verdade, mas tanto galo ou galinha tem moela e as pedras vão para a moela e ajudam a digerir os alimentos...
- Se o galo come pedras, nós também podemos!
- É verdade!
- Assim ajuda a "digerir" as galinhas!
Bem ou mal, com todos os atoleiros e saindo tarde ainda fiz 20 km.

11-09-07 terça
Agora são 7:22 h. a noite toda a folha de zinco rangeu. Ora parecia som de cachorro latindo ora uma mulher gemendo. Depois estralos fortes e associado aos problemas do ombro acordei às 2h e não consegui mais dormir.
Descubro que faltam menos de 200 km para chegar a Torres e a moral volta a melhorar.
Desanimado com esse nordeste pensei em parar em Quintão, mas sabendo que estou mais próximo do que pensava...
- Senhor, essa resistência feroz, tanto na ida quanto na volta só valoriza ainda mais o que já fizemos.
Como diz o hino do Rio Grande:
Mas não basta pra ser livre, ser forte, aguerrido e bravo.
Povo que não tem virtude acaba por ser escravo.
Mostremos valor constância, nesta ímpia e justa guerra.
Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a terra!

É isso aí brody! Eu passei por um baixo astral por causa de tudo que passei e do que tenho que passar. Tenho que superar tudo isto e esquecer uma música que cantarolo às vezes:
- Preciso acabar logo com isto
- Preciso lembrar que eu existo, que eu existo....

Vamos à luta! Mal começo a andar e o pneu dianteiro murcha. Desta vez é o remendo que solta. Todos os outros estão soltando. Tenho que trocar todos quando chegar a uma borracharia.
O vento está NE de novo. Já são dez dias!
Pelo menos está forte o suficiente para avançar no contravento. Sigo assim até às 12:30 h, mesmo atolando seguidas vezes.
Já pelo final da tarde o tempo fica estranho e resolvo parar para me garantir de possível temporal. parei perto de umas casas, mas o dono vem pela praia em sua rural. Diz que posso dormir na varanda da casa de seu irmão, mas que tem que recolher duas redes antes de voltar. Deixo o carro ali e sigo com eles, pois não tenho nada para fazer.
Ele puxa a rede com sua rural e ela vem repleta de bagres. É um absurdo de peixes. ajudo a tirar os peixes e devolvo os menores que ainda estão vivos ao mar.
Depois de recolher os peixes é só soltar o cabo que o mar puxa para o fundo.
Já noite, monto a barraca e vou dormir. mais 35 km contra o vento se foram.

12-09-07 quarta
Parece que virá mau tempo e por isto resolvo chegar hoje mesmo a Quintão.
Incrivelmente às 7:30 h, já estou com tudo desmontado e na praia pronto para seguir.
Despeço-me de Isaurino, seu irmão, dona Nita e Valdecir.
Eles foram super legais. O vento sente minhas más intenções e resolve ficar fraco. Não tem força sequer de fazer o carro subir da água mais para cima. Além de tudo fica cheio de areia solta e o carro atola direto...
Pronto, já sou acometido de crises histéricas galopantes até ficar rouco.
Só me resta voltar a puxar. por mais duas vezes monto a vela e desmonto. Completamente irritante. passo por alguns restos de navios naufragados e já no fim de tarde passo pela capelinha e pelo farol Berta. Mais hora e meia, completamente exausto chego a pousada da Lorinha, na rodoviária. Revejo Kátia, seu Francisco e Lourinha. como um imenso e delicioso prato de comida, tomo banho e vou a net dar notícias.
Estou completamente quebrado, mas consegui fazer os 35 km que faltavam.
Mil trezentos e trinta km já se foram. só faltam 300 km.

13-09-07 quinta
Passei a manhã caminhando para achar um borracheiro e a tarde fui de latão a Tramandaí para comprar outra roupa de chuva.

14-09-07 sexta
Hoje foi dia de escrever o diário. Parece que amanhã chega um temporal e vento sul. Tenho que pegar o bonde" e seguir.
Conheci o Paulo aqui na net e sua mãe, Maria Ivânia, que já foi vereadora em Palmares e mostra o excelente trabalho que fez no computador mostrando o plano diretor de Palmares. eu nunca tinha visto nada parecido. É um trabalho que demorou quase dois anos para ser feito.
è isso aí amigos. amanhã a batalha continua.
Um grande abraço
André

Olá queridos amigos.
Que estranhas voltas que o mundo dá...
O que parecia impossível está perto do fim, 1600 km já se foram (faltam 30 km para Imbituba) e o pelotão não quer voltar para casa e viver como um cidadão normal.
Foi lançado um desafio e nos agarramos nisto como uma forma de manter nossa vida de peleias por mais um tempo.
Parece que há um tesouro lá longe, onde o sol continua a brilhar e não podemos ver.
Mas é justo lá onde estão depositadas nossas supremas esperanças e tenho que seguir o caminho que me ensinam.
Correremos atrás das mil milhas onde o Imortal repousará no Rio Grande até que o pelotão seja chamado para um novo combate.
Além de terras e através dos tempos haveremos de nos reencontrar.

TRECHO DE QUINTÃO A LAGUNA

15-09-07 Sábado - Quintão

Acordo cedo, está nublado e parece haver vento na copa das árvores. Acerto a estadia com o seu Francisco, ele é muito legal. Sente saudades da Espanha e fala de sua terra.
Na saída ele me dá dois tabletes de cereais. Atravesso as dunas e chego à praia às 8:40h. Cadê o corno de vento sul que estava previsto pra hoje?
Acordo cedo pra pegar a praia baixa e nada de vento...
Sigo puxando a espera de que mais tarde ele se manifeste.
Logo adiante um estranho carro todo de madeira SRD (Sem Raça Definida) anda a meu lado. São pescadores e me oferecem carona. É só jogar na caçamba...
Agradeço pela milésima vez, mas fico grato, pois o pessoal está sempre disposto a ajudar.
Eu sabia que não podia contar com meu inimigo o vento.
Agora a praia está tomada de caniços de pessoas aposentadas. Eles pescam peixinhos pequenos que os pescadores de rede torciam o nariz só de olhar. Os peixes que os caras jogavam fora; aqui seriam disputados a tapas pelos pescadores de lambaris.
Vou passando, o pessoal olha curioso e invariavelmente pergunta:
- Faltou vento?
- Faltou gasolina?
Eu mereço!
Às vezes dá uma brisinha e eu pulo rápido na longarina e velejo até o carro parar logo adiante.
É um jogo de paciência, mas a estratégia do pelotão enfraquecido é a tática de guerrilha.
Ataca aqui e ali até ir minando a resistência do inimigo.
Vejo partes com pingos de chuva na areia de dias passados. Lembro de quando jogava tênis com meu amigo Rojas. As disputas eram acirradas lá no LIC, em Florianópolis.
Jogávamos dentro do espírito do esporte, como dois lordes ingleses.
Quando o oponente acertava uma jogada e ganhava o ponto, o outro, educadamente, comentava:
- Boa bola!
E logo em seguida no pensamento:
- Como foi que esse desgraçado acertou aquela bola?
Certa vez, depois de errar quatro vezes seguidas um ponto decisivo, dei tanta porrada na raquete no chão que o "capeta" que a havia possuído saiu correndo.
O brody Rojas ficou tão enfurecido ao perder o jogo que deu um chute na parede e destroncou os dedos.
Como um "lorde inglês" o que assistia aos ataques de fúria do outro se virava para "buscar" a bolinha e mordia a bochecha para não rir e deixar o outro mais enfurecido.
Ele era tão "ladrão" que tinha a cara de pau de dizer "fora" para bolas que visivelmente batiam no lado de dentro da quadra de saibro. Passava a raquete em volta de uma suposta marca do lado de fora.
Como eu quase sempre ganhava, nem dava muita bola. Um dia ele exagerou e fui olhar a marca que apontou;
- Rojas, tu é ladrão mesmo. essa marca tem até pingos de chuva por cima e a última vez que choveu faz uma semana...
Amigos sempre têm seu lado positivo. Quando queria espalhar uma notícia, bastava contar ao Rojas, Bello e Aldo e pedir para não contar a ninguém...
Pronto, a notícia se espalhava mais que chumbo fino em calibre 12.
Eles são mais conhecidos como "Bokudos" da Lagoa e do Centro Comercial, onde temos nossas clínicas.
As horas passam e paro para almoçar perto de Cidreira assistindo as danças de quero-queros, gaivotas e talhamares em volta das fêmeas.
Nas dunas vejo vários membros da tribo canídea envolvidos na perseguição das fêmeas. Pássaros carregam gravetos e o calor aumenta... Acho que se aproxima a primavera!
Na parte da tarde o vento dá sinal de vida e velejo no estilo patinete. Chego a plataforma de Salinas e sigo em frente.
Depois, na plataforma de Tramandaí está havendo um campeonato de surf.
Desmonto a vela, já é final de tarde e sigo puxando pelas ruas em direção da ponte sobre o rio Tramandaí.
Anoitece e paro para lanchar já em Imbé. Não quis visitar meus amigos do Hotel Alaska porque sabia que não iriam me cobrar hospedagem e não quero abusar. Venho visitá-los quando voltar de moto.
Chove fino e sigo em frente até achar uma casa que não tenha ninguém por perto e nem os pentelhos dos cachorros.
Deito sobre o plástico e chove, mas a varanda é larga.

16-09-07 domingo
Às 7:40 h já estou na praia, mas o mar está de ressaca e a água vem até quase as dunas...
É só pra irritar! Deveria estar baixo...
Para variar o vento está fraco e sigo puxando um pouco e andando de patinete.
Perto de 13 h paro para almoçar pouco antes de Capão da Canoa e encontro Cláudio que é geólogo e ficamos conversando muito, pois cheguei a fazer um ano de Geologia antes de mudar de rumo.
Apenas mudei o tamanho da broca (virei dentista).
Logo adiante passo pela plataforma de Atlântida e chego em Capão.
O vento fica mais forte e sigo pela zona das ondas, pois ali está mais firme.
É claro que eu e o carrinho somos "lavados" a toda hora.
O vento vai ficando mais forte e consigo andar um bom pedaço num "pau" e depois enfraquece de novo. Volto ao patinete e numa dessas lavadas o mar levou uma das botas...
Não pretendo voltar, então deixo a outra na praia para que encontre sua amiga perdida.
O vento vem firme e forte de novo e velejo como louco. O carro voa, as praias vão passando e vejo algo no horizonte que não quero crer... Parecem os rochedos de Torres!
Saídas de riachos, calombos e atoleiros são devorados pelo Imortal que vem em alta velocidade.
Antes de Torres tem um morro que avança na praia. Atravesso o atoleiro de areia mole, subo uma pequena colina e fico livre para seguir sem mais nada até os rochedos da praia da Guarita.
Estou radiante de felicidade. Nem acredito que em dois dias estou fazendo o trecho que planejei fazer em seis...
Por volta de 17:30 h chego aos rochedos. O mar está baixo e assim arrisco e vou em frente entre os rochedos e o mar até a praia da Guarita.
Peço a um rapaz dali tirar umas fotos para mim.
Depois falo com Lopes e Angela que ficaram com o carrinho desmontado pro Paulo vir recolher o Luigi. Fiquei tão feliz como eles ao me rever.
Não acredito! 1460 km foram pro espaço!
O pelotão urra de felicidade!
Ligo pra mãe e sigo para o centro de Torres já com a vela desmontada.
Depois passo uma escova em mim e no carro, pois estamos atopetados de areia no rosto e nas roupas.
Para completar minha felicidade, o Grêmio ganhou o GRE-nal de novo e a festa nas ruas corria solta enquanto eu comia um "X-Tudo" que o Luigi adorou quando chegamos a Torres, no dia 28 de Julho...
Dormi no hotel das Figueiras depois de um sonhado banho.
Meu pé esquerdo detonou do esforço.
Está ruim até para caminhar!
- Senhor, está muito inchado.
- É verdade!
- O doutor D K Bessa mandou fazer calor e tomar antiinflamatório...
- Então eu vou tomar um antiinflamatório caseiro (vinho) lá no boteco da esquina!
Mando baixar dois baita copos de vinho e o pelotão fica "prontinho" para dormir.
Ainda assisto ao filme "O Resgate do Soldado Ryan".

17-09-07 Segunda
Acordo cedo e há vento, parece de leste. Vou partir, mas quando vou caminhar para tomar café percebo que se formou uma bola na parte superior do tornozelo, quase na junção com a canela.
Deve ter rompido algum vaso e a dor atrapalha um monte para caminhar.
Como vou puxar o carro assim?
Tenho que deixar o bom senso prevalecer e ficar deitado toda a manhã.
De tarde venho a lan e fico respondendo os mails e recados que não pude responder antes. Agora são 21 h e espero amanhã poder continuar, agora sem as botas. Vai de chinelo mesmo!

18-09-07 Terça
Vou sair, mas um dos pneus está no chão...
Desmonto o dito cujo e coloco outro.
- Senhor, o remédio que passamos no soldado TE (tornozelo esquerdo) diz que é para uso veterinário...
- Isso é pomada para articulação de cavalo!
- O pelotão não peleia como um animal?
- Mas senhor, o soldado TE já teve ruptura de ligamento, erisipela na peleia de bicicleta em Manaus e fratura grave quando a roda do carro o quebrou e jogou por baixo do banco. Ele é um herói de várias campanhas...
- Tá certo! Então vamos em marcha lenta, mas ele que se arrume. O pelotão não ficará esperando indefinidamente.
Chegaram as ordens do comandante maior, "o Espírito que Manda"!
- ?????
- Ele quer que a gente volte e encontre o soldado Ryan, quero dizer, o sargento Fogareiro que morreu em combate e foi deixado nas dunas próximo de Imbituba.
- Mas porque arriscar a vida de tantos homens por um só?
- O comandante viu um filme e ficou com pena da mãe do sargento fogareiro.
- Alguém sabe quem é a mãe dele?

Apesar de muito inchado, consigo caminhar mais ou menos até a ponte de Passo de Torres e retorno ao estado de Santa Catarina.
Acho que no mínimo em oito dias e no máximo em 15 chego a Imbituba. Depende do vento e de nada de novo acontecer.
Sigo até a barra do Mampituba e o vento está terrivelmente forte e uma verdadeira tempestade de areia corre sobre a rua. É um corno de um nordeste.
A praia é pequena, cheia de areia mole e o mar está alto.
Puxar o Imortal por ali vai detonar de vez meu tornozelo.
Resolvo seguir por uma estradinha paralela mais por cima, pois o vento lá não é tão intenso e o esforço será menor.
Ali na barra tem um senhor que se lembra quando passei aqui com o Luigi, em Julho...

Almoço em uma padaria dali e sigo pela estradinha até Bella Torres. Ali foi o local onde terminou a viagem de caiaque ano passado. O caiaque veio por cima de mim, o leme quebrou na minha cara e a ferragem do leme cortou acima do supercílio. Cheguei a praia ensangüentado e ali conheci Borges e Rafael que fizeram o curativo.
Eles são do Corpo de Bombeiros de Araranguá e os tenho como grandes amigos.
Sigo em frente e vou para a praia; ali é amplo e firme, vou seguir orçando.
Acontece que para o lado de Torres está cinza azulado e vários raios e trovões anunciam tempestade...
Seguir com um mastro de 5m na praia com tempestade é risco certo!
Resolvo esperar na varanda de uma casa ali na beira. É a praia Rosa da Praia, colada a Bella Torres.
A chuva chega forte. Vou ficando, ficando e o dia passa. Thor o chifrudo parece uma alegoria de carnaval com todo seu show pirotécnico.
Coloco duas tábuas de obra no chão, o plástico por cima e deito. Assim dou um descanso ao TE.

19-09-07 quarta
Parto às 8:40 h, choveu direto, mas agora está bom. Logo na saída a praia encontro um imenso leão marinho em decomposição. Aqui tem uns urubus diferentes dos da Guarda, esses têm cabeça com crista vermelha e corpo mais alongado.
Ao passar por outro leão morto, o vento “ruge”. Vem de leste...Beleza!
Mais adiante fica forte e o Imortal "voa".
Passo por uma plataforma de pesca alta o suficiente para passar sem desmontar o mastro.
Passa uma hora nessa correria e vejo um morro alto à bombordo... Não pode ser, parece ser o Morro dos Conventos.
Há uma moça na praia, pergunto a ela se é Morro dos Conventos mesmo. É Nenna, arquiteta que mora por aqui e restaura móveis. Ela confirma e eu explodi de alegria, em uma hora fiz quase 50 km... São apenas 12 h e se chegar ao outro lado da barra e viajar com esse vento....
Queria ligar daqui e me encontrar com o Rafael dos bombeiros, mas passo de moto mais tarde, pois vento favorável é raríssimo.
Desmonto tudo, lavo-me no chuveiro dali e subo a imensa ladeira que leva ao alto do Morro do Farol.
Dureza! Ainda por cima vai detonando o tornozelo.
Lá em cima eu sigo pela estradinha e rumo para a balsa. Nem vou comer para não perder tempo.
Se fosse para a barra direto, não haveria caíque para me cruzar (são muito pequenos). Melhor depender só de mim.
Chego a balsa, ali pedestre não paga. Sigo pela lindíssima estradinha para o povoado que há na Ilha, já na foz do Rio Araranguá no mar.
É uma beleza ver o verde dos campos e da mata nativa contrastando com as dunas douradas e o morro do Farol. Show de bola.
Sigo freneticamente e o tornozelo detona de vez. Incha e dói ao mesmo tempo.
Está ruim de caminhar...
- Soldado, o que está acontecendo?
- O soldado TE está revoltado e mandando mensagens ao SNC (sistema nervoso central) através de mensageiras, umas tais de Sinapses...
- E como elas fazem isto sem passar pelo comando maior antes?
- Elas atuam através de polarização e despolarização das células...
- Avise ao Dr D K Bessa para cortar essa ladainha de polarização sei lá o quê!
- Cortando o esquema das mensageiras não haverá dor.
- E o que TE pode fazer mais além de inchar?
- Ele pode explodir?
- Nunca o testamos a tal ponto senhor!
- Então vamos testá-lo! Não admitiremos motim a bordo.
E o pelotão segue em frente mesmo com um rebelado a bordo.
Encontro seu Hélio, mas nem seu Sadi nem seu Alvacir estão.
Só me resta seguir para a barra do rio.
Droga, pretendia comer algo no bar de seu Alvacir. O rio está alto e mal passa o Imortal, espremido entre os altos barrancos e a água verde do rio.
Um cara vem de moto, é seu Alvacir que soube que eu passara e veio de moto... Grande amigo!
O vento era forte de SE, quase me mato para fazer a volta da barra via balsa, mas mesmo assim levei 4 h e o vento se foi...
Quase enlouqueço de raiva, mas só me resta seguir em frente.
Passo por alguns pescadores e pela plataforma sul da praia do Rincão.
Não foi nada, mas fiz 50 km velejando e caminhei cerca de oito horas para fazer mais 10 em linha norte-sul, ou seja, fiz uma volta muito grande para contornar a barra.
Resultado: estou exausto e meu tornozelo só falta explodir!
Converso com um senhor e depois com Ciso, que tem um pitbull.
Atravesso as dunas com o intuito de encontrar uma varanda para passar a noite, afinal já são mais de 18 h.
Converso com o sr Claudemir que tem uma lanchonete ali.
Seu Ciso amarra o pitbull no imortal e o bicho arrasta o Imortal de tal maneira que quase não consigo segurar os dois. Que bicho forte!
Fico instalado na varanda da casa em construção e vou comer um x ali na lanchonete de Claudemir. Para comemorar o avanço de hoje (faltam só 100 km) o pelotão toma martini on the rocks antes da refeição.
Depois vou dormir. Lá pelas tantas chega seu Ciso arrependido porque não me convidou a ir a sua casa. Trouxe um lanche, pomada para meu tornozelo e insiste para que eu vá para lá.
Acontece que já estou instalado, já comi e estou podre pelas oito horas em pé. Agradeço muito, mas retorno a dormir. a noite foi tranqüila, alguns mosquitos mas nada demais.

Vinte de Setembro de 1835, digo, de 2007
REVOLUÇÃO FARROUPILHA

- Senhor, acabaram de chegar as ordens do comando!
Tomar Laguna no dia da revolução!
- Eles estão loucos!
Temos que atravessar o Rio Torneiro, avançar 50 km em praia mole com mar alto, atravessar as altas dunas da barra do rio Camacho e marchar 20 km depois de tudo isto até a balsa...
- Bueno, ordens são ordens!
- Pelotão. Hoje é a data máxima do Rio Grande e todo esforço é pouco para lembrar de nossa querida terra. Quero que lutem como bravos e lembrem do Rio Grande na hora derradeira.
- E o soldado TE?
- Terá que lutar como todos, ele faz parte do pelotão...
- E como lutaremos, senhor?
- Em marcha com baionetas, mas em carga de cavalaria com o Imortal utilizem as lanças.
- Pela memória de nossos bravos e pelo Rio Grande marchem!
E assim segue o pelotão para a praia. Ali encontro um simpaticíssimo senhor de 86 anos que do nada começa a falar de sua vida. Diz que perdeu uns documentos, mas já encontraram.
Ele fala que se separou há pouco e que está preocupado se não pegou doença venérea "das brabas"... O Cara é um herói!
Tem gente com a metade da idade dele que tem que se ajoelhar ao lado da cama e dizer:
- Obrigado por mais "uma" Senhor!
Encontro umas mulheres ajoelhadas na praia colhendo algo e colocando em cestinhos.
Resolvo investigar. Elas estão colhendo "maçambiques", aquelas conchinhas pequenas em forma de triângulo retângulo.
- É para comer, diz uma delas.
Aliás, os pescadores ficam fazendo buracos sem fim catando mariscos e corruptos para fazer de iscas. Deveriam importar do planalto central...
Adiante passo pela plataforma de pesca norte da praia do Rincão e mais um pouco chego à barra do Rio Torneiro.
Um pescador legal me acompanha e diz que a barra está rasa... Legal, assim não perco tempo tendo que ir atrás de um caíque.
Ele entra na água e afunda até o peito, mesmo não tendo chegado na metade do caminho. Fala que se eu for lá fora, no mar a "coroa" ou banco de areia estará mais raso...
Tá! Eu vou me meter em fria procurando coroa com a carga do Imortal nos ombros... Eu nem sei se a coroa é gostosa!
Resolvo atravessar a nado.
- Tenente, hoje nem é sábado e vai tomar banho...
- Alguém tem que dar um jeito de atravessar o pelotão. Conheço uns tauras amigos que nos ajudaram na vinda!
Atravesso rápido no estilo "Krau" e logo estou seguindo pela beira entre cercas, milhares de cornos de espinhos, rosetas e assemelhados.
- Seu burro, porque não trouxe os chinelos?
Sou obrigado a seguir assim mesmo, pois a correnteza do rio desce para o mar e não tô a fim de ficar com câimbra.
Atravesso vários sítios, mas seu "abacate" não está. Mandam eu falar com outro pescador, que está trançando uma rede numa árvore.
Explico a situação:
Ele não está nem um pouco a fim de sair dali:
- Pois é, mas eu vou molhar os sapatos...
- Olho para os pés dele, está de sapatos mesmo e fico sério.
- Parece que ele não tem mãos para tirar os sapatos.
Minha mãe sempre diz:
- Um passo além da mediocridade e a humanidade estará salva!
Certamente ele não ouviu falar disto.
Tenho que falar na linguagem universal, mesmo porque não era minha intenção fazer diferente.
- Eu queria pagar para alguém fazer a travessia...
- Ele vacila um pouco e "lembra" que tem umas botas no galpão.
Com um certo esforço ele tira os benditos sapatos e calça as botas.
Batalhas são vencidas nos detalhes e com um "saco" bem grande para ver e escutar certas coisas e tratar aquilo como coisa normal.
Ajudo a remar rio abaixo até onde ficou o Imortal.
Feita a travessia, sigo a pé, pois ali está cheio de areia mole e o mar esqueceu que é manhã e está alto.
Perto de 10 h o sul ficou azulado e o vento que se forma precede uma tempestade.
- Senhor, é melhor desmontar a vela.
- Negativo. Montem!
- Chegou a hora do pelotão fazer uma carga de cavalaria. Preparem as lanças!
Monto tudo rápido e logo vamos zunindo. Há muitas saídas de riachos, areia mole e o mar chifrudo que sobe rápido querendo deter a carga de nossos heróis.
Através das areias e das espumas o povo catarinense assiste ao embate rigoroso das tropas e ao entrechoque das armas.
Os imperiais em Laguna que aguardem, pois o pelotão pegou embalo e a vitória até Jaguaruna é só questão de tempo.
O ronco dos rolamentos é forte, mas a água do mar abafa. A praia fica cada vez menor e o Imortal mais navega dentro do que fora da água.
Quando eu pego um pouco mais de velocidade logo entro em zona de areia mole ou sou obrigado a entrar na água com tudo para não atolar em areia acumulada mais para cima.
As praias vão passando e ao longe vejo dunas muito altas e amarelas. O mar está lambendo a base delas e virou guerra corpo a corpo.
Às vezes atolo dentro da água e as crises histéricas galopantes tomam conta do pelotão que perde a razão e esmurra o mar enquanto berra toda a sorte de palavrões.
Assim mesmo consigo avançar até que vejo os molhes da barra do Camacho.
Tiro fotos, arrasto pelas altas dunas e depois pelos areais até o outro lado da barra. Ali encontro três simpaticíssimas senhoras que recolhem maçambiques com cocas retangulares.
Elas são muito divertidas e enquanto uma delas senta no Imortal, a outra, de "só" 85 anos puxa as rédeas e a companheira.
Tiro fotos com elas e sigo peleando pela costa de dunas altas até uns rochedos onde começa a praia do Farol de Santa Marta.
Velejo até o último galpão já quase encostado no morro do Farol e ali tiro fotos enquanto converso com os pescadores.
Retorno velejando uma parte e subo para a estrada. Como o mastro passou na altura dos fios sigo puxando com o mastro montado pela estrada.
O Imortal quer seguir sozinho, mesmo nas subidas da estradinha...
- Tenente, porque não vamos velejando?
- Afirmativo, positivo e operante!
- Assumam seus postos de batalha!
Devagar e sempre o pelotão segue velejando pela estradinha enquanto o pessoal que passa nos carros sorri largamente pelo inusitado da cena.
Passa um ônibus e depois dois caras de moto me seguem e vêm conversando.
Aparece uma viatura da polícia militar. Passo óleo de peroba na cara e aceno. Eles vacilam e acenam de volta.
Achei que iriam verificar a validade do extintor, mas isso só as bestas de Capivari...
Sigo assim até chegar a um posto de gasolina, já perto do entroncamento onde iniciam os fios de luz que cruzam sobre a estrada e têm altura inferior ao mastro.
Desmonto a vela e sigo para o entroncamento aonde chego às 16 h.
- Pelotão, prepare-se para a marcha de vinte quilômetros!
- Senhor, isso não é humano!
- Já tivemos diversas peleias para um dia só!
- O pelotão é animal e além disto temos que tomar Laguna no dia da Revolução.
Nada de água e comida até que o alvo seja atingido.
- Senhor, somos marinheiros ou soldados?
- Combatemos tanto no mar quanto na água!
- Esqueceu que fomos fuzileiros navais no início de tudo?
- Além disto o pelotão não escolhe, combate!
Decidido, duas horas e meia de marcha firme e já escurecendo, chego a balsa.
Atravesso, sigo pelas ruas. algumas pessoas lembram de quando eu e o Luigi passamos por aqui em julho.
Sigo até o camping da barra dos molhes, mas não tem ninguém. Abro o portão, deixo o carro sob um teto e sigo para um restaurante que há ali perto.
Flávio o dono liga para os donos do camping e eles autorizam que eu durma por ali.
Tomo três taças de vinho e janto um delicioso bife acebolado.
Começa a chuva que o Imortal havia deixado para trás. Quando dá uma estiada, sigo para o camping e me ajeito numa varanda onde ficam várias pias, o lava-pratos do camping.
Tchê que temporal! Muita água, raios e trovões.
Que dia!
Mil e seiscentos quilômetros viraram passado e só faltam trinta quilômetros para Imbituba.
Que loucura!

21-09-07 sexta
Que ressaca! Ao amanhecer outro temporal!
O tornozelo ficou como uma bolota, mas não dou mais bola. Ele que se vire com aquela pomada pra cavalo!
Ainda não terminou.
- Senhor, que faremos?
- Não saberemos viver sem guerras...
- O Danilo, do Veleiros do Sul, falou brincando em fazermos 1000 milhas...
- Ele nos deu a maior força na viagem do caiaque.
- O que vocês acham de fazermos estas mil milhas ou mais?
- O pelotão explode de alegria.
Nunca fomos normais mesmo, que mal há em fazer uma loucura dentro da outra?
O pelotão tem gás para isto e muito mais.
Huevos hombres! Vamos a Imbituba para terminar o que começamos e voltar às armas para o sul atrás dessas tais de "mil milhas".
Não tem as de Indianápolis?
Agora haverá as "mil milhas do Pelotão", parece que estão lá pelas bandas de Capão da Canoa...
- Senhor, será que não ficaremos tontos com tantos “meia-volta, volver”?

22-09-07 sábado - Laguna
Agora são 8:30 h, resolvo tomar antiinflamatório e passar pomada no tornozelo, porque o trecho de hoje tem muitos obstáculos e terei que arrastar o Imortal em alguns pontos.
- Senhor, o sodado TD (tornozelo direito) está com ciúmes e quer o mesmo tratamento dado a TE.
- É justo. Falem ao soldado Dedos para passar aquela pomada de cavalo em TD também!
Arrumei tudo, despeço-me de Zinho (cuida do camping) e sigo para a praia, aonde chego por volta de 10h. Pretendo ir a Imbituba (onde esta viagem iniciou) e voltar aqui em 3 a 4 dias.
A praia está calma e sem vento, muita gente passeando e meninas de uma escola jogam na quadra de futebol. Da barra até a extrema da praia deve ter uns 3 km. Depois tenho que seguir por uma parte perigosa pelo asfalto estreito e sem acostamento para contornar um pequeno costão.
Um cara de camionete raspa no mastro desmontado e risca sua lateral e quase acaba com minha viagem. Se ele batesse frontalmente no mastro, o mesmo viria por cima de mim e eu iria "entrar pelo cano".
Ele foi tão "maneta" que nem parou para olhar, deve ter ficado com vergonha, além de ter ficado com um "recuerdo" do Imortal!
Desço um barranco e retorno a praia, onde um fraco vento de popa me permite velejar rumo a Ponta do Gi.
Ali há uma pequena estradinha que liga ao outro lado da ponta e segue até a praia de volta.
Como o vento está favorável, sigo de "patinete" até lá.
Dali sigo velejando em direção de Itapirubá. Foi mais adiante que eu e o Luigi acampamos pela segunda vez. Foi no meio das dunas onde houve um temporal e ali ficou o sargento Fogareiro, morto em combate.
Vou seguindo, como vou achar o local se as dunas são todas iguais?
Lembro de um poste e umas dunas mais altas ao fundo...
Vejo um local parecido e vou conferir. Tchê, não é que encontrei?
Lá está o coitado no mesmo lugar na duna, apenas caiu porque o vento retirou a base.
Tiro fotos, coloco-o de pé e vou embora. Como decidi que vou voltar, melhor pegá-lo na volta.
Sigo até Itapirubá (que é outra ponta), desmonto a vela (por causa dos fios de luz) para atravessar uns 500 m de rua até o outro lado do povoado onde há a praia novamente.
Ali quase não há praia, o mar está alto e quase bate nas construções e galpões que guardam os barcos de pesca.
Mais adiante monto a vela e sigo em frente, já avistando o início de tudo: as ilhas e o morro de Imbituba.
Não deixa de ser uma emoção. Fosse o ponto final, a emoção seria maior.
Será um bate-e-volta, pois dali retorno para o sul.
Passo pelo museu da baleia onde há uma réplica de um filhote de Jubarte na frente.
Vou me aproximando das pedras e da ilha quase encostada no continente. Está havendo um campeonato de surf ali no canto da Praia da Vila. Aqui ocorreu uma etapa do WQS, (a nata do surf mundial) onde Kelly Slater ganhou .
Peço a um pessoal tirar fotos do Imortal encilhado nas pedras (14:15 h). Tiro um peso dos ombros, os 1630 km que planejei fazer viraram realidade. Agora botei na cabeça de fazer mais 370 para fechar as tais de mil milhas náuticas (1858 km), pois as milhas terrestres (1602 km) já foram pro espaço.
Tendo ânimo, vou até os 2000 km e parar, pois mais que isso fica parecendo cachorro correndo atrás do rabo.
Aparece seu Jorge e Henrique, pescadores ali do canto. Dizem que esta noite haverá show do Zé Ramalho... Gostaria de assistir, mas para evitar confusão vou em frente.
Como está soprando sul, retorno pela praia e subo até o bar de seu Gelson, onde montamos os carros e partimos no final da tarde de 15 de Julho.
Ele está por ali e aproveito para almoçar um prato de salada, pirão e peixe frito.
Decido que vou até Ibiraquera... Não lembro quantos quilômetros são, mas desmonto o mastro enquanto Rodrigo fica conversando comigo. Ele é muito gente boa e está trampando como segurança ali ao lado.
Sigo pelo asfalto e vou subindo sem parar rumo a BR 101. Cara é subida sem parar. Há uma placa que indica Ibiraquera, o mirante, o museu da baleia e um farol.
Chego ao mirante, tiro fotos. Dali é possível ver o Porto de Imbituba e a praia da Vila mais ao fundo.
- Senhor, esse lugar é alto!
- O Imortal foi feito para andar ao nível do mar... Ele está passando mal e o pelotão está ficando desidratado de puxar esse animal pesado montanha arriba.
- Eu sei e também estou brabo, se quisesse fazer escalada voltava ao Aconcágua.
- De quem foi a idéia de Ibiraquera?
- Do "Espírito que Manda"!
- Bueno, se foi Ele: "tudo cessa quando a musa canta e um valor mais alto se alevanta"!
- É melhor seguirmos em frente, pois já subimos demais e essa coisa de elevação não acaba!
Tchê, pensava que no mirante encontraria o ponto mais alto, mas seguimos para uma parte mais inclinada ainda até chegarmos ao topo de onde podia avistar o farol em um morro mais para baixo. O suor escorrendo solto e a respiração ofegante.
Menos mal que está nublado e esfriando.
Na descida vejo meu destino final.
Uma paisagem deslumbrante: o asfalto escorre entre o verde das montanhas e vai se perdendo entre as dunas douradas que há lá pra baixo. Depois das dunas se vê a Lagoa de Ibiraquera para bombordo e o mar para boreste.
Montanhas sem fim demarcam o fim das praias extensas e o ponto onde o Imortal não pode mais seguir livre, no rumo dos ventos sem fim.
Até hoje velhos e crianças comentam da vez que um windcar subiu ao alto da montanha. Os nativos se ajoelhavam; pensavam que aquilo era o veículo dos deuses do Olimpo.
- Senhor, que fumaceira é aquela no horizonte?
- É a Guarda do Embaú...
- São índios?
- Sim, da tribo Marijuana!
- São antropófagos?
- Não, adoram "cachimbo da paz" e chá de ervas exóticas...
- ????
- Cogumelos de bosta de vaca, folhas e raízes de Dama da noite, etc...
Tchê, se a inclinação para vir já era terrível, o pior era a inclinação da descida.
Aquilo "despencava" até a praia da Ribanceira. O Imortal não tem freios e segurá-lo na descida estava detonando meu ombro direito.
Quero ver eu subir esse negócio se quiser voltar!
Droga, que mania de fazer as coisas sem pensar e sem conhecer o campo de combate...
Agora te rala cara!
Algumas vezes deixava o carro encalhar nas canaletas de drenagem para descansar um pouco, pois as "juntas" estavam estralando.
Pior que isso só o som dos rolamentos do Imortal.
Parece aquelas "comunidades" de bugios das ilhas do rio Paraná. O ronco era muito parecido e quando o Imortal pegava velocidade o ronco aumentava a ponto de irritar o comandante, que direcionava o Imortal por dentro da água para afogar os macacos.
Finalmente chego a praia da Ribanceira. Altos barrancos e praia estreita. O mar quase bate nos barrancos e uma espécie de neblina prenuncia um final de tarde esquisito.
Acho uma brecha no barranco e deixo o Imortal despencar para a praia.
Por causa do morro quase em cima, ali não havia vento.
Sigo em frente me questionando o porquê de ter vindo aqui. Teria sido tão fácil dar meia volta e seguir para o sul... Vou gastar cerca de três horas desde Imbituba até a Barra da Lagoa de Ibiraquera. Amanhã será pior!
Olho para o mar cinzento e vejo algo escuro logo depois da rebentação.
Deve ser um boto!
Dali há pouco um imenso chafariz de uns cinco metros de altura. Depois parece haver um enorme tronco negro na superfície do mar.
Cara! Eu nunca tinha visto isso na minha vida... Uma baleia!
Não dessas que a gente vê em terra, comendo salgadinhos.
Uma de verdade...Viva!
Quase ao lado da primeira vejo uma segunda.
Seguindo para o norte vejo mais duas...
Que legal! Que alegria ao ver algo que nunca havia visto na minha vida.
Na viagem de caiaque lá no Rio de Janeiro quase bati em uma, pensei que a barbatana fosse um pedaço de pau, mas ela foi pro fundo e não vi o bicho, embora tenha chegado a menos de cinco metros com o caiaquinho antigo.
Que experiência emocionante! Até esqueci da lomba e do que estava fazendo.
O "Espírito que Manda" se manifesta:
- Viram seus boludos? O pelotão não é nem será comum.
Tivessem retornado de Imbituba para o sul não teriam visto as paisagens que viram e nem teriam tido essa experiência emocionante!
- Nunca tenham medo de arriscar!
- Essa de "profeta do acontecido" quando algo dá errado é para quem nunca saiu da frente da poltrona e acha mais fácil ficar na frente da tv assistindo um programa de auditório, hipnotizado pela rotina e novelas da vida.
É verdade, quando estou desanimando ou quase no fim penso nas inúmeras vezes que quase desisti e nas experiências gratificantes ao insistir, de poder ter visto mais além.
Graças a insistência vejo coisas emocionantes, retalhos de aventuras.
Sigo pelo escuro, mas não acho a barra. Subo pelas dunas na direção das luzes. Começa a chover fracamente. Havia um camping subindo a barra. Ficava bem na margem.
Quando chego no fim há um hotel enorme, o camping não existe mais. O porteiro diz que há outro retornando,
- É adiante da Raia 1!
- Raia 1? Não é do Renato Pozzolo?
- Sim, você o conhece?
- Claro, o Pozzolo eu considero um grande amigo. Ele tinha uma guarderia náutica na Av Guaíba, no bairro Ipanema em Porto Alegre.
Quando ficou sabendo da minha viagem pioneira de windsurf de Porto Alegre ele organizou uma palestra na Associação Gaúcha de Windsurf.
Isso foi nos anos 80, tinha ele e o Leka, o Diabo, a Marta Santos, as Gêmeas, seu Antônio e tantos outros.
Ele quase foi campeão brasileiro e só perdeu porque caiu quando liderava, foi no nervosismo e no detalhe. Era o melhor de todos!
Retorno e encontro a pousada. Quem está cuidando ali é o Paul e sua esposa Paula. São simpaticíssimos. Chega Albernaz que é cirurgião vascular, nasceu em Rio Grande (onde meu pai se criou) e trabalha em Novo Hamburgo (onde nasci). as coincidências não param aí, ele conhece o Nardi, o Simões e tem um windcar francês... Diz que já passou de 100 km/h no seu.
A conversa flui em companhia de Diabo que chegou ali também. Que legal, ele ainda se lembra até do meu nome...
Paul diz que o Pozzolo bateu o recorde de velocidade de windsurf indo de Chuí até Rio Grande em 7 h pelo mar.
Eles conhecem o Kauli Seadi que é filho de nosso professor de tênis, o Ricardo que é meu vizinho de beira da Lagoa da Conceição em Floripa...
Algumas coincidências!
Por falar em Kauli ele foi campeão mundial de Windsurf e semana passada ganhou a etapa do mundial aqui em Ibiraquera. Ele derrotou lendas como Rob Nash...
Resolvo ficar, mesmo a diária sendo acima do padrão do pelotão, mas foi um prêmio por ter chegado ao ponto mais ao norte da viagem.
Paul me traz pão com salmão que Albernaz havia preparado. Que delícia!
A chuva cai forte e o pelotão dorme numa cama com lençóis limpinhos e tendo pesadelos, pois deixei a tv ligada e passa Zorra Total... Ninguém merece!

23-09-07 Domingo
Acordo cedo, parece haver um carro com motor ligado, mas é o exército de Thor rugindo porque foi enganado pelo pelotão.
É trovoada que não acaba mais. Estou com preguiça aliado ao fato de estar chovendo e saber que existe a rampa para os céus de Olímpia me esperando para chegar de volta a Imbituba.
- Doutor, como está o soldado TE?
- Senhor, depois de tanta pomada para cavalo ele não incha, relincha!
Fico deitado até mais tarde, tomo outro banho e inicio a arrumar as coisas.
Paul traz o café, eu até já tinha comido minha gororoba, mas pensando no esforço que farei, resolvo aceitar.
Paul é filho de dinamarqueses e Paula é tão simpática quanto ele. Sua filha Camila é linda, assim como a amiguinha dela, filha de holandeses.
Além da pousada, aqui tem uma guarderia de wind e kite surf, esporte que Paul pratica.
Despeço-me de Paula e sigo com Paul para a praia. Parou de chover e há um fraco vento NE que pára justo na hora que vou partir...Corno!
Chega Lars, irmão de Paul e ele diz que amanhã entra vento sul forte.
Droga, teria que chegar hoje em Laguna, mas já são quase 14 h...
Resolvo seguir e dormir onde escurecer.
Sigo puxando, certo que mais bons amigos o pelotão acaba de conhecer.
O vento se manifesta fracamente e resolvo andar no "patinete" para tirar a "virgindade" desta praia. Passa um cara correndo pouco depois, é John, um americano que puxa conversa por causa do carro.
Depois vejo as baleias de novo e subo o barranco para tirar umas fotos com o Imortal em primeiro plano. Vejo a imensa cauda, chafariz e até a cabeça quadrada que uma coloca para fora. Acho que são cachalotes!
De certeza eu vi um filhote ao lado da mãe. Baleias grandes havia quatro.
- Pelotão! Sentido!
- Preparem-se para a peleia!
Sigo em frente, subo o barranco já na praia da Ribanceira e chegam Leonel e Cláudia que moram ali e param para conversar enquanto chove.
Eles ficam maravilhados com a viagem e convidam para voltar um dia e visitá-los.
Sigo em frente e começo a subir a ladeira íngreme. Que dureza!
Não sei se estou molhado da chuva ou do esforço para escalar aquilo.
Bem ou mal o pelotão chega lá no alto. Há uma neblina que não permite ver muito além. No GPS deu 180 m de altura, mas pareceu ser 1180m.
- Soldados, do alto dessa montanha 1650 km vos contemplam e 350 km vos esperam!
- Senhor, estamos confusos com essa estória de milhas náuticas, milhas terrestres.
- Porque não é tudo em quilômetros?
- Por causa dos ingleses. Eles pensam que são diferentes, andam pela esquerda, o peso não é em quilos, é em libras. Profundidade é em pés e por aí vai...
- Esses caras são uns "atravessados"!
- E as mulheres também são "atravessadas"?
O Tenente Issi esteve por Londres e retruca:
- Elas são normais, apenas a diferença é que depois de tudo elas não fumam um cigarro, preferem tomar um chá...
- O pior é que eles espalharam seus costumes pelas colônias...
- Sim, mas quem inventou o "viagra" não foram eles, foram os indianos...
- Tu deve estar falando naquela estória de encantar a serpente, mas aquilo não funciona direito...
- Não?
- Claro, como é que o vivente vai transar e tocar flauta ao mesmo tempo?
- Bueno, então tem que ser o marido e um amante...
- Resta saber quem vai tocar a flauta!
- Chega seus inúteis, ainda temos que descer o monte da Agonia e chegar a praia.
Está soprando vento do norte. Se conseguir chegar lá e o chifrudo do vento não parar posso ir um pouco além do que quero. Amanhã seguir contra o vento sul forte que virá será um problema.
O problema é que chego a praia só depois das 17 h. Nublado como está escurece antes.
Encontro Gelson de novo. Despeço-me do amigo pela terceira vez. aliás, todos os pontos por onde passar agora será pela terceira vez.
Exceto Ibiraquera e La Coronilla que foram os extremos e Quintão, pois passarei e retornarei pela quarta vez. Ali, se Deus permitir, encerra a viagem, depois de 2000 km.
Armo a vela e sigo velejando devagar rumo a Itapirubá. Já está escuro, desarmo a vela, atravesso a ponta pelo povoado e rearmo do outro lado.
- Senhor, como vamos resgatar o sargento Fogareiro no escuro?
- Ele ficou ali até hoje. Um dia eu venho de moto e o resgato...
Todos ficam tristes, gostariam de levar consigo os restos mortais de um companheiro de mais de 20 anos de peleia.
Sigo em frente, já está difícil para navegar no escuro, não tem como saber onde fica o local no escuro e nas dunas.
Vou em frente, mas o olhar não deixa de perscrutar as dunas na vã esperança de poder encontrar meu companheiro.
Depois de um tempo acho que vi algo. Saio da beira e atol. Resolvo deixar o imortal ali e subir um pouco mais. acho que vi um poste e umas dunas altas. Sem ver direito adentro em um banhado e me enterro na areia mole, mierda!
Continuo em frente e reconheço uma das dunas. Adiante tem outra alta então tenho que dobrar a esquerda para encontrar aquela onde montamos a barraca e deixamos o sargento.
Cara, consegui! Chego mais perto e consigo encontrá-lo no escuro.
Ao voltar para o Imortal o resto do pelotão urra de felicidade.
Amarro na parte de trás e volto para a beira.
O vento parece ter diminuído. Agora eu fiquei mal, pois vejo clarões no céu e algo ruim vem por aí. Pior é que será bem na região de dunas sem abrigo como foi da outra vez.
Sigo velejando e "bombeando" a vela. Assim vou seguindo e começo a rodar pela parte molhada, pois ali reflete um pouco a luminosidade da lua que fica encoberta por nuvens rápidas.
Vejo luzes ao longe. É um povoado antes da ponta do Gi.
Os clarões estão mais freqüentes.
- Senhor temporal a frente.
- Teremos que desmontar o mastro!
- Negativo, toquem o máximo que puderem. Ficar sem abrigo no escuro e na tempestade pode ser pior.
Consigo chegar na ponta do Gi, atravesso a estradinha até o outro lado e retorno a praia. Vejo as luzes longínquas de Laguna e o temporal se aproximando pelo sul.
Situação parecida com a do farol Albardão em menor escala.
Tenho que chegar pelo menos até um pequeno costão antes da última praia, ali fica só há três quilômetros da Barra e posso seguir puxando.
Virou um jogo enervante, pois mesmo o vento tendo aumentado um pouco minha aproximação é enervante, pois além dos relâmpagos, escuto os trovões.
- Homens, huevos!
- Sigam em frente e mantenham a lança do Imortal apontada para os inimigos do céu.
- Senhor, eles vão nos transformar em torresmo!
Finalmente, por volta de 21 h o pelotão chega ao destino. Desarmo a vela e arrasto o Imortal para cima.
Há um vigia das casas ali. A cachorrada dele se põem por cima, mas ele os chama e me ajuda a levantar o carro sobre a barreira que tem ali.
Sigo puxando pelo asfalto naquela parte perigosa e estreita agora no escuro.
Muitos carros travam bruscamente, mas deu tudo certo.
Desaba o maior temporal e sigo pela chuva.
Quando passo pela pior parte, apesar das trovoadas e relâmpagos, vou cantando Sing in the rain e chutando as poças de água.
Como é bom ganhar!
O vento parou total e começa a vir do sul.
Sigo até o camping, deixo o carro sob um telhado (não tem ninguém) e como não chove mais vou comer algo para comemorar.
Tchê, fui longe para encontrar algo aberto àquela hora e entra um violento temporal acompanhado de vento fortíssimo do sul...
Tenho que ficar na lanchonete por horas até dar uma leve diminuída na chuva e voltar ao camping onde dormi no chão, ao lado das pias como da outra vez.
Amanhã o Zinho chega e eu fico em um quarto.

24-09-07 Segunda
Fui para um quarto, levo o Imortal e o deixo em uma oficina mecânica para trocar os rolamentos e seguir viagem. Parece que só vão trocar amanhã.
Agora são quase 19 h e estou terminando o diário aqui no centro.
Amanhã provavelmente eu sigo.
Abração

Tchê, esse tal de Thor é um chifrudo mesmo. Tentou matar o pelotão a choque, mas para desafiá-lo resolvemos velejar até às duas da matina em pleno temporal. Ontem também viajamos de noite, mas fomos premiados com a lua nascendo cor de fogo no mar e os soldados de Thor (nuvens) fugindo para o norte.

Trecho Laguna - Torres

Laguna 25-09-07 terça

A MALDIÇÃO!
- Senhor, essa guerra parece uma maldição!
- Mais ou menos...
- O "Espírito que Manda" ficou irado quando o pelotão foi de moto com mil e seiscentos dólares dentro da bota para pagar o Imortal...
- O que aconteceu?
- Os dólares voaram de dentro da bota, nota por nota!
- Fomos amaldiçoados e só sairemos dessa quando pagarmos um quilômetro por dólar perdido.
- Mas já andamos mais de 1650 km!
- A maldição quer que paguemos com juros e correção monetária!
- Além disto, em nossa ausência Thor, o chifrudo, atacou o Rio Grande e vários municípios estão em calamidade pública.
- As ordens são para voltar ao Rio Grande e destroçar o inimigo!
- Senhor, eles tentaram nos atacar aqui, mas foram derrotados.
- Eles não sabiam que o Imortal tem uma lança apontada para o céu. Ela furou a barriga do inimigo e eles sangraram até morrer...
- Além disto não encontramos as descendentes de Anita.
Sigo para a mecânica de Rud que tem cavalo e me orienta para uma futura viagem...
Eles trocaram os rolamentos das rodas, mas o bagageiro está rompendo na solda anterior. Nova solda e a constatação de que havia rolamentos na guia da roda dianteira... Havia, mas agora só restou o parafuso e uma tremenda folga.
Azar, o pelotão tem que voltar ao Rio Grande para se livrar da maldição e combater o exército de Thor!
Volto ao camping e depois de despedir-me de Zinho e Flávio, retorno para a balsa. O pior é que a mecânica era perto da balsa e o camping perto da barra. Foi um vai-e-vem do cão.
Agora é como gaúcho gosta, tudo "TRI", ou seja, todos os lugares por onde passar será pela terceira vez!
Atravesso a balsa e às 12:30 h estou do outro lado. Tenho vento sul pela frente, mas o pelotão já está acostumado...
- Senhor, não é justo! Esse desgraçado sempre se vira quando o pelotão muda de rumo!
Paro em um povoado para almoçar, pois estou cadavérico e o esforço será grande pela estrada contra o vento.
Na lagoa de Santo Antônio tiro umas fotos de barcos pendurados sobre a água em pequenas palafitas que lhes servem de abrigo. Eles são suspensos por rústicas roldanas de madeira.
As horas passam, encontro outros moradores que dizem que tratores abriram a barra do Camacho, então é melhor seguir em frente pela estrada para cruzar pela ponte, já em Camacho, bairro de Jaguaruna.
Passo pela lagoa da Cigana e logo chego a ponte. Antes dela há uma lagoa e uma placa dizendo para preservá-la, pois ali vive um jacaré.
Aqui passei na volta de bicicleta pela América do Sul e esse povoado e a ponte não existiam. Quase perdi a bicicleta na travessia por dentro da água.
Mando notícias pela net e depois sigo pela rua a beira das dunas e chego a uma casa, a última da rua. Ali tem uma baita varanda. Coloco o plástico no chão e deito por cima. Cansei brody! Foram no total mais de 25 km puxando o Imortal no vai-e-vem de hoje.

26-09-07 quarta
Acordo cedo, pois uma corruíra atrevida pousou nos meus cabelos e esgravata atrás de aranhas e piolhos.
Arrumo tudo, como a granola e chega um senhor. Ele já chega de sola:
- O senhor não pode ficar aqui!
Como o pelotão já sente o astral das pessoas, adota a tática do bateu levou:
- Não, eu vou ficar aqui olhando aquele pé de pinus crescer!
- Tu não tá vendo que eu já estava de saída?
- Tu és o dono?
- Não, mas eu cuido...
- Se cuidasse, estaria aqui quando eu cheguei à noite!
Ele entra na casa e observa se não falta nada...
- Vê se eu não peguei a tv para assistir no carro a vela!
Ele me fuzila com os olhos e devolvo o olhar pro chifrudo.
Arrumo minhas coisas e sigo para atravessar as dunas.
Lembro de certa vez quando eu, o Bello e o Rojas resolvemos seguir pelas dunas desde a Lagoa da Conceição até a praia da Joaquina.
Em certo momento o Bello falou que tinha treinado nos fuzileiros a caminhar pelas dunas:
- Querem ver?
Eu e o Rojas, já conhecendo o nosso amigo, dissemos que não precisava!
O Bello começou a balbuciar:
- Eu preciso, eu preciso,,,,,
E o cara se foi dunas afora para "demonstrar" a eficiência de seu "passo ninja".
Diz a lenda que foi encontrado semanas mais tarde. Ele caminhou até bater no muro do Grupamento de Fuzileiros Navais, em Rio Grande onde desmaiou. Quando despertou passou a vagar pelas dunas e a gritar em voz alta:
- Eu amo a minha mulher! Eu amo a minha mulher!
Quando soubemos do paradeiro, fomos resgatá-lo em Rio Grande.
Hoje ele é clinico geral na polícia militar e no centro comercial de Campinas.
- Senhor, esses seus amigos médicos são meio "gira". Um chuta a parede e destronca os dedos, seu irmão adora "guerra de bugio", faz necessidades na mão e joga nos outros... Agora esse daí!
- Mas ele tem um amigo médico "normal", é o Dr Verdi, dermatologista...
- As mulheres sempre dizem que ele é educado e não olha para outra mulher que não seja sua esposa. Sequer faz comentários...
- Esse cara é um mau exemplo, pois quando dizemos que todo homem olha ou comenta elas logo dizem:
- O Verdi não olha!
- O Verdi não comenta!
Certa vez, em uma festa de despedida, resolvemos fazer um teste definitivo. Eu ficaria conversando com o Verdi sobre um programa de prevenção de AIDS que ele estava desenvolvendo e pediríamos para uma amiga passar ao lado.
Já tínhamos câmaras de alta velocidade para registrar o momento e desmascarar esse homem "reto"!
A Aninha era ma-ra-vi-lho-sa e conseguimos que concordasse em fazer um topless e passasse a nosso lado no momento que eu estivesse conversando com ele:
- Por favor Aninha, é pelo bem da ciência!
Eu já estava preparado para o momento, pois deveria cuidar o Verdi para ver se ele movia os olhos para o lado.
Coloquei viseira de cavalo e óculos escuros.
Quando a Aninha passou, três colegas ficaram com problemas permanentes de torcicolo, um quase ficou tetraplégico.
Cara, ele continuou falando do programa de prevenção e não desviou o olhar.
Depois fomos olhar na filmagem em alta velocidade e só aí vimos que ele moveu o cantinho do lábio...
- E qual foi a conclusão?
- Foram duas:
- Ele não é desse planeta e certamente não é do planeta Vênus!
É por isto que todo médico não conversa muito com os pacientes, eles têm medo de mostrar a sua verdadeira personalidade!
Quando chego a praia, o vento ainda não surgiu e resolvo seguir puxando. Na praia de Figueirinha encontro pescadores recolhendo a rede e Gabriel quer de toda a maneira que eu fique e almoce com eles...
- Me faria muito gosto, diz ele!
Digo que não é desfeita, mas eu tenho que aproveitar que o mar está baixo e seguir, pois aqui é região de dunas altas e o mar batia nelas quando eu passei dia 20.
Sigo em frente e o vento fica um pouco melhor e sigo no patinete, velejando e puxando quando atola.
Às 15 h chego a barra do rio Torneiro. Desmonto o mastro e sigo até a casa de meu amigo Rogério. Ele não está e tenho que esperar. Uma menina aparece com seu filhinho. Coloco o guri no Imortal e o puxo. Ele fica fascinado e não quer descer.
Quando chega o Rogério, a menina e seu filho seguem junto no caíque.
Já do outro lado sigo em frente com vento de popa fraco. Passo pela plataforma norte de Rincão e ali vejo algo que não queria ver: Um lobo marinho está tendo convulsões na areia. Está morrendo e não posso fazer nada...
Merda!
Há um círculo pequeno onde ele se arrastou e outro maior, crivado de patas de abutres...
Aquilo indica que eles se aproximavam para bicar os olhos do lobo e ele girava para se defender.
A primeira coisa que os abutres comem das carcaças são os olhos e às vezes eles não esperam que o animal morra para iniciar o banquete.
Ele está virado de barriga pra cima e os olhos raspam na areia. Tem espamos semelhantes a soluços e move a nadadeira para cima sistematicamente.
Quando tento desvirá-lo, ele reage... Tomara que ele morra esta noite antes que os abutres voltem amanhã!
Sigo meu caminho, olhando para a frente tristemente. Apesar de tudo admiro o bichinho que está lutando até o fim... Peleando hasta la muerte!
Espero que assim seja comigo, embora eu acredite que nosso destino já esteja escrito!
Mais adiante passo pela segunda plataforma. Um homem correu quase mil metros com seu cachorro para me alcançar enquanto desmontava o mastro para cruzar a plataforma.
Era seu Ciso, que queria de todas as formas que eu fosse dormir em sua casa...
Foi ele quem me levou lanche e pomada para o tornozelo quando dormi na vinda.
Novamente fiquei constrangido, mas o pelotão tem que aproveitar o vento favorável, mesmo que seja fraco.
Ao anoitecer chego a barra do rio Araranguá. Sigo velejando subindo a foz até que fica estreito demais e tenho que seguir puxando no escuro.
Finalmente chego na Ilha e ali revejo meu amigo, seu Alvacir, aquele do acidente do caminhão...
Janto com eles e começa a chover forte aliado às rajadas de vento.
Tomo dois copos de vinho e um delicioso arroz com guisado e ovo que dona Raquel preparou.
Fico assistindo aos noticiários, já são 21:30 h, a chuva tocada a vento aperta e resolvo seguir pela noite rumo a balsa.
Ele se nega a me cobrar e comenta com seu Schimidt:
- Isso é que é coragem!
Como se o verdadeiro corajoso ali não fosse ele, que quase morreu em um acidente terrível e reconstruiu sua vida.
Isso sim é que é coragem!
Saio dali certo de que ganhei um grande amigo!
Assim estarei do outro lado quando amanhecer. Eles disseram que a última é às 23 h.
Sigo pela estrada no escuro, parece que aquele vinho me tirou o sono e o cansaço.
Lembro das folhas de coca que usei para subir a cordilheira dos Andes de bicicleta. Todos diziam que tirava o cansaço e ajudava a respirar melhor na altitude.
Não funcionou e troquei as folhas por duas peles de ovelha que um campesino recém havia carneado. No dia seguinte todas as moscas da cordilheira me seguiam.
- Soldados, não pisem onde brilha. Ali é água ou lama!
Chove, pára e assim vou em frente passando por povoadinhos onde os únicos despertos são os cachorros que latem sem parar.
Às 22:55 h chego a balsa.
Cruzamos o rio e sigo puxando para o Morro dos Conventos.
- Senhor, não seria esse o "Morro dos Ventos Uivantes"?
É uma tempestade que se aproxima e a chuva castiga o pelotão que se perde. Queria um atalho para a praia Pai Querê e acabo tendo que subir o morro e descer naquela lomba gigante... Mierda, fiz uma volta gigante e não serviu para nada!
É meia noite e começo a longa descida para a praia.
Quero dormir na varanda de uma casa, mas ali não parece legal.
Sigo pela praia e subo quando vejo outro povoado. Não encontro nada de acordo, tem muita gente por aqui e vou me incomodar...
- Droga, porcaria!
- Voltem para a praia, armem a vela e sigam velejando!
Um baita temporal, tudo encharcado e perto de duas da matina o pelotão segue em campanha desde às oito da manhã...
Pelo menos o vento está bem forte e vamos passando por atoleiros e saídas de riachos sem fim.
A briga está tipo assim: peleia de foice no escuro!
Consigo desviar das estacas de redes e avançando bem rápido.
Resolvo seguir assim até o amanhecer, mas uma visão pavorosa de uma tempestade elétrica me deixa sem saída.
Não sei onde estou, mas vejo uma casa na beira que me pareceu familiar.
Volto e percebo que foi ali que eu e o Luigi dormimos no auge do inverno (Arroio do Silva). Naquela noite fez 4º abaixo de zero ali na serra ao lado.
- Senhor, ataque aéreo!
- Procurem uma trincheira e agüentem!
Arrasto o Imortal, desmonto a vela e a tempestade fica mais forte ainda.
Vejo parelhas de barcos de pesca seguindo para o sul enquanto raios e trovões iluminam tudo como se fosse dia,
Esses caras que trabalham em traineiras devem tener una pelota a mas, pois enfrentar ondas e tempestades em alto mar não é para qualquer um.

27-09-07 quinta
Acordo mais tarde, já parou de chover. Arrumo tudo e sigo para a peleia. O fresco do vento acorda mais tarde e resolvo seguir puxando.
Logo adiante chego na pousada de seu Valmor. Falo com dona Adelina que não me reconhece, diz que estou muito magro... Que alegria ouvir isso!
Falo com Nei, filho dela e que é vereador em Arroio do Silva. Chega seu Júlio e depois seu Valmor. Ele não me reconhece quando pergunto se tem quarto, mas se alegra quando pergunto se tem lugar para guardar um windcar.
Acabo almoçando com eles e depois ele me mostra um galpão atopetado de redes e um trator. Até um cilindro de metal todo furado para descascar marisco.
Ele vai sestear e eu sigo em frente!
O vento fraco torna o avanço lento, mas melhor que nada.
Ao final da tarde chego no balneário Gaivota e já escurecendo o vento pára!
Sigo puxando pela noite e quando me viro para olhar o mar vejo uma bola cor de fogo surgindo entre as nuvens do exército de Thor que fugiu para o norte.
Que coisa mais linda!
O céu fica estrelado para frente e sigo olhando para o céu.
Que coisa estranha, estar aqui na beira do mar no escuro, vendo a lua surgir no mar depois de uma tempestade e viajando de windcar há mais de dois meses. Irado brother!
Encontro o leão marinho morto na entrada de Rosa do Mar e tiro umas fotos do bicho ao lado do Imortal.
Vou para a casa onde dormi na vinda e me ajeito sobre as tábuas.

28-09-07 sexta
Acordo cedo e às 8h o pelotão já está perfilado na praia. Ando um pouco e paro na guarita onde Borges e Rafael me atenderam, já em Bella Torres.
Ainda está ali o chuveiro onde removi o sangue do rosto na chegada do caiaque ano passado.
O vento sul entra forte e com tudo.
- Senhor, o inimigo não desiste de nos atacar.
- Preparem as lanças!
- Lança senhor? Não seriam baionetas?
- Eles escolheram a hora e o local errado para nos atacar com força.
- Aqui a praia é larga e a essa hora o mar está mais baixo.
- Vamos de Imortal pra cima deles!
E assim o pelotão seguiu no contravento e driblando troncos e arbustos que o rio Mampituba jogava no mar e que vinham parar na praia.
Às 9:40 h o pelotão encilha o Imortal na barra norte do Mampituba.
Chego ao centro de Torres, soldo o bagageiro que rompeu do outro lado.
O cara da solda (Manoel) tem uma academia de box e é muito gente fina.
Resolvo ficar aqui para escrever e amanhã, se o tempo estiver bom eu sigo.
1820 km já se foram. Parece que o pelotão segue até o farol da Solidão e ali será resgatado pelo tenente Paulo, o que adora pelear como bugio, hehehe
Abração
André

Pois é. Resolvi ficar um dia a mais em Torres para descansar e recuperar o peso, pois afinal estou "só" 14 kg mais magro desde que iniciou este passeio.
Vi pela primeira vez na vida um balão. Passou na frente do hotel e não deu tempo de fotografar. Era todo preto!
Fiquei o sábado todo deitado e comendo como um chancho (porco), mas eu nunca fiz isto antes e estava precisando.
Amanhã seguimos em frente.

30-09-07 Domingo
- Senhor o pelotão está terminando esta viagem e não fará nada de especial?
- O "Espírito que Manda" deixou ordens que serão reveladas na praia da Guarita.
Até hoje apenas viajei contra o vento. Entre outras coisas quero ter o gostinho de viajar um pouco com vento favorável. Do contrário, para quem entende de carro a vela, vai parecer que somos uns boiolas.
Quero ter o prazer de viajar a favor do vento como todos viajam de windcar. Todos viajam a partir de novembro quando é mais quente, a praia fica mais lisa e firme e predomina o nordeste.
Encontro Lopes e depois de um chimarrão sigo para a praia.
Às 12:30 h avanço com um fraco vento de popa até chegar no morro onde tenho que subir por uma estradinha e descer do outro lado.
Ali o vento começa a ficar forte e o Imortal começa a pegar velocidade.
Espero hoje chegar em Capão da Canoa e completar as mil milhas náuticas, minha homenagem ao Danilo do Veleiros que sempre me apoiou e "lançou" a idéia.
Um pouco antes tenho de desmontar a vela para passar pela plataforma de pesca de Atlântida.
A velocidade é o que mais me deixa preocupado, pois o Imortal está como um louco e o vento favorável está bem forte.
Passo por Capão por volta de 14:30 h e sigo como um bólido pela praia, desviando de pescadores, crianças e varas de pesca.
Um guri está lá em cima nas dunas e deixa a linha atravessada lá na praia. O mastro do Imortal me salva, mas a linha zune no mastro até que a chumbada e os anzóis dão uma chicoteada bem sobre minha cabeça. Menos mal que eu já tinha diminuído a velocidade e estava fazendo a volta.
Iria dar uma puteada no irresponsável, mas quando vi que era um guri, deixei para lá.
Sigo em frente e perto de Imbé há vários kitesurfistas aproveitando o forte vento para fazer manobras no mar.
O Imortal é metido e "roubou" a cena!
Como dizia Vinicius de Morais:
- O kitesurf que me perdoe, mas o Imortal é radical!
O carrinho passa voando pela praia e, de exibido, faço um jaib e o Imortal passa com uma roda no ar. A galera aplaude...
Brody, no vento forte não tem pra ninguém, o windcar passa de 100 km/h. Não o meu que tá carregado até os olhos, mas em competição qualquer um passa de 100.
- Senhor, a namorada de um deles se atirou em nosso carro...
- Coloquem o nosso nº de telefone no biquíni e a deixem na próxima onda!
Baita macho!
E assim me fui, beijando boca de china e aparando guampa de macho, hehehe!
Andar com velocidade assim dá nos nervos, pois uma vacilada e adiós pampa mio!
- Hombres, huevos!
Às 15 h já estou na barra do rio Tramandaí. Desmonto tudo e sigo caminhando para a ponte. Atravesso a city e quando vou voltar para a praia uma senhora da lanchonete dali quer me dar algo para levar, pois ela conversou comigo quando passei antes.
O chato é que perco quase duas horas de vento bom, isso dá quase 60 km hoje.
Adiante tenho que desmontar a vela para passar pela segunda plataforma de pesca. Um senhor vem me ajudar e quer saber detalhes do carro.
Começo a pensar que dá de chegar em Quintão ainda hoje. Ali seria o final da viagem...
Chego em Salinas, outra plataforma...
Pronto, foi a última!
Agora tem menos gente na praia e o horizonte como destino!
- Senhor, não iríamos parar em Quintão?
- Sim, mas com esse vento mudei de planos, vamos seguir 50 km para o sul e "fechar a conta" em 2000 km. Fica exatamente no farol da Solidão!
- Mas já está escurecendo...
- Azar, agora botei na cabeça.
Sigo em frente depois de Quintão e a praia fica bem mais irregular e com muitas saídas de riacho. Está frio, meus pés estão dormentes, mas agora tenho que seguir com tudo. Além de tudo estou encharcado e esfria ao final da tarde.
Vejo muitos lobos marinhos vivos e também pingüins.
Alguns levam sustos enormes pois o imortal surge do escuro e quando eles querem correr para a água, o carro já passou.
Começo a tremer, parece que dará câimbra, mas sigo em frente e vejo a luz do farol piscando ao longe.
Que visão agradável!
Às 19 h chego ao farol. Fico alojado na varanda de uma lanchonete (fechada agora) e coloco roupas secas.
Nem acredito, 180 km em uma tarde!
Fechei os 2000 km. A tripulação está livre da "maldição dos dólares"!
A noite está linda e fecho os olhos tendo a visão da luz do farol da Solidão como uma espécie de sentinela enquanto o pelotão exausto dorme.

1º-10-07 segunda Outubro
Acordo com um nordeste soprando médio....
Cara, se esse vento boiola ficar mais forte, eu posso tentar uma coisa que dará respeito ao pelotão até entre os mais experientes pilotos de windcar.
- Pelotão, sentido!
- Chegaram as ordens do "Espírito que Manda"!
- Rio Grande hoje!
O protesto é geral:
- Mas senhor... Estamos quebrados de ontem. Fizemos 180 km em uma tarde...
- Além de tudo estamos livres da maldição dos dólares, pois já fizemos os 2000 km...
- Então podem fazer 220 km em um dia inteiro!
- Muitos homens quase tiveram câimbras...
- Ainda teremos de buscar ajuda para cruzar de barco a barra da Lagoa do Peixe... Isto se não furar nenhum pneu. Lembra dos bagres?
- Silêncio!
- Ordens são ordens. Tratem de cumpri-las!
E assim segue o exército Brancaleone.
Às 6:50 h o pelotão já está perfilado na praia. Em dia de peleia das brabas o pelotão não pára nem para comer nem para beber. Será uma batalha decisiva!
Sigo em frente e logo adiante encontro uma tartaruga de bico na praia. Ela é linda, mas está morta.
Depois vejo dois botos (mortos) em miniatura (Toninhas). Casualidade ou não eles estão próximos as redes, uma "praga" por aqui. São quase tantas como as saídas de riachos e rios. Um perigo, pois algumas saídas são escondidas e alguns cabos de redes ficam um pouco mais altos do chão quando o mar puxa a rede.
As horas vão passando, o carro não desenvolve muito pois a praia está mole e com inclinação.
Depois de passar pelo farol do Estreito inicia o parque nacional da Lagoa do Peixe, com uma extensão de 36 km para o sul.
Chego ao povoado fantasma e dou uma parada para cumprimentar os amigos Jorge, Jéferson e Lambari. Eles convidam para almoçar. Vacilo, mas depois o comando dá ordens para não abusar.
Resolvo seguir e eles vêm assistir a partida. O vento está bem mais forte e o carro inclina em uma roda e sai em disparada. Eles vibram e o Imortal segue em frente.
Às 12 h chego na barra. Deixo o carro e sigo a pé até a vila. Tomara que tenha alguém, pois no outro dia todos tinham se ido.
Encontro Jair. Ele me oferece café e conserta uma tarrafa. Os pescadores que restaram se queixam do pessoal do Ibama, pois o rigor é grande.
Depois seguimos para um caíque quase na barra e levamos até o carro. A travessia é feita tranqüilamente e vou remontando as coisas enquanto Jair vai tarrafear.
Atravesso as dunas e o carro segue em alta velocidade, pois ali o piso é firme e a praia é plana.
Andar assim cansa, pois como não utilizo mais os óculos de proteção tenho que ficar super atento às saídas de riacho. Daí os pneus jogam areia e água que tentam me acertar os olhos.
Todos os dias quando desperto tenho que utilizar uma pazinha para recolher a areia que fica no canto do olho.
Muitos pescadores estão recolhendo os peixes e tenho que cuidar para não pegar nenhum cabo esticado. Eles gritam quando o Imortal passa em velocidade.
Agora sim! Andar desse jeito impõem respeito!
Já tive bons dias, mas o vento não durava o dia inteiro como agora.
Começo a ficar nervoso, mas vou passando pelos pontos de referência mais ou menos como calculei.
Primeiro é um farol que não vi devido a neblina. Passei ao lado dele e não vi...
Está praticamente onde termina o parque nacional.
Muitas das casas onde dormi antes agora estão ocupadas.
Sei que há o riacho que estava forte e onde tive de desmontar a carga. Fica antes do farol do Estreito.
Antes dele tem o farol da Conceição.
As horas passam, passo pelo farol da Conceição onde o outro mais antigo já caiu no mar. Vejo mais duas enormes tartarugas e um golfinho maior, mortos na praia. Estranhamente a praia está limpa. O mar "varreu" todos os peixes mortos e nem parece a mesma. Chego ao riacho, atravesso puxando a pé, pois ainda está fundo e forte. Felizmente mais raso, dá de passar.
Depois o farol do Estreito, mas antes dele vejo a casa de Seldo, amigo dos hermanos.
Faço as contas mentalmente, devem faltar pouco mais de 40 km agora e tenho menos de uma hora antes que escureça.
A coxa da perna esquerda está querendo dar câimbra, os pés estão dormentes, mas o comandante não quer nem saber e estica o cabo para fazer o Imortal correr mais ainda.
Sinto a possibilidade de fechar 400 km em um dia e meio e a ansiedade aumenta demais.
Como a areia está grudenta, os pneus jogam toda sorte de porcaria nos olhos e sou obrigado a ir por dentro da água.
- Senhor, estamos tal qual um F1 e pode ocorrer aquaplanagem...
- Então diga que estamos de jet-ski!
Parece que o povoado de Marumbi não chega nunca, o sol já está no horizonte.
Não sei se foi a força do vento, mas quebrou mais uma tala e ela furou a bainha na vela.
Agora não tem mais aquela de andar devagar para preservar o material. É vai ou racha!
As rajadas ficam mais intensas e quase voando passo por Marumbi. Só faltam 12 km. Uma enorme baleia está na praia. Fosse de noite poderia ter me chocado com ela.
Há muitas garças mouras e joões-grandes que levantam vôo o suficiente rápido pro Imortal não lhes arrancar as penas.
Começo a gritar comigo mesmo, pois além dos pés dormentes de fazer força na guia da roda, estar tremendo incontrolavelmente e com dor no traseiro, ameaça dar câimbra a qualquer momento na parte posterior da coxa direita.
- Não quero ninguém arrepiando agora!
- Agüentem seus bunda-moles!
Às 18:30 h fiz o que não achava possível:
Saí no Domingo à tarde de Torres e encilhei o Imortal nos molhes de Rio Grande na segunda-feira (lunes) à tarde.
Foram 400 km...
Em pouco mais de 24 h...
O pelotão comemora sem parar.
Tiro fotos, entro com carro e tudo no mar para tirar toda aquela areia de nós.
Como é bom ganhar!
Iuuuuuuuuuuuuhhhhhhhhhhhhhhuuuuuuuuuuuuuuuu!
- Senhor!
- Sim?
- Dois mil duzentos e vinte quilômetros se foram!
- Não esqueçam que amanhã o pelotão marcha!
Sigo até o povoado da Quinta seção da Barra.
Vou ao boteco comer um bauru e ali encontro o César, o Luis Paulo e o Mateus.
Depois chega Chico Preto a quem eu considero um grande amigo.
Ele pergunta onde vou dormir, pois já é tarde e ninguém vai atravessar para o outro lado.
Ele oferece seu barco e sua casa para eu passar a noite.
Ligo para a mãe. Falei com ela ontem de tarde antes de sair de Torres e ela não acredita que no dia seguinte estou em Rio Grande...Nem eu!
A gurizada carrega o Imortal para o barco Lírio Grande l, pois o de Chico Preto estragou e amanhã a gente atravessa no outro.
Ele me instala em seu barco (eu não quis ficar na casa pois iria dar muito trabalho a eles) em uma cabine exígua onde ficam cinco pessoas...
Eles vão embora. Coloco roupas secas e tenho dificuldades para entrar no saco de dormir dentro do beliche que tem menos de 30 cm de largura.
Vida de homem do mar é dureza!
Que belo lugar para passar a última noite da viagem... Um barco pesqueiro!
Quanto mais inusitado melhor!

02-10-07 Terça
Acordo cedo, arrumo tudo e o mestre do barco chega. É Paulo. Explico a ele o combinado com Chico, pois ele estranha haver um carro a vela em seu barco, ainda mais que há um portão que foi fechado.
Chega Chico e logo atravessamos para o outro lado.
Entra um nordeste forte. Estou me "coçando" para seguir apenas até o Cassino e parar.
Tem uma vozinha que fica sussurrando no ouvido:
- Com este vento tu chegas hoje mesmo ao Chui...
Cara, que coisa mais difícil que é parar... Quem mandou o Nardi fazer um carro sem freios?
Faço as contas rápido; em cinco dias andando fiz de Ibiraquera até Rio Grande.
Não tivesse carga e vários obstáculos como rios para atravessar daria para fazer em 3 dias de vento bom...
Como na ida e na volta viajei contra o vento, dias curtos, etc... eu queria ter o "gostinho" de viajar pelo menos dois dias com vento a favor. Foram 400 km em menos de dois dias.
Então eu falo isto para mim mesmo para me convencer a parar no Cassino.
Eu me conheço e sei que quando estiver na praia vou querer seguir, ainda mais que tenho água e comida para ir e voltar.
Saio do terminal, sigo puxando até os fuzileiros e armo a vela.
Hoje com o nordeste foi mais legal de seguir pelo asfalto até os molhes.
Passam os recrutas cantando:
- Corridinha mixuruca que não dá nem pra cansar!
Assim a gente cantava enquanto corria em nosso EAS (estágio de adaptação inicial) nos fuzileiros navais. A gente passa e certas coisas permanecem...
Chego aos molhes, tiro fotos das vagonetas que correm a vela sobre trilhos na extensão de 4 km mar adentro.
Depois sigo no Imortal por 15 minutos até chegar ao Cassino (9:30h).
Não agüento, vou passar direto!
- Soldados, o tenente Issi vai passar direto. Virem a cabeça dele para que veja a estátua de Yemanjá.
Deslumbrado com a estátua mais sexy de Yemanjá, o nosso herói fica de língua de fora e dirige o Imortal para "trocar umas idéias" com a santa.
Chego ao lado dela, tiro muitas fotos e desmonto o mastro. Melhor terminar logo com isto.
- Senhor, acabou!
- Não!
- Ainda falta destruir um "chip"!
- O pelotão quase vai às lágrimas enquanto seu comandante vai descendo lentamente para o caldeirão de aço derretido.
Antes de sumir ele faz sinal de positivo e diz:
- I will be back baby!

É isso aí. Foram 2230 km e muitas estórias. Essa aqui já é passado!
Ainda estou no Cassino escrevendo e tenho que dar um jeito de levar eu e o Imortal pra Porto.
Agradeço de coração a todos que me apoiaram de uma forma ou outra e espero ter alegrado um pouquinho aqueles que enfrentaram esse último inverno.
Muito obrigado a todos.
Um grande abraço
André

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